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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

LER O PAÍS: Passado o Caldeirão

 «Algarve, para mim, é sempre um dia de férias.»
Miguel Torga

Por João Paulo Guerra 

Torga, que desta «nesga de terra debruada de mar» apreciava acima de tudo «o ímpeto, a convulsão» de Trás-os-Montes e «o fôlego, a extensão do alento» do Alentejo, no Algarve não se considerava «obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana», apetecia-lhe «tudo menos ser responsável e ético». Passado o Caldeirão era como se lhe tirassem «uma carga dos ombros».



«Hospedado numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente (...) Os guias e os prospetos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcário onde o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem que relembre no Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo (...) Vou, mas fico na minha. Em toda a parte a mesma volúpia me invade...»
Outra foi a viagem de Raúl Brandão, ao fim da rota de «Os Pescadores» iniciada em Caminha. Em Olhão, o autor seguiu «por um novelo de ruas pelos dois bairros típicos, o da Barreta e o da banda do Levante» e escreveu sobre marítimos generosos - «é que no mar os homens correm os mesmos perigos» - e sobre mulheres «trigueiras, de olhos negros e um lindo sorriso reservado» e um «lume no olhar».


«É no cais, ao pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para embarque, que eu assisto todos os dias ao espetáculo da chegada dos barcos e que vejo os peixes, as redes e o leilão (...) Tudo vem ter ao cais - peixes esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária -, do rio o linguado, o pregado, o peixe-rei, o xarroco, os capitães, os alcabrozes, os robalos, etc.; e do mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de galhudos, de monstruosas raias (...) Mas a abundância e a riqueza, a fartura, é a sardinha».
E o autor despede-se da «brancura imaculada dos terraços» e deixa já com saudade «esta luz e esta terra embruxada». Se ficasse, teria ali uma casa «no pátio caiado», «duas escravas» para lhe servirem «frutos translúcidos acabados de apanhar», um «barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos» e, de noite, «este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher» e dormiria «na soteia sob as estrelas». Mas a viagem segue, para a pesca do atum, em Tavira, para o «deslumbramento da baía», em Lagos, para o «cabo do mundo», em Sagres.

Manuel da Fonseca também viajou de Sotavento para Barlavento nas suas «Crónicas algarvias», em reportagem para o jornal «A Capital», anos 60.


Vila Real de Santo António: «espanhóis, sempre muitos espanhóis. Dão uma grande alma ao comércio». Monte Gordo: «todos com o vago ar taciturno de quem cumpre o dever de estar de férias». Olhão: «Isto está uma miséria de peixe! Não há sardinha, o atum escasseia. Nas fábricas de conserva estão a dar duas horas por dia ao pessoal». Faro: «E, se a costa do Algarve tem as mais belas praias do país, a ilha de Faro é das mais belas praias do Algarve». Loulé: «Trigo e alfarroba, hortas, pomares... Indústria? Pouca e à maneira dos tempos antigos. E artesanato. Atividades para vender nas feiras». Albufeira: «as arribas tapam-se de casas, num amontoado de paredes de cal contra o azul do céu». Portimão: «os reflexos do sol brilham, inquietos, sobre a água, o ar cheira a peixe e a sal. Uma enviada está à descarga». Lagos: «Muitos alemães - diz-me o empregado de mesa - e ingleses. Franceses poucos. Mas isto agora está a animar. E já não é sem tempo». Sagres: «O vulto do infante ainda anda por aqui; a lenda juntou-o para sempre a este promontório».
Manuel Teixeira Gomes, que foi Presidente na I República e escritor, também percorreu, a título particular e oficial, a região natural do Algarve, terra de mouras encantadas, de lendas e de amendoeiras. Mudou o tempo e inquietava-se o autor de «Agosto Azul»: «Penso no mal que este tempo deverá fazer às amendoeiras do Algarve, ainda em flor. Mas no Algarve nunca chove deveras e, mesmo sem flor, as amendoeiras são lindas. É vê-las no Verão, com o sol oblíquo a dar-lhes na ramagem, levantando uma poeira doirada que enche o fundo às ondulações da paisagem».

Lídia Jorge tem também o Algarve de algum modo tatuado na prosa de «O Dia dos Prodígios».  Uma escrita dos nossos dias mas de todos os tempos, hoje e antes. 
«Antes o arreeiro trazia outro peixe. E o arreeiro disse. Antes toda a gente só falava da frescura dele. E dava gosto vendê-lo. Antes bebia-se mais Lagoa, porque nesta venda falava-se de coisas simples».        


João Paulo Guerra, 
Diário Económico, 1 Outubro 1998           
Versão para papel de jornal da série de reportagens Viagens com Livros                     

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