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sábado, 28 de abril de 2018

Timor-Leste 1999: VIAGEM AO FIM DO IMPÉRIO



TIMOR LESTE 1999: VIAGEM AO FIM DO IMPÉRIO

 

Reportagem João Paulo Guerra, Setembro e Outubro, 1999, Diário Económico 

 

Uma coluna de fumo indica a direcção do centro da cidade.

«São os armazéns da Intendência» – diz-me, no caminho entre o aeroporto de Comoro e o centro de Díli, Francisco Leão, antigo corneteiro do Exército português, noutros tempos camarada de outras armas do furriel José Ramos-Horta e do 1º cabo Xanana Gusmão. E esclarece que os indonésios, na retirada, pegam fogo a cada edifício que abandonam na administração de Timor-Leste.

«Ontem durante o dia ardeu a sede do Departamento de Educação. À noite começaram a arder os armazéns da antiga Intendência, mesmo ao lado do Palácio do Governo», acrescenta. 

O bairro de Comoro já dá os primeiros sinais da destruição, mas ainda não é nada que eu não tivesse já visto na destruição de povoações arrasadas por guerras ou na degradação de zonas suburbanas de grandes cidades do Terceiro Mundo. Depois, passadas algumas barricadas da tropa, vem o cordão de vivendas luxuosas e intactas, com vista para o mar, do bairro dos líderes integracionistas, agora ocupado pelos comandantes militares javaneses, na vizinhança da igreja e da clínica de Motael. Chega-se então à zona do porto, partilhada por tropas ocupantes indonésias e da Força Internacional para Timor-Leste / INTERFET, cenário de um imenso e improvisado acampamento dos que ficaram na cidade após a onda de terror das primeiras semanas de Setembro. A seguir é que se entra verdadeiramente no inferno, despovoado, calcinado e fumegante de Dili.

Ao sexto dia após a entrada das forças da INTERFET, a capital de Timor-Leste é ainda uma cidade praticamente deserta e, como dirá nessa manhã o major-general Peter Cosgrove, comandante da Força Multinacional, no primeiro briefing a que vou assistir no Hotel Turismo, «um local ainda muito perigoso para toda a gente». Convoco a memória de cenários de outras guerras que observei, em mais de trinta anos de repórter, e não me ocorre nada mais inquietante e inseguro do que uma cidade sem gente. Esta cidade, Dili, em Setembro de 1999.

Sigo a visita pelos escombros. Dili cheira a cinza fria e a gasóleo queimado, os detritos de todas as modalidades de vandalismo amontoam-se e apodrecem ao sol escaldante no campo de uma batalha que ninguém venceu. Aqui são as ruínas do Hotel Makhota e lá ao fundo, à direita, o que resta do Mercado, três vezes assaltado e arrasado. Pelo caminho ficam os destroços do Liceu Dr. Francisco Machado, com a fachada lambida pelas chamas. Por todo o lado, pintada sobre os sinais bestiais de destruição, a assinatura, ou melhor dizendo, a impressão digital da pata da besta: Aitarak.  E ninguém nas ruas, para além de episódicas patrulhas motorizadas da Força Multinacional ou das viaturas de vidros fumados dos oficiais de alta patente das Forças Armadas Nacionais Indonésias / TNI (Tentara Nasional Indonesia).

«Good morning», dizem acenando os jovens militares australianos expedidos para Timor como força de «manutenção da paz». «Peacekeeping», sublinha Cosgrove. E toda a gente se interroga sobre que paz de cemitério é esta que se quer manter.

 

Em cada família falta sempre alguém

Ainda neste primeiro dia em Díli subo a encosta do bairro de Lahane, a seguir ao cemitério de Santa Cruz, o primeiro trilho do caminho para as montanhas. Vista de cima, a cidade exibe o mapa de escombros em cinzas de uma verdadeira política de terra queimada. Poucas vezes a expressão terá sido tão justamente aplicada. Segundo cálculos das Nações Unidas, 50 por cento das casas de Díli foram incendiadas e todos os edifícios públicos da cidade foram devassados, saqueados, vandalizados.

Na encosta de Lahane, a residência de Leandro Isaac, dirigente local do Conselho Nacional da Resistência Timorense / CNRT, está desfeita. Mas do outro lado da rua foi poupada a casa de Fernando Corte Real, professor do ensino secundário. Aceito o convite para um chá ao fim da manhã. O professor é neto do régulo D. Aleixo Corte Real que, durante a ocupação japonesa de Timor, na II Guerra Mundial, pagou com a vida a sua lealdade à bandeira portuguesa. Hei-de encontrar dias depois, por entre os destroços do Bank Pembagunan Daerah, no centro de Díli, a efígie do régulo D. Aleixo numa nota meio queimada de 100 escudos emitida pelo Banco Nacional Ultramarino.

Neste dia de uma calma inquietante, há em Díli uma pequena mas significativa mudança. A bandeira da Indonésia deixou de flutuar no mastro do Palácio do Governo, em plena avenida marginal. É esse o único sinal exterior da discreta cerimónia, à porta fechada, da transmissão do poder das tropas de Jacarta para as forças da INTERFET. Um acto formal que não altera a realidade destes dias na capital de Timor-Leste. A Força Multinacional e as TNI coabitam pacificamente uma cidade que os segundos continuam a destruir perante a passividade dos primeiros. E os militares de Jacarta, apesar de estarem em retirada, ocupam pontos de importância estratégica – o comando da polícia e o comando naval, a central eléctrica e a telefónica - e detêm poderes tão decisivos como o da segurança e policiamento de Díli. E é assim que cada agente das Milícias preso pela INTERFET é entregue às autoridades indonésias que o libertam no momento seguinte pela porta das traseiras.

O general Cosgrove desdramatiza a situação, fazendo notar que neste domínio a primeira preocupação das forças que comanda é desarmar os agentes das Milícias. Se os indonésios os armam de novo, quando os põem em liberdade, é questão que nem merece resposta do general no briefing do Hotel Turismo. Cosgrove passa adiante para afirmar que a Força Multinacional está a investigar as circunstâncias da morte de timorenses cujos corpos começam agora a ser descobertos em poços e valas na cidade e arredores.

E este é de facto um motivo de conversa entre a população refugiada nas tendas improvisadas na área do porto de Díli. Francisco Leão viveu os dias de terror em Aileu e tem registado na memória o mapa das valas comuns onde a Milícia AHI enterrou as suas vítimas.

«Aqui, em Díli, há corpos lançados em poços e valas. Não muitos. A maior parte dos corpos foi deitada ao mar, ao largo da costa. Nunca mais serão encontrados. Nem nunca saberemos quantas pessoas foram mortas pelas Milícias», diz-me o antigo militar português. Nos dias seguintes, são encontrados nove corpos numa vala em Comoro, mais dois corpos carbonizados, dentro de um armário no Hotel Makhota, outros três num poço em Bécora. Mas o número de vítimas vai ficar muito aquém dos horrores de um holocausto que alguma imprensa anunciou. E há mesmo alguns «mortos» pela imprensa que vão renascer das cinzas da cidade, agora que os jornalistas regressaram após a entrada da Força Multinacional. A irmã Margarida, da diocese de Díli, «assassinada» nos jornais de 10 de Setembro, vai matar a fome e a sede a muitos de nós, nestes dias em que falta tudo em Díli.

«Já tomou café hoje? Quer um copo de água? Um prato de arroz?», pergunta docemente a velha, terna e pequena irmã Margarida, que se agigantava ao enfrentar os desmandos dos Aitarak.

O Banco Mundial fará as suas previsões sobre o número de vítimas, já nos primeiros dias de Novembro, e haverá de concluir que cerca de 10 por cento dos agregados familiares perderam o chefe de família. Anteriormente, nas primeiras semanas de Outubro, a igreja de Díli fez um primeiro recenseamento das famílias e, segundo me diz o padre Jovito, chegou à conclusão que em cada grupo familiar falta sempre alguém. Mas por esta altura há ainda a dúvida e a esperança que os desaparecidos se contem entre os deportados para Timor Ocidental ou entre os refugiados nas montanhas.

Marciano Correia da Silva, de 37 anos, desconhece o paradeiro da mulher e do filho. Quando o terror tomou conta de Díli, levou-os para casa de familiares nos subúrbios da cidade e voltou à sede da UNAMET, onde prestava serviço como intérprete. Ao procurá-los, dias depois, os vizinhos disseram-lhe que a família foi levada pelos indonésios.

«Talvez estejam em Kupang», diz-me, com mais esperança que convicção.

 

População regressa às suas ruínas

Dare é uma localidade de 2.000 habitantes a 10 quilómetros para sul de Díli, sempre a subir no banco traseiro de uma motoreta que faz serviço de táxi, ao longo de precipícios por uma esburacada estrada de montanha. A localidade acolhe cerca de 35 mil refugiados da capital. Alimentam-se de dietas reduzidas de arroz e mandioca, falta-lhes água potável, roupas, medicamentos e assistência para milhares de crianças desnutridas. David Ximenes, dirigente do CNRT que coordena este gigantesco acampamento que se espalha a partir do largo da igreja de Dare pelas matas, diz-me que a maior parte destes refugiados permanece na montanha apenas porque aqui tem a segurança que Díli ainda não lhe garante.

«As pessoas estão a ficar ansiosas e em breve vão querer regressar às suas ruínas» – diz-me o dirigente da Resistência. «Mas a maior parte dos refugiados são mulheres e crianças, muitos deles com graves problemas de saúde, e o seu regresso levanta um sério problema de segurança, pelo menos enquanto não terminarem as operações de caça às Milícias», acrescenta.

De regresso a Díli passo a ponte sobre a ribeira de Kulu-Hum que dá acesso ao bairro de Bécora. Aqui, quatro dias após a chegada a Díli das tropas da INTERFET, foi assassinado na rua o jornalista holandês Sander Thoenes, correspondente do Financial Times, num ritual macabro: os assassinos cortaram-lhe as orelhas e a língua, num aviso para que ninguém ouvisse ou dissesse o que havia para ouvir e dizer sobre as milícias e Bécora.  Um timorense que transportava Thoenes de motocicleta disse à Associated Press que homens com uniformes militares dispararam contra eles numa estrada de Bécora, reduto de milícias pró-Indonésia, obrigando-os a parar. O motociclista conseguiu fugir, mas o jornalista caiu nas mãos das milícias. O corpo foi encontrado no dia seguinte.  

No dia anterior, as milícias atacaram um carro em que seguiam um repórter britânico e um fotógrafo norte-americano. O motorista foi gravemente atingido e o interprete foi sequestrado pelas milícias.

O general Cosgrove, comandante da INTERFECT, afirmou que Dili “continua a ser um lugar perigoso, em particular para os numerosos jornalistas que aqui estão”.

Neste bairro periférico de Díli, à saída da cidade para o Leste da ilha, em direcção a Baucau e Los Palos, confrontam-se extremismos de diferentes matizes. De um lado os jovens e exaltados partidários da Resistência, do outro os marginais desesperados recrutados pelas tropas indonésias para constituir a Milícia Aitarak. Num bairro politicamente dividido, a destruição foi cirúrgica: as casas dos pró-independentistas estão reduzidas a cinzas e escombros e são muito mais numerosas que as residências intactas dos pró-integracionistas. O bairro está povoado, mas os sinais de insegurança marcam todos os rostos, como a desconfiança assinala mesmo as mais elementares relações entre as pessoas. De qualquer modo, Bécora já não é, como chegou a ser considerado semanas antes pela imprensa internacional, «o lugar mais perigoso do mundo». Aqui decorre agora a «caça» de que me falou David Ximenes.

«Milícia! Milícia!», gritam as crianças de Bécora, entusiasmadas com este jogo que não é brincadeira. E disparam as correrias da caça ao homem. Toda a gente em Bécora conhece os Milícia. São timorenses, com familiares e conhecidos do outro lado da barricada. Mas nem todos os pró-integracionistas fizeram parte dos esquadrões da morte das Milícias.

«Não demos orientação, nem damos autorização, para que se faça justiça pelas próprias mãos», disse-me David Ximenes em Dare. Por vezes, os suspeitos não escapam ao espancamento pelos seus captores. Mas em geral, os alegados «milicianos» são denunciados à INTERFET ou apanhados à mão e entregues às tropas multinacionais, que têm uma força de Gurkhas aquartelada no bairro, entre a igreja e a cadeia. A cadeia de Bécora, no entanto, está vazia.

Em algum lado haverão de estar os homens que semearam o terror em Timor-Leste por conta dos militares indonésios. Ainda em Darwin, à espera de transporte para Díli, visitei o acampamento de refugiados timorenses de Kalymnian Center, em Batten Road. Até ali, na Tent City, foram detectados dois agentes das Milícias e mesmo um militar indonésio acompanhado por toda a família.

Em Díli, um oficial da INTERFET ligado ao sector das informações diz-me que é bem possível que haja elementos destacados das Milícias refugiados nas instalações que a tropa indonésia ainda ocupa na cidade. Quanto ao interior do território, sabe-se apenas que são vistos com frequência grupos em fuga quando se aproximam os helicópteros de reconhecimento da Força Multinacional.

De resto, a INTERFET não controla o território. As colunas militares partem de Díli, em reconhecimento ou em missão de escolta a comboios de ajuda humanitária, mas regressam à cidade. Não se fixam nem estabelecem qualquer quadrícula para garantir a segurança no interior, o que está a atrasar o regresso das populações refugiadas nas montanhas às cidades, vilas e aldeias de Timor-Leste. Para mais, a INTERFET leva ao extremo rigor da letra os termos do seu mandato e desarma de igual modo agentes das Milícias ou guerrilheiros das FALINTIL. A questão é que são estes últimos guerrilheiros do século, mal preparados e mal armados, mas que resistiram 24 anos à ocupação militar indonésia sem qualquer apoio externo e sem fronteiras que lhes garantissem uma retaguarda para a sua luta, que nestes dias de Setembro de 1999 protegem as populações que procuraram refúgio nas montanhas de Timor-Leste.

 

Colapso da vida social e económica

Viajo com um pequeno grupo de jovens aderentes das FALINTIL, nas traseiras de uma velha e desconjuntada camioneta de carga, através dos cerca de 60 quilómetros para sudoeste que separam Díli de Ermera, a cidade que resistiu até Abril de 1976 à invasão indonésia de Dezembro de 75. Esta é a região do café de Timor, que em 1998 assegurou aos ocupantes indonésios e seus capatazes um rendimento de 20 milhões de dólares.

As plantações, para norte de Ermera e para sul de Liquiçá, foram totalmente queimadas. A população de cerca de oito mil habitantes foi, na sua maior parte, deportada para Atambua e Kupang, em Timor Ocidental. Nas ruas de Ermera, nas primeiras semanas de Setembro, amontoaram-se dezenas de corpos que os refugiados nas montanhas sepultaram quando começaram a descer à cidade, conta-me o comandante Gil, da 4ª região militar das FALINTIL. E acrescenta que os corpos estavam já em decomposição e parcialmente devorados pelos cães, nas ruas de Ermera.

Nesta região, e mais particularmente na povoação de Gleno, a onda de violência não esperou sequer pelos resultados da consulta. No próprio dia 30 de Agosto, militares comandados por um major das TNI e agentes das Milícias incendiaram casas de activistas do CNRT e atacaram pessoal da UNAMET. Alguns quilómetros para Norte, em Liquiçá, a violência foi desencadeada a 3 de Setembro, na véspera da divulgação dos resultados.

«Agora já não há Milícias. Fomos nós que corremos com eles. Mas ainda não há tropa», diz o comandante Gil, acrescentando que «entregar as armas não é política das FALINTIL. É de nós que depende a segurança dos refugiados de Ermera e dos que vieram do Norte, de Liquiçá. Ao todo são cerca de 30 mil».

A pequena e decrépita cidade do café é um amontoado de ruínas e de miséria. Mas o comandante das FALINTIL quer fixar as populações na região. Por isso faz a viagem de Ermera para Díli, onde vai analisar com o CNRT e com as organizações humanitárias a criação de condições para evitar um êxodo em larga escala que vá desertificar o interior e agravar ainda mais os problemas da capital.                      

Milhares de refugiados começaram a descer aos poucos das montanhas para Díli, duas semanas após a chegada da INTERFET e a situação alimentar e sanitária é caótica. A distribuição das rações de arroz no estádio da cidade de Díli não chega para todas as necessidades. E à margem da multidão de regressados carentes de tudo, há também uma pequena pobreza envergonhada que tem pudor de ir para as filas do arroz, como me disse o professor Fernando Corte Real, descendente de uma família de nobres régulos timorenses.

A retirada gradual dos indonésios, além da destruição de uma parte da cidade, significa também o completo colapso de toda a organização administrativa e económica. Em Díli não há, entre o final de Setembro e as primeiras semanas de Outubro, abastecimentos organizados e não há salários desde Julho. A presença de um vasto contingente de estrangeiros – militares, elementos de organizações humanitárias e jornalistas - inflaciona os custos dos serviços prestados, pagos em dólares americanos ou australianos, ou em rupias indonésias, e por qualquer preço.

Nas imediações do porto de Díli começam a surgir por essa altura pequenos mercados que, ao fim de poucos dias, se unem numa imensa feira que se estende das ruínas do Hotel Makhota ao longo do arame farpado da zona portuária. Os primeiros géneros vendidos são o produto do saque a que os militares indonésios se dedicaram antes da retirada e de que agora se desfazem. Até automóveis e mobílias se vendem na zona do porto, embora os compradores corram o risco de deparar na cidade com o verdadeiro proprietário. Um frango ou um quilo de duvidosa carne de porco, dois litros de gasolina, cinco maços de cigarros ou quatro pacotes de bolachas, meio quilo de detergente ou um quilo de margarina, cinco litros de petróleo, custam em rupias indonésias metade do salário médio de um timorense, enquanto os timorenses receberam salário. E no dia seguinte tudo subiu de preço. O «requinte» deste improvisado mercado de rua é o acondicionamento das compras em sacos da lavandaria do Hotel Makhota.

Com o regresso de milhares de refugiados a Díli, nos primeiros dias de Outubro, diminuiu a insegurança na cidade, mas aumentaram os problemas sociais, do défice dos abastecimentos ao aparecimento da criminalidade.

«A maior parte das pessoas não come uma refeição há três semanas», diz Patrice Charpentier, que dirige uma das agências humanitárias que começaram a distribuir nos jardins da residência destruída do bispo de Díli e na igreja de Bécora, no início de Outubro, sacos de 50 quilos de arroz, o que corresponde às necessidades alimentares mínimas de uma família de cinco pessoas durante um mês.

Nada está organizado para assegurar as condições de vida em Timor-Leste, a não ser a segurança relativa, garantida pela tropa da INTERFET, em particular pelos Gurkha Rifles, a ajuda humanitária distribuída pelas agências internacionais e a assistência sanitária dos Médicos do Mundo, da AMI, da OIKOS e, quase simbolicamente, da Missão Humanitária portuguesa Timor 99. Para todas as acções, as Nações Unidas e as suas agências contam como parceiros o CNRT, definido como «líder da comunidade local», e a Igreja, omnipresente em Timor-Leste, intimamente ligada ao sofrimento e à resistência do povo timorense.

Uma Igreja militante, como a definiu o padre timorense Hermenegildo de Deus, da diocese de Díli, ao afirmar-me que «é difícil dizer a uma mãe que perdeu todos os filhos que, quando se leva uma bofetada, devemos dar a outra face». Reside certamente aqui a razão pela qual a Igreja conquistou uma tão íntima e profunda implantação entre o povo de Timor-Leste. Em 1975, ao cabo de 455 anos de colonização e evangelização portuguesa, os católicos não chegavam a 30 por cento da população. No final do século, e após 24 anos de ocupação militar javanesa, de «indonesianização» e islamização, os católicos representam 89 por cento dos timorenses.

O padre João Felgueiras diz-me, por sua vez, que a islamização foi um dos objectivos da ocupação militar e que a religião católica, a par da língua portuguesa, constituiu uma das formas de resistência à integração. «Hoje, a religião é um dos factores de identidade e de unidade nacional em Timor-Leste», diz o padre Felgueiras. Acrescenta, no entanto, que a hierarquia católica indonésia, ao contrário da Igreja timorense, sempre alinhou pelas posições da potência ocupante. «Até agora, não tomou qualquer posição em relação à violência sobre o povo de Timor-Leste», conclui.


Um plano militar para a destruição de Timor

Agora, do porto de Díli todos os dias partem contingentes das TNI. Durante 24 anos consecutivos mantiveram uma presença militar que chegou a atingir cerca de 7 por cento da população do território e uma colonização civil que atingiu os 20 por cento, controlando a administração, explorando o comércio e todos os recursos económicos, mantendo uma colossal rede de usurpação das riquezas e de corrupção. Deixam Timor-Leste, entre Setembro e Outubro de 1999, escorraçados pelo resultado esmagador da consulta de 30 de Agosto: votaram 98,6 por cento dos 446.953 eleitores e 78,5 por cento (344.500) rejeitaram a «autonomia» proposta por Jacarta. O sorriso arrogante, que exibiam nos primeiros dias da intervenção da Força Multinacional, desapareceu dos rostos dos militares javaneses agora que estão em franca minoria e que os timorenses ganharam confiança para os apupar à partida.

O que é certo é que a INTERFET assistiu à retirada, tomando como boas as informações prestadas pelos generais de Jacarta quanto aos efectivos que foram deixando o território. Mas ninguém os contou à partida, como me revela um oficial do sector das informações da Força Multinacional. Do interior do território, pelo contrário, chegam informações que alguns militares das TNI se limitaram a mudar de farda, trocando o caqui verde-azeitona dos uniformes pelas t-shirts das Milícias. O mesmo circuito de informações revela que foram detectados cunhetes vazios de granadas e minas perto de localidades da fronteira.

Fontes das FALINTIL informam-me, por outro lado, que militares indonésios e dirigentes das Milícias estão a recrutar jovens timorenses deportados para Timor-Ocidental para novos grupos paramilitares, ficando as suas famílias, retidas em Kupang e Atambua, como reféns da sua lealdade aos objectivos dos generais de Jacarta. Ao mesmo tempo, e segundo as mesmas fontes, estão a ser recrutados cidadãos indonésios, em nome do Islão, para uma «Guerra Santa» em Timor-Leste. Estas informações chegam de deslocados timorenses em Atambua, pela rede de comunicações criada pelas FALINTIL, que agora associa os meios mais artesanais - que funcionaram durante os longos anos da resistência -, aos telefones satélite fornecidos, ao que me dizem, por militares portugueses.

Na INTERFET não só me confirmam as informações sobre a reconstituição dos grupos de mercenários, como acrescentam que se realizou recentemente em Kupang uma reunião de altas patentes indonésias com dirigentes das Milícias, entre os quais João Tavares e Eurico Guterres. Do encontro saiu a decisão de constituir uma auto-denominada «Frente de Unidade Nacional», definida como uma «frente anti-neocolonialista», com dois objectivos precisos: a desestabilização e a islamização de Timor-Leste. Os «infiéis» desta Jihad seriam os cristãos timorenses e os estrangeiros das Nações Unidas e das agências humanitárias.

Tratar-se-ia, de acordo com as mesmas fontes, do desenvolvimento do plano dos generais javaneses para sabotar a independência, parcialmente executado na sequência da divulgação dos resultados da consulta ao povo timorense sobre o seu destino.

«Uma estratégia concebida e dirigida centralmente, com o objectivo de impedir a independência de Timor-Leste, mas também com objectivos internos na Indonésia», diz-me o major australiano Mark Tanzer, da Força Internacional para Timor-Leste, citando um relatório de situação a que acabara de ter acesso.

«Um plano. Tudo correspondeu a um plano», diz por sua vez David Winhurst, porta-voz da UNAMET, enunciando e relacionando a sucessão dos acontecimentos. A criação ou activação de grupos de Milícias em Timor-Leste simultaneamente com o anúncio, em Jacarta, da realização da consulta; o envolvimento de militares indonésios e de Milícias em acções de intimidação, antes do referendo, e de repressão, a partir da divulgação dos resultados, de forma planeada e coordenada em todo o território; a tentativa de eliminação das elites timorenses e a deportação em massa para Timor-Ocidental. 

Seguir-se-ia, de acordo com o Plano dos generais javaneses, a divisão de Timor-Leste: de Díli para Oeste, até à fronteira, e para o Sul, até ao mar, o território mais produtivo seria atribuído aos pro-integracionistas e anexado na prática pelo Timor indonésio; o Leste do território, devastado e despovoado, seria concedido aos pro-independentistas. A fase derradeira do Plano, no desespero e na vingança de todas as derrotas e humilhações, seria então a «desestabilização e islamização».

 

Um país a construir: Timor Lorosae

Se tudo o que aconteceu em Timor-Leste, antes e depois da consulta, correspondeu a um Plano dos generais de Jacarta, não é menos verdade que tudo foi possível devido a um tremendo e trágico equívoco por parte da chamada «comunidade internacional» – ONU e Portugal incluídos –, permitindo que a consulta decorresse sob o controlo militar e policial do território por parte das tropas ocupantes. Ou seja: Portugal, a «potência administrante» de Timor-Leste, e as Nações Unidas, que reconheceram e atribuíram esse estatuto a Portugal, entregaram à potência ocupante a fase derradeira da descolonização de Timor-Leste.

E no entanto, em Timor-Leste, ninguém é nestes dias de Setembro e Outubro de 1999 mais desejado e esperado que «os portugueses».

Em Ermera, Florentino Martins sai a medo à estrada, à aproximação do camião conduzido por jovens das FALINTIL, acena e pergunta-me: «Português? Vêm aí os portugueses?». No acampamento de deslocados da zona do porto de Díli, Tomás Duarte recorre à memória para falar da partida do governador e das tropas portuguesas para Ataúro, em 1975, simultânea com a entrada das primeiras forças indonésias: «Nessa altura traíram-nos, abandonaram-nos». Mas admite que na crise de Setembro de 1999 Portugal desempenhou um papel único: «Foram os portugueses, nas ruas de Portugal e na ONU, que nos salvaram». E está agora atento ao futuro: «Os portugueses têm obrigações para com Timor. Estamos à espera». Nas encostas de Dare, à entrada para as montanhas de Timor, uma mulher ensina uma criança a agradecer o chocolate oferecido por um soldado australiano: «Diz obrigado ao senhor». Mas o «senhor» afinal é um «mister» e a mulher suspira: «E os portugueses? Quando chegam os portugueses?». Em Lahane, os bombeiros portugueses limpam e restauram o hospital. Paulo da Costa Martins, antigo funcionário da administração colonial, observa, incrédulo e comovido, as viaturas dos bombeiros do Sardoal, de Águeda e de Esposende e pergunta-me, timidamente: «São da Metrópole? Vieram da Metrópole?».

Estranhos são os desígnios e os «labirintos da saudade». Portugal deixou Timor, em 1975, mergulhado numa guerra civil e com as tropas indonésias a precipitarem-se para o vazio aberto pela fuga da administração colonial. Para trás ficou um povo esquecido e um território subdesenvolvido. Os estudos para o IV Plano de Fomento (1974/76) indicam que em Timor, em 1973, o Produto Interno Bruto per capita era inferior a três mil escudos / ano; que o Estado, o maior empregador do território, pagava 40 contos por ano a cada um dos dois mil funcionários públicos; que o nível alimentar da população era «extremamente deficiente e debilitante»; que as exportações estavam limitadas ao café e à copra; que o sector pesqueiro estava em plena regressão e que as indústrias extractivas eram insignificantes; que para a Timor Oil Ltd as reservas disponíveis «não justificavam» a exploração do petróleo.

Mas querem lá saber do PIB de 1973 os timorenses de 1999, após 24 anos de ocupação indonésia. Aliás, as contas que Portugal fez aos resultados da «indonesianização» também não são de molde a que os javaneses tenham deixado saudades: 48 por cento da população abaixo do limiar de pobreza; 52,8 por cento das crianças até aos cinco anos sofrendo de má nutrição e 10 por cento dos adultos de anemia e deficiência de vitamina A; taxa de mortalidade infantil de 57 por mil nascimentos com vida; esperança de vida de 46,7 anos para os homens e 48,4 para as mulheres. Tudo isto somado ao genocídio, à utilização de crianças e mulheres como «escudos humanos» para as operações militares de ocupação e «limpeza», à eliminação selectiva das elites, à esterilização de mulheres, à liquidação de todos os factores de identidade, à discriminação e humilhação na vida social. «Quando voltam os portugueses?». Portugal é para Timor-Leste uma referência e um mito. E acima de tudo, nestes tempos duríssimos de transição para o povo timorense, uma imensa expectativa.

Após a assinatura do acordo para a realização da consulta aos timorenses, Portugal traçou um Plano de Apoio a Timor-Leste no Período de Transição, prevendo três cenários: transição pacífica para a independência, vitória da chamada autonomia, ou interrupção do processo definido em Nova Iorque por uma situação de «violência generalizada», hipótese contida, aliás, em relatórios de diplomatas, alertas dramáticos da Resistência e da Igreja e notícias da imprensa.

A realidade no terreno ultrapassou as piores previsões e modificou todas as perspectivas traçadas e todas as contas feitas. João Gomes Cravinho, coordenador do grupo de trabalho que elaborou o relatório sobre o Apoio do Estado Português a Timor-Leste, diz-me em Darwin que as prioridades foram reconsideradas. «Timor tem necessidade, pelo menos, de 12 meses de ajuda humanitária, alimentar e para a reconstrução, o que altera todas as prioridades. Trata-se de uma verdadeira situação de emergência», acrescenta.

Xanana Gusmão, que a poucos dias da consulta aos timorenses anunciou um programa de política económica para a construção de um país independente, responde-me a uma pergunta, numa conferência de imprensa em Darwin, para dizer que os pontos essenciais do programa se mantêm, mas as linhas de intervenção têm de ser revistas por completo. «É o que vamos agora discutir, no CNRT, a nova ordem das prioridades», adianta.

Nas primeiras semanas de Outubro, a Missão das Nações Unidas para Timor-Leste / UNAMET, a INTERFET e o CNRT constituem uma Comissão Mista destinada à administração municipal de Díli. No final do mês, as Nações Unidas vão instalar no território uma Administração Transnacional, através da UNTAET, para o período de transição até à proclamação da independência. Mas, para já, esta Comissão Mista tem trabalho a fazer. David Winhurst, o porta-voz da UNAMET, explica-me que as primeiras preocupações dizem respeito ao estudo das complexas questões patrimoniais, num país ocupado e saqueado ao longo de um quarto de século. E de imediato, haverá que inventariar e impedir o saque dos edifícios da cidade.

O Palácio do Governo, por exemplo, passou intacto das mãos dos indonésios para a Força Multinacional. Mas já depois de arreada a bandeira vermelha e branca da Indonésia, o edifício foi devassado e saqueado e, por estes dias, era frequente ver nas ruas de Díli as mobílias do Palácio, empilhadas em carripanas ou equilibradas em motoretas, em mudanças para casas semi-destruídas dos bairros da cidade.

No sótão do Palácio, escuro e sufocante, jazia a memória da administração colonial portuguesa e da ocupação militar indonésia de Timor, um património documental insubstituível a caminho do irremediável esquecimento e da destruição. Amassados na poeira dos tempos e espezinhados pelas botas das tropas ocupantes antes de baterem em retirada, estavam ali cinco séculos de história - colonização e descolonização, ocupação e libertação, dos tempos do sândalo e das especiarias à época do petróleo -, o passado de um povo que agora começa a construir o futuro.

Timor é uma ilha rodeada de dor por todos os lados, neste final do século XX. A derradeira imagem que conservo, antes de deixar Díli, é a de crianças do bairro de Comoro, que perderam toda a família na onda de violência dos primeiros dias de Setembro de 1999. Acolhidas pelas Irmãs Carmelitas, as crianças de Comoro têm no passado das suas vidas breves um pesadelo terrível. Como futuro têm as palavras de uma canção que fala do sofrimento de um país de montanhas rodeado de mar, um país a construir, Timor Lorosae.

 


Insegurança à prova de bomba…

Em Setembro de 1999, Díli era uma cidade deserta patrulhada por tropas da força internacional de interposição constituída pelas Nações Unidas. A população timorense refugiara-se nas montanhas e na cidade os jornalistas abancavam onde podiam, numa cidade arrasada, por entre destroços fumegantes.

Eu tivera a sorte de ser acolhido por um grupo de jornalistas que chegara dois dias antes a Díli e ocupara a casa, abandonada, do padre da Clínica de Motael (na foto). Um luxo, com um fio de água que dava para encher meia banheira desde manhã até ao fim do dia, suficiente para uma rodada de duches de púcaro, e com electricidade. A questão é que a casa era vizinha do bairro ocupado pelos oficiais indonésios e, por esse motivo, a barbárie das Milícias não chegara ali. E lá estávamos, o Jorge Araújo e a Ana Baião (Independente), o Luciano Alvarez e o João Pedro Henriques (Público), o Mário Ramires (Expresso), o Leonel de Castro (Jornal de Notícias) e eu próprio, JPG (Diário Económico).

Durante o dia, cada um desenrascava-se como podia. Muitos dias me alimentei de um prato de arroz cozido, dado generosamente pela Irmã Margarida. À noite, com o recolher obrigatório a partir das 18 horas locais, depois de enviarmos os trabalhos para Lisboa, o Jorge Araújo disfarçava o «arroz nosso de cada dia» com um leve refogado, uma conserva, uns legumes. Ele partira um ou dois dias antes para Díli e pedira-me, pelo telefone-satélite, que lhe levasse de Darwin uma garrafa de azeite. O mais parecido que encontrei foi um spray de azeite. Mas os jantares eram o único momento de descontracção e confraternização e com frequência tínhamos convidados. Para além do jantar, os convivas desfrutavam da atracção da casa: um gigantesco crocodilo, que habitava um enorme tanque de águas turvas. Para as tropas da INTERFET, o crocodilo de Motael era mesmo o circo de Díli.

A casa era de uma insegurança á prova de bala ou de bomba numa das cidades mais perigosas do Mundo naqueles dias. De maneira que, cada dia, um de nós ficava a montar vigilância à casa, aos computadores e outro equipamento. Quer dizer: se a casa fosse atacada, o jornalista de sentinela era o primeiro a marchar, pois de maneira alguma poderia resistir.

Uma manhã, estava eu de sentinela, apresentou-se diante da bela varanda colonial da casa de Motael um indivíduo, falando razoavelmente português e que se disse na posse de valiosas informações sobre o paradeiro dos chefes das milícias que tinham escapado. Dispus-me a ouvi-lo mas o homem insistiu que seria preferível entrarmos em casa pois temia ser visto a falar com um jornalista português. Convidei-o a entrar e duas coisas não me passaram minimamente pela cabeça naquele momento: nem que o indivíduo era um aitarak dos que dias antes mutilaram e assassinaram um jornalista do Financial Times no bairro de Bécora, ali mesmo, em Dili; nem que o indivíduo apenas queria afastar-me de onde eu pudesse avistar o portão da casa. Como vim a saber, tratava-se pelo menos da segunda hipótese e talvez parcialmente da primeira.

As alegadas informações eram uma confusão, que repisava o que toda a gente sabia: que os dirigentes das Milícias, com as costas quentes pelos militares javaneses, andariam pelo bairro de Bécora, onde nem a tropa multinacional entrava à vontade. E disse. E dito, foi-se. Quando voltei à varanda vi que o portão de ferro da casa tinha ficado aberto. E só não o fui fechar porque um dos outros jornalistas residentes, o Leonel de Castro, repórter fotográfico do JN, vinha a entrar para recolher uma recarga de rolos fotográficos. Vinha com pressa pelo que trocámos breves palavras e ele voltou a sair, correndo o pesado portão de ferro. Foi então que uma explosão ecoou nos ares. Enquanto eu estivera dentro de casa, retido a ouvir uma conversa que não levou a nada, alguém armadilhara com explosivos o portão da casa dos jornalistas…

Não houve vítimas. E pouco depois, tropas da INTERFET analisaram os vestígios da armadilha montada no portão da casa e não tiveram dúvidas: era material militar indonésio.

 

Timor-Leste, Setembro / Outubro 1999

Texto de João Paulo Guerra, condensado
de reportagens para o Diário Económico,  Setembro e Outubro 1999

2 comentários:

Anónimo disse...

João Paulo Guerra,
Só hoje li este(s) texto(s). Maravilhoso trabalho jornalístico e magnífica sensibilidade na análise! Espero que tenhas tido oportunidade de voltar a Timor. Uma emoção que nem imagino. Como diz, meio no gozo um colega teu, continuam as obras e "qualquer dia isto não tem piadinha nenhuma". O poço da morte da casa dos Carrascalão foi tapado para não se tornar lugar de peregrinação e a casa é hoje o mais importante centro cultural de Díli: a Fundação Oriente; com um orçamento ínfimo a Graça vai renovando atividades semanalmente. A embaixada parece que também não tem cheta; mas não tem alma, o que é bem pior... Como anciã branca, passo o dia a fugir de timorenses que não se contentam com uma retribuição sorridente ao seu "bôtardi" e me querem beijar a mão. Ao contrário da Díli deserta que descreveste, o primeiro "choque" são as crianças: milhares e milhares e milhares... Com fardas identificativas das escolas, que são uma beleza, nada daquelas coisas que nós tivemos durante o fascismo. E perguntas-te: se continua a ser tão deficiente o abastecimento de água, como conseguem estar sempre tão aprumados, tão limpinhos, numa terra onde a diferença de temperatura do dia para a noite tem dias de ser insignificante, um bafo peganhento que não vê vento nem refresco à beira mar? (Por falar em beira-mar: vi hoje o meu primeiro crocodilo de água salgada, mesmo em frente do Palácio, agora do Governo. Parecia um adereço de filme rasca, com uma cauda de escamas largas amarelo limão-maduro e manchas escuras. Naquele sítio em que agora se acede aos barcos para Ataúro e Oe-Cusse, onde as crianças brincam nuas na água... O National Geographic está cheio de cenas arrepiantes de bichos como este - que era relativamente pequeno, com cerca de 2 metros e meio - que, num piscar de olhos levavam umas dezenas de timorenses para dentro de água, para se banquetear, tão perto lhe estavam das mandíbulas. Mas nada: é mesmo um país de brandos contrastes. Agora, querem turismo, com estes espécimes completamente descontrolados?!? Toda a costa tem avisos amarelos a dizer que há crocodilos no mar. É verdade: em um ano e meio, nunca tinha visto nenhum. E se fosse um encontro dentro de água, comigo a flutuar por cima do mais belo recife de coral do mundo, o sítio onde morrer tranquilo seria acabar literalmente em beleza e em paz com o mundo?...)
Podia continuar, mas prefiro que seja um dia que voltes a Díli - porque Timor te merece! Senão, havemos de nos ver no Alentejo, na Boa Fé. Abraço grande Ana Cardoso Pires

João Paulo Guerra disse...

Não voltei a Timor e dificilmente voltarei, pois não vejo nenhum jornal, rádio ou tv que me envie ali à esquina quanto mais ao outro lado do mundo.
Mas o reencontro em Freguises ou na Boa-Fé fica combinado.
João Paulo Guerra