The Count, ou seria Aramis, um deles foi enviado a Londres, nos anos 70, com a missão de raptar um
ex-ministro tanzaniano. E a missão não foi impossível
Por João Paulo Guerra
Diário Económico, Outubro 2000

- O engenheiro Jorge Jardim perguntou-me se eu via com
bons olhos colaborar com ele com vista a uma independência multirracial de
Moçambique.
Tudella aceitou, embora sabendo que «iria correr alguns
riscos». Conhecia Jardim de Moçambique, de onde partira no início da década
para construir uma carreira artística, e estava de acordo com os projectos do
empresário em relação ao futuro do território. Havia uma alternativa para a
política de guerra colonial: negociar a independência enquanto Portugal tivesse
força para apresentar e impor condições que salvaguardassem os interesses da
comunidade portuguesa.
Tudella, «um africano, branco, nascido em Moçambique»,
como o apresentara a imprensa, viajava então por palcos portugueses,
brasileiros, espanhóis, venezuelanos, sul-africanos. Os meios que frequentava
abriam-lhe as portas para o «trabalho sigiloso» em que se aventurou. Jorge
Jardim, com uma longa carreira de actividades secretas, ensinou-lhe «algumas
técnicas» para o seu novo trabalho: cifrar e decifrar mensagens, técnicas
conspirativas para encontros e desencontros.

O seu disfarce para os contactos que então travou era o
de um playboy internacional que
frequentava hotéis de cinco estrelas e se passeava em limousines.
- Digamos que esse disfarce vinha ao encontro dos meus maiores
e mais íntimos desejos. Eu era pago principescamente para frequentar os
melhores lugares do mundo».
E se é certo que tinha a consciência de que «corria
alguns riscos», também era verdade que sentia as costas quentes.
- Quando marcava um encontro, ou esperava um contacto, no
hotel tal, às tantas horas, eu sabia que, no quarto ao lado, estaria alguém
para me proteger. Mas por vezes cheguei a pensar que, se as coisas corressem
mal, esse «alguém» poderia não chegar a tempo.
Para os seus contactos, João Maria Tudella usava
diferentes pseudónimos. «The Count», para os ingleses, «Sinatra», para os
americanos, «Aramis» para os franceses, ou simplesmente «414» para os árabes.
Do outro lado estavam «pessoas».
- Os serviços secretos são constituídos por pessoas.
Tudella admite que teve contactos privilegiados com os
serviços franceses dirigidos pelo Conde de Marénches. E também não exclui que
os seus contactos tenham passado para lá do Muro de Berlim.
- Nos bastidores, nem sempre os inimigos são inimigos.
Mas foi a homens dos serviços franceses que, no início
dos anos 70, João Maria Tudella, aliás «The Count», entregou em Paris um
ex-ministro dos Negócios Estrangeiros tanzaniano, dias antes «desviado» em
Londres.
O rapto
![]() |
Jorge Jardim, conspirador |

- Em Paris, à chegada, alguém me daria o braço, amigavelmente,
e me diria uma senha à qual eu responderia com uma contrassenha. Era o contacto
a quem teria que entregar o ministro da Tanzânia.
A «Operação Óscar» não ficou por ali. O ex-ministro
tanzaniano, que se deixou raptar, esteve posteriormente, com outra identidade,
instalado num hotel de Lisboa, onde manteve contactos com Jorge Jardim. Mas aí
já Tudella saíra de cena. As acções eram compartimentadas.
- O engenheiro Jorge Jardim só dizia o que queria que os
outros soubessem.
Os planos de Jardim culminaram, em Setembro de 1973, com
a assinatura, em Lusaka, de um acordo com vista a uma proclamação de
independência de Moçambique, negociada com os países limítrofes e com a
FRELIMO. O acordo foi negociado à margem do poder instalado em Lisboa e os
contactos desenvolvidos por Tudella tiveram que iludir a vigilância da PIDE.
- Contactava com o engenheiro Jardim por telex e correio,
mandando e recebendo informações com pistas falsas destinadas a iludir a PIDE –
recorda João Maria Tudella. - Os verdadeiros relatórios eram enviados em código.
![]() |
Kambona, o raptado |
Já depois do 25 de Abril, com Jardim alvo de um mandado
de captura emitido pela Junta de Salvação Nacional, Tudella foi incumbido de
apresentar o Acordo a Otelo Saraiva de Carvalho. O comandante do COPCON recebeu
o documento com «entusiasmo», diz Tudella. E acrescenta que o seu «velho amigo»
Otelo se dispôs a encontrar-se com Jorge Jardim em Espanha ou na Suazilândia,
mas não compareceu a qualquer dos encontros. A verdade, reconhece Tudella, é
que para a parte moçambicana, representada pela FRELIMO, o Acordo de Lusaka e o
próprio Jorge Jardim tinham deixado de ser necessários como meios para chegar
ao poder.
Para João Maria Tudella, era o momento para voltar a sair
de cena.
De Kanimambo à Liberdade
Em 1968, o Natal dos Hospitais era o único programa de
variedades transmitido em directo pela RTP. E foi no Natal dos Hospitais, em
directo pela televisão e para uma plateia onde pontificavam os bonzos da TV
única, que João Maria Tudella cantou «Cama 4, Sala 5», de José Carlos Ary dos
Santos e Nuno Nazareth Fernandes.
Cantarei livremente // e direi ao meu povo // que não
caia doente // que não morra de novo.
Ramiro Valadão não gostou do refrão e, no dia seguinte,
Melo Pereira comunicou a Tudella, em nome do presidente da RTP: «Você arruinou
a sua carreira». Só voltou à televisão em 1987, pela mão de Carlos Pinto
Coelho.
João Maria Tudella chegara a Lisboa, vindo de Lourenço
Marques, no início dos anos 60, trazendo um grande êxito popular no reportório:
«Kanimambo». O Diário Popular apresentou-o como «uma voz que pode estar na
Broadway, Pigalle ou Estoril». O que é certo é que os discos, os espectáculos
em palco e na TV, as digressões em Portugal e pelo mundo se multiplicaram e Tudella
somou êxitos com um reportório de cançonetas ligeiras.
Em 1968, Tudella deu uma grande e corajosa volta ao texto
do reportório, no qual passou a incluir poemas de José Gomes Ferreira:
«Fuzilaram um homem num país distante…», alusivo ao assassínio de Humberto
Delgado; de Reinaldo Ferreira: «Quero um cavalo de várias cores» e «Flor de
lapela»; ou de Manuel Alegre: «Liberdade». O disco saiu em 1969 e, enquanto as
censuras não deram por isso, algumas das canções passaram em alguma rádio.
João Maria Tudella (Lourenço Marques, 1929 – Cascais,
2011)
Entrevista publicada no Diário Económico, Outubro 2000
Sem comentários:
Enviar um comentário