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sexta-feira, 17 de junho de 2016

Estilhaços …


Capa: António Belchior
Corações Irritáveis, de João Paulo Guerra, é um dos mais impressionantes textos sobre a guerra colonial. 
Um texto inqualificável, de non.fiction novel, de policial, de estudo psicológico, de percurso pela memória histórica. Devia ser promovido e estudado... 
Faz parte da grande literatura portuguesa. 
Não faz parte é das capelas e confrarias...
Carlos Matos Gomes 

Carlos Matos Gomes na apresentação do Livro:
Há muitos anos que ouço e leio que falta o “Grande Romance” da Guerra Colonial. Acredito que jamais aparecerá esse tal grande romance sobre a guerra colonial – como não existe o grande romance do fascismo, nem do colonialismo, nem da resistência.
        Mas do que estou aqui a falar e a apresentar é de um Grande Romance. De um grande romance sem outros qualificativos e que tem por tema a Guerra Colonial. Ou só a Guerra. Ou a verdade. Ou a consciência. Ou o remorso. Sobre qualquer dos temas que possamos escolher, este romance tem uma perspectiva surpreendente.
        Tomemos a guerra colonial portuguesa como tema central. Os romances que têm a guerra colonial como tema abordam-na normalmente na perspectiva da aventura de um homem, ou de um grupo de homens na guerra, na operação, a sofrer o medo, a dureza da marcha, a ansiedade da coluna, das minas, sob a inclemência do clima. Falam no sacrifício, no espanto de África, na morte. Ou os autores abordam o tema numa perspectiva pessoal, e escrevem a autobiografia que querem deixar ao seu circulo familiar e de amizades. Ou ainda romances de fundo ideológico, de crítica ao regime que lançou uma geração num conflito inútil e moralmente injusto; ou na do seu reverso: o romance que enaltece as virtudes guerreiras, dos homens que foram cumprir o seu dever de defender os territórios ultramarinos. No confronto entre herói e anti-herói.

Podemos encontrar todos esses cambiantes de abordagem no livro de João Paulo Guerra, a aventura individual e colectiva, a biografia e a autobiografia, as motivações, mas em nenhum está o coração da narrativa nem o esqueleto que a suporta.


Começando pelo esqueleto, pela estrutura, o romance tem uma estrutura de policial – detective story – um pouco no estilo de Patricia Highsmith. A partir de uma morte, o autor (através de múltiplos narradores – uma inspectora da judiciária, uma psiquiatra, um casal de amigos e até da viúva) inicia uma busca de razões, de causas, de possíveis autores através precisamente da viúva, que é um morto-vivo, porque se identifica com o morto. Ela é ele. Depois, cada morte explica a anterior e anuncia a seguinte. E nenhuma morte é uma morte vulgar. Todas remetem para o que mais marcou o morto quando esteve na guerra, em África.
E entramos no coração do romance. Onde batem os momentos no limite da violência, da irracionalidade, da bestialidade, da vergonha, no nojo que estes homens replicam nas suas mortes.
Um dos mistérios resulta do facto de que o romance poderia (e deveria) ser uma tentativa de explicação do que teria levado estes homens  a suicidar-se, a realizar, a assumir uma acto individual de redenção, mas isso seria demasiado comum. Não, a morte destes homens não pode ter sido apenas um suicídio – há pistas, há impossibilidades que negam a hipótese de suicídio. Pelo menos o suicídio comum de se donner la morte, como se diz em francês. Há um fio condutor que é passado de morte em morte e é suposto haver alguém a desenrolar esse fio.
O autor apresenta-nos num primeiro nível de leitura o que poderia ser a história dramática de um grupo de homens que sofre de stress pós traumático de guerra – PTS. É o que parece – e a descrição pormenorizada dos acontecimentos ajuda a parecer que será assim. Esses distúrbios são simultâneos e dolorosamente reais – os nomes das terras, as paisagens, os ambientes são reais – e ao mesmo tempo fantasmagóricos – isto é, ultrapassam o que estamos preparados para aceitar como comportamento humano. Eles estão apanhados. “Apanhados” era uma expressão que usávamos nas colónias para falar de nós… dos apanhados. É efeito da guerra, do clima, do cacimbo. Também lhes chamavam cacimbados. São os radicais…

Juntam-se para partir tudo.
Partir tudo? Não lhe parece excessivo?
Excessivo é o inferno. A senhora conhece o inferno? É que eu conheço….

O nome das terras (do inferno) e dos locais corresponde à geografia – rigorosamente e acreditem em mim que andei por alguns deles – Olivença, Maniamba, Lunho, Cantina Dias, Unango, Macaloge, existiam e eram assim – buracos – era esse o nome que os militares davam a esses acampamento de bidons, de lonas, de palhotas, de chapas de zinco, no Niassa, Norte de Moçambique, e eram assim os buracos de Cabo Delgado, de Mueda, de Mocimboa do Rovuma, de Nangololo, nas margens do rio Messalo. Eram assim os buracos do Leste de Angola, do Cazombo e da Nriquinha, as antigas terras do fim do mundo de Henrique Galvão, e na Guiné, em Guidaje…
Nesses buracos ocorreram os confrontos que marcaram a ferro e fogo estes homens que só um acontecimento traumático une. Une, é mais uma falsa pista. Ao contrário do que acontece em muitos romances ou filmes de guerra, estes homens não pertenceram a nenhum grupo de combate, não os une uma camaradagem, como acontece com o meu Nó Cego, n’Os olhos do caçador, n’Os cus de Judas. Não é o que acontece em Corações Irritáveis.
Em Corações Irritáveis o que surge na boca de cena são estilhaços vindos de Moçambique, de Angola, da Guiné. Os personagens são estilhaços que rebentaram todos os limites. O que os une, no início, é pertencerem a um grupo de terapia de stress pós traumático – são tipos perturbados que, depois de terem rompido os fios que os mantinham numa já difícil normalidade e de, com dificuldade, se terem disposto a sujeitarem-se a um tratamento, abandonaram esse apoio. Mas o romance já os apanha quando eles largaram as sessões de terapia de grupo, romperam os frágeis laços que os reuniam a uma memória insuportável e o que passa a reunir este novo conjunto é a recusa, o abandono, de qualquer suporte institucional. O que caracteriza os personagens de Corações Irritáveis – que nos surgem como fantasmas, mortos ainda vivos, vagueantes à espera de se aliviarem da vida, é a recusa a qualquer esperança de salvação!
O romance podia chamar-se Estilhaços, já que a Viagem ao Fim da Noite está bem ocupado. Ou a Busca da Noite Absoluta.
O que une estes homens, e a mulher, Adélia, que se identifica com Henrique, a personagem principal, é o apoio na aceitação da morte, porque eles buscam a sua.
É a busca do modo como as mortes se foram sucedendo em rosário que não nos deixa parar de ler este romance.
O resto – e o resto é a matéria-prima do romance – é o que pode ter sido a verdade de cada um sobre a sua guerra. E essa verdade de cada um é o seu instrumento de tortura. Descrições em voo picado sobre o pior que cada um de nós tem. A vergonha de nós. O sentimento de ser, de ter sido, imperdoável o que a guerra fez fazer a estes homens que o João Paulo Guerra leva até à morte, mas que andam por aí.

Lembras-te de um dia que veio cá um dia bater à porta para me entregar uma carta?
O coxo?
Esse, o Serra. Mas ele não é coxo.
Eu vi-o andar a arrastar uma perna.
O Serra não tem nenhum problema físico que o leve a coxear.
Então?

Há outro, o Sousa, que não consegue dormir. Quando está a cair de sono desaparece. Ninguém sabe onde ele se esconde.
Que lhe aconteceu?

Também há o Oliveira. Esse está sempre a mandar calar todas a gente. «Chiu! Não façam barulho. Ouçam! Calem-se. Assim não se consegue ouvir nada. Agora… não estão a ouvir?
Que aconteceu?

E há o Pimenta, alferes miliciano Pimenta.
Que lhe sucedeu? – Perguntou Adélia à beira do pranto.
Passou dois anos a esquecer…

Eu estive várias vezes à beira de deixar o livro, de o perder e de não mais o encontrar. Voltei sempre. Entendo que o que foi feito na História não pode ser desfeito e que o melhor para sobreviver é esquecer – sepultar – e dizer mil vezes que todas as guerras causam mortos, feridos, estropiados, torturados do corpo e da alma, crimes que não devem ser encobertos, porque estão a descoberto dentro de cada um. O problema não é a descoberta do crime que está na origem deste romance, mas como conviver com ele. Ser herói, neste caso, é vencer o remorso. Ser um herói criminalizado.
 Estive várias vezes à beira de deixar o livro, mas voltei sempre, como disse, e não para fazer uma catarse através do reviver, mas para ler os grandes planos de que este romance é feito.
Um parêntesis: há uns anos fui convidado pelo Público para a ante-estreia do filme O Resgate do Soldado Ryan, com a Lídia Jorge, para depois comentarmos. Tive de fazer das tripas coração para aguentar os primeiros vinte minutos da carnificina do desembarque na Normandia. Senti a mesma sensação ao ler Corações Irritáveis. A II Guerra Mundial não foi só o desembarque na Normandia, os corpos ceifados, os membros decepados, foi muito mais do que isso, mas também foi esse fora dos limites. A guerra colonial não foi este mundo a negro e vermelho onde se perderam estes homens, não foi só o buraco negro que os engoliu, nas também foi este vulcão que transformou estes homens em lava incandescente, que correram para se petrificarem, como último destino.
        Eles sofrem porque são humanos. A sua humanidade não suporta os horrores que viram
       
Esses homens foram treinados para matar inimigos, mas na guerra que travam agora os inimigos são eles próprios…

        O país estava em guerra, uma guerra civil não declarada. Uma guerra quase desconhecida, e que o país institucional, o país sentado, acomodado, amodorrado, conhecia mas ignorava

São palavras do romance.
Por fim, este é um romance em contra-corrente da literatura portuguesa. Será, porventura, o último grande romance da guerra. Encerrará o ciclo do que o João de Melo designou por escritores da guerra, que foi um hiato na literatura portuguesa. Nunca mais se escreverá assim, com a mão nas gargantas dos leitores.  A literatura portuguesa de hoje, da geração que aí está, a seguir à dos da guerra, tem as suas preocupações e expressões – e, falando frontalmente como o romance do João Paulo Guerra merece que quem o apresenta fale, direi que Corações Irritáveis é, no meio deles, um objecto estranho, uma caveira em cima da renda em que os romances portugueses de hoje se tecem.
Quem pergunta hoje, a propósito das personagens dos novos romances?

Mas o que é que tinham encasquetado na cabeça?
Eu tinha a cabeça cheia de mortos. Não podia mais. Só me apetecia desatar aos tiros, atirar granadas. Rebentar com tudo.

Quem escreve:
Quando alguns homens se aproximaram e puxaram para trás a porta do cubículo, o indivíduo que fora urinar era um volume informe que se derramava pela portinhola, num argamassa de sangue, vísceras, fezes, urina e estilhaços. Aparentemente, o homem não tinha chegado a arriar as calças ou a abrir a braguilha. Mas de um rasgão no ventre descaiam-lhe as tripas.

Não é desta matéria que se faz a literatura portuguesa de hoje. Os críticos são pessoas sensíveis. E exigentes: querem escritas límpidas e transparentes… êxtases, revibrações da alma, penas leves… dúvidas sobre o ser… fugas ao quotidiano cinzento… carícias… eu sei lá… 
Em Corações Irritáveis há descrições reais – apenas deslocadas no tempo – mas que talvez não cheguem à realidade. E esta é uma das que conheci e vivi:

A vida já era um inferno em Guidage. Mas aqueles homens não sabiam que havia algo pior num patamar abaixo do inferno. Foi disso que tomaram conhecimento quando deixaram de poder sequer enterrar os seus mortos: os que morriam ao circular entre as trincheiras, e que eram levados para os buracos num supremo ato de compaixão, e os que passaram a morrer, esvaídos em sangue no fundo das valas, sem possibilidade de socorro local, menos ainda de evacuação para o Hospital Militar, em Bissau. O chão de algumas das escavações era já uma crosta de sangue e terra e o cheiro a morte empestava o ar que se respirava lá em baixo. Até que, furando o cerco a Guidage, chegou um esquadrão de Cavalaria para os resgatar. O comandante do esquadrão, capitão Maia, encontrou o furriel Risques vivo numa trincheira de mortos.
- Ajudem aqui - gritou o capitão.
Puxaram o homem para a superfície, o oficial deu-lhe um forte abraço – sem se mostrar minimamente incomodado pelo cheiro a morte que o militar exalava e pelo toque viscoso dos trapos que envergava - e o furriel julgou que não era real a imagem que tinha à sua frente de um jovem militar, que os outros tratavam por «meu capitão», e que se perfilava, em sentido e em respeitosa continência, perante um andrajoso, sujo, faminto e sedento, um vacilante farrapo humano, ele próprio, furriel miliciano de Infantaria Juvenal Risques. Depois o capitão passou-lhe fraternalmente um braço pelos ombros.
- Vamos levar-te para casa - disse-lhe o capitão.
- Quem dera que houvesse mais capitães assim - desabafou o furriel.

Corações Irritáveis é um prato de sustância, indigesto, feito por quem mete e a mão na massa e está ao forno, num tempo de cozinha de fusão, de degustações e microondas.
Estas páginas fazem parte de uma outra literatura portuguesa, ácida num tempo de produtos delico-doces:


Certa vez, a patrulha surpreendera um grupo de jovens armados que seguiam ao longo da linha do comboio. Ensaiaram uma perseguição com a viatura mas os miúdos dispersaram, cada um para seu lado. Ainda dispararam uns tiros, instintivos e sem grande convicção, e as coisas ficaram por aí.
Seguiram caminho mas, mais diante, viram ao longe um dos rapazes, parado junto à linha. Tiveram que focar bem a vista pois a temperatura escaldante daquelas paragens distorcia as imagens fazendo-as tremeluzir na distância. Dois soldados ficaram a guardar a viatura, os outros apearam-se e contornaram uma elevação arborizada do terreno, para se aproximarem sem serem vistos. E conseguiram. Estavam já bem perto e entretanto um comboio aproximava-se. E a suspeita ganhava crédito entre os militares: o garoto preparava-se obviamente para dinamitar a linha à passagem do comboio. Os homens, com as G-3 aperradas, surgiram a uns cinquenta metros do miúdo, surpreendendo-o, e gritaram-lhe que pousasse a arma no chão e se entregasse de mãos no ar, bem à vista. O miúdo começou devagar, muito devagar, a baixar-se para pousar a arma no chão, tudo muito vagarosamente, sempre com os olhos bem abertos e bem pregados nos olhos dos soldados, que se iam aproximando, e nas respetivas armas. E de súbito, o miúdo deu um salto a atirou-se, com a arma na mão, para debaixo do comboio que ia chegando.
Silêncio. O antigo cabo enfermeiro Valentim Brotas tinha a cara lavada em lágrimas.
- O Hilário, o Maluco dos Comboios, ficou todo salpicado de sangue - conseguiu dizer.
- E o miúdo? – Perguntou Luís.
– O miúdo, assim visto de perto percebia-se que não teria mais de doze, treze anos. – Respondeu o antigo militar.
O cabo Valentim limpou as lágrimas que começaram a correr-lhe pela cara. E acrescentou num soluço:
- E a arma do miúdo… A arma do miúdo era uma espingarda de pau.
Fez-se um pesado silêncio.

Estas descrições ficam mal, caem mal em festivais de literatura, antes de um jantar com acepipes variados, em mesas redondas, em planos nacionais de leitura. Os novos autores são politicamente correctos…. Têm os problemas do seu tempo, que não é este e que todos desejamos que não seja. 
Eu congratulo-me pelo facto de romances como Corações Irritáveis estarem, fora de moda aqui em Portugal… Presumo que estará na moda na Síria, no Iraque, que estará na moda nos países da antiga Jugoslávia, na Bósnia Herzegovina, na Sérvia, no Kosovo onde haverá homens que escrevem, como o autor de Corações Irritáveis:
«Há, como eu, outros homens perturbados, por uma guerra que não acabou, que me confiam para registo em outros papéis as raízes das suas perturbações. 
«São homens atormentados que têm direito ao seu tormento, ao terror que envolve as suas memórias e os seus corações, que têm direito ao horror, ao remorso, à purificação mas também à veemência e à exaltação. Esses homens confiam nestes papéis e neste interlocutor que se risca, se rasga, se amachuca, que arde, que se dissolve na água, porque sabem que nunca ninguém chegará ao fim deste labirinto de palavras riscadas.
         «Um dia encho-me de coragem e conto-te tudo…»


Carlos Matos Gomes, 
apresentação de Corações Irritáveis
2 de Março de 2016


Na mesa: Actriz Maria do Céu Guerra, que leu passagens do texto; 
Carlos Matos Gomes
que apresentou o livro; João Paulo Guerra, o autor; Cristina Ovídio, editora do Clube do Autor

2 comentários:

José Verdasca disse...

Li pouco nas gostei do que li. Finalmente temos algo diferente na literatura portuguesa. In Sha Alla ou oxalá tenhamos leitores para esta literatura neo realista em que a fusão da realidade e da ficção dá origem a algo mestiço semelhante ao HOMEM NOVO surgido nos trópicos com o ACHAMENTO do Brasil, fruto da miscigenação do europeu com a índia. Mas para o interpretar e compreender há que ter 'alma' e sensibilidade. Enfim e por fim, estamos perante um ROMANCE ESPECIAL, que naturalmente exige LEITORES ESPECIAIS.

José Verdasca, Presidente da Ordem Nacional dos Escritores, Brasil

João Paulo Guerra disse...

Acresce um comentário ao comentário: José Verdasca, empresário na região de São Paulo e Presidente da Ordem Nacional dos Escritores, Brasil, foi entre 1966 e 67 "meu capitão", comandante da companhia em que eu era um dos alferes milicianos, unidade colocada em Olivença. extremo norte do Niassa, Moçambique. Era um homem frontal perante as hierarquias, o que lhe custou caro, mas que conquistou a amizade e respeito dos seus subordinados.
O meu romance CORAÇÕES IRRITÁVEIS reconhece parte daquele cenário; mas as personagens são de ficção. E o capitão de de Mpua - local imaginário do romance - era o negativo da imagem do meu capitão de Olivença.
De quem continuo amigo, 50 anos depois da guerra.
João Paulo Guerra