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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Diz que é uma espécie de currículo - II

        … No entanto, o semanário acabou antes de começar. Foi assim.

Número 0 do AE,
imagem da Galeria Virtual do Museu da Imprensa
Deixei o RCP, na Rua Sampaio e Pina, num dia de Novembro de 1973, mas no dia seguinte estava a trabalhar na rua Joaquim António de Aguiar, uma paralela, duas ruas adiante, descendo a Rodrigo da Fonseca, passando o Hotel Ritz, virando à direita, na redacção do semanário Actividades Económicas, o AE, um projecto financiado pelos irmãos Agostinho e José da Silva, accionistas maioritários da Torralta. Dinheiro não faltava: redacção com razoáveis ordenados para a época, equipamentos novinhos em folha que fariam do AE o primeiro jornal português com fotocomposição na redacção. E projecto também havia.
O escritor e jornalista Mário Ventura Henriques, que fazia a ligação entre a administração e a redacção, disse-nos que se tratava de um semanário para «fazer concorrência ao Expresso, pela esquerda». 


E era assim o destino de um jornalista no regime salazarista: O Expresso começara a publicar-se em Janeiro de 1973 e eu declinara o convite pessoal de Francisco Pinto Balsemão para fazer parte da redacção, pois isso implicaria que deixasse a rádio e o RCP. No fim desse ano, porém, fiquei sem RCP, e anteriormente tinha ficado sem Expresso. Só me faltava ficar também sem AE. Da redacção do AE faziam parte, entre outros, José Saramago, Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Helena Neves, Lino de Carvalho, João Paulo Guerra. O director era o economista Herberto Goulart.
No AE, enquanto a redacção fazia a rodagem, foi lançada uma dispendiosa campanha publicitária, executada pela agência Espiral e da autoria do criativo José Carlos Ary dos Santos, que incluía anúncios no horário nobre da RTP. O jornal foi apresentado num exuberante cocktail no Hotel Ritz.
     Ao fim de dois meses de rodagem, a redacção fez o número 00, depois o número 0 - manchete: Vida cara! - e, por fim, o número 1. A manchete, O Pão é Político, remetia para uma reportagem minha sobre a iminência do aumento do preço do pão. «O pão é político» era o desabafo de uma das minhas fontes. Salazar nunca quisera mexer mas Marcelo Caetano, pressionado pelos industriais de moagem, admitia subir. Pelo que o antetítulo antecipava que vinha aí uma «fornada de aumentos». Mas o número 1 do AE foi suspenso pela Censura, aliás, Exame Prévio. A administração decidiu parar para reflectir e negociar com o Governo.
Que se passava?
Ao tempo era mais fácil para um investidor comprar o alvará de um jornal que tivesse deixado de publicar-se do que vencer as dificuldades burocráticas e administrativas imensas para lançar um título novo. Foi isso que os accionistas da Torralta fizeram: compraram o título Actividades Económicas a familiares do Marechal Carmona, Presidente da República nos alvores do Estado Novo – nos alvores e nos 23 anos seguintes.
Ao mesmo tempo que a Censura devastou o primeiro número do AE - até cortaram a previsão do tempo, redigida pelo Saramago - os antigos proprietários do jornal comunicaram aos accionistas que, bem vistas as coisas, pensando melhor, não autorizavam que o título fosse usado em nova publicação. Agostinho e José da Silva ofereceram mais dinheiro pelo título, sobre o preço por que o tinham comprado. Mas com a Direcção-Geral de Informação a tomar parte nas conversações, a família Carmona abdicou do chorudo negócio.
«Eram famílias ligadas ao regime, supomos que foram pressionadas», disse o jornalista Avelino Rodrigues, em entrevista ao Diário Económico, em Abril de 1999. E a decisão dos accionistas da Torralta foi "suspender" o projecto. Quanto aos jornalistas, alguns aceitaram a proposta da administração e foram colocados em outras publicações do Grupo – revistas de promoção turística, de arquitectura, de espectáculos e de automobilismo –, mas a maioria foi desmobilizada e indemnizada nos termos do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas. Até aconteceu que os jornalistas sairam da sede da Torralta, na Duque de Loulé, com cheques nos bolsos que davam para comprar automóveis, foram todos almoçar e no fim não havia liquidez para pagar a conta do restaurante O Telheiro
O AE, aguardado com a expectativa que a campanha de publicidade tinha criado, acabou antes de começar.  
Fiquei em exclusivo com o gancho no Notícias da Amadora. Eu pensara que a rádio tinha acabado para mim mas agora começava a perceber que a imprensa também não me seria fácil.
Em Março e Abril de 1974 eu vivia, portanto, da indemnização do AE e de uma retribuição simbólica pelo meu trabalho no NA, onde chefiava uma redacção de três redactores. A redacção era constituída, para além de um corpo de colaboradores, pela Helena Neves e dois jovens estagiários, José Freire Antunes, mais tarde conhecido dirigente do MRPP, depois deputado do PSD e investigador da história contemporânea portuguesa, e Muradali Mamadhussen, moçambicano que após a independência de Moçambique foi chefe de gabinete de Samora Machel e com ele morreu na queda do avião presidencial em 19 de Outubro de 1986. O NA era dirigido, na sua última fase, por Carlos Carvalhas, uma vez que a Censura não aceitava a designação para o cargo do proprietário, Orlando Gonçalves, e rejeitara igualmente o nome do economista Sérgio Ribeiro.
A edição do NA ainda com um apelo relacionado
com o saque da PIDE e já comas duas colunas sobre os
acontecimentos do 25 de Abril, ditadas pelo telefone, em directo
da baixa de Lisboa para o linotipista.
Exemplar "picado" da Internet. 
O NA definia-se como um semanário popular na linha da imprensa alternativa da qual faziam parte títulos de um leque menos ou mais radical, como o Jornal do Fundão, Independência de Águeda, Opinião, Jornal do Centro ou o Comércio do Funchal, com uma vida atribulada pelo estrangulamento financeiro e pela vigilância feroz da Censura. 
O jornal funcionava numa dependência da pequena empresa tipográfica com a mesma designação, Notícias da Amadora, na Damaia, e foi para aí que me dirigi na manhã de 18 de Abril de 1974, uma quinta-feira, dia de fecho da edição. O portão da tipografia estava fechado, o que não era hábito, e quando dois desconhecidos façanhudos vieram abrir percebi num relance o que se estava a passar. Uma brigada da PIDE/DGS tinha ocupado as instalações, que foram vasculhadas ao longo de toda a manhã. Quem batia à porta, entrava e já não saía. Nem o carteiro escapou.
Soube depois que, nesse mesmo dia, tinham sido presos diversos colaboradores da Seara Nova e outros jornalistas e colunistas habituais da imprensa alternativa. Do Notícias da Amadora, para além de quilos de papelada – no essencial boletins e folhetos sindicais impressos na tipografia – e até mesmo de toneladas de granéis de composição em chumbo, a brigada da PIDE/DGS levou para Caxias o proprietário do jornal, Orlando Gonçalves, e a jornalista Helena Neves. Sérgio Ribeiro, colaborador do jornal, já fora preso em casa.
«Era forçoso reprimir», escreveu Marcelo Caetano no seu Depoimento, mais tarde, já no exílio do Rio de Janeiro, referindo-se à «onda de subversão» que no seu entender alastrava por essa altura no país e englobava «as canções de protesto e as baladas insinuadoras», o «teatro de amadores», o «cinema e a imprensa», entre a qual destacava «sobretudo o Notícias da Amadora». Menção honrosa de Caetano para o velho NA.
A edição do NA que fechava na quinta-feira da semana seguinte à ocupação pela PIDE apresentava-se problemática. A brigada da PIDE causara estragos assinaláveis e o futuro do jornal apresentava-se sombrio. A prisão de Orlando Gonçalves desatara os nós entre a administração e a redacção. Sem poder fazer qualquer alusão à invasão do jornal pela PIDE/DGS e sem meios materiais e humanos suficientes para escrever, compor, imprimir, distribuir e, acima de tudo, pagar a edição habitual do jornal, redigi para a primeira página um enigmático apelo - "Apoie o NA" - à compreensão e ao apoio dos leitores, procurando que as entrelinhas dissessem mais alguma coisa que as linhas a enviar à Censura. Mas uma semana depois, manhã de 25 de Abril de 1974, o Notícias da Amadora avançou para a máquina sem mandar à Censura duas colunas de última hora, de alto a baixo na primeira página, dando conta do movimento militar dessa madrugada.
Ao sair da cadeia de Caxias, no dia seguinte, Orlando Gonçalves viu-me entre a multidão e gritou-me: “Vamos passar o Notícias da Amadora a diário”. Sonhos de Abril.
E quatro dias depois, eu voltava à rádio. Para mim, foi para isso que se fez o 25 de Abril: para os meus filhos não irem à guerra e para eu voltar à rádio.
Álvaro Belo Marques em 1998
Quem me chamou foi o Álvaro Belo Marques, director comercial do jornal República que os militares tinham requisitado para os ajudar a dirigir a Emissora Nacional, de onde ele tinha sido afastado anos antes pela Ditadura. Entrei pela primeira vez nos estúdios da EN, no velho convento da Rua do Quelhas, na tarde de 30 de Abril, para só sair ao fim da manhã de 2 de Maio, para tomar um banho e mudar de roupa. Entretanto organizara e editara a reportagem em directo do 1º de Maio de 1974: 12 horas em directo, das quais fiz uma edição para caber num disco LP que a EN editou. Toda a operação, reportagem e edição do disco, foi dirigida pelo Álvaro Belo Marques. 
Capa do disco do Primeiro 1º de Maio
editado pela EN. 
Para reforçar o apoio à direcção militar foram chamados, uma vez que estavam na tropa e se tratava apenas de os requisitar, Jaime Gama, aspirante miliciano na Figueira da Foz, e José Nuno Martins, soldado-cadete em Mafra. Entraram para a EN, nas mesmas circunstâncias, convidados ou requisitados pelos militares, José Jorge Letria, Carlos Albino, Eduarda Ferreira, Francisco Munhoz, Fátima Mendonça, Manuel Tomás, Álvaro Esteves e posteriormente Manuel Alegre. Esse grupo veio a constituir uma chamada Comissão Civil, que assessorava a direcção militar da EN. A primeira medida deste grupo de consultores, sob minha proposta, foi readmitir os despedidos da EN por motivos políticos, pelo que regressaram à Emissora, entre outros, Etelvina Lopes de Almeida, Francisco Igrejas Caeiro e o jurista António Zilhão.
Nos primeiros tempos, enquanto a Comissão Civil teve condições para trabalhar, antes de ser completamente paralisada por toda a espécie de disputas e quezílias, pessoais e de grupos, mas também pela inércia de uma imensa máquina burocrática, foram reorganizados alguns serviços da direcção de programas e dos noticiários, redefinidos os serviços de notícias, sob os pontos de vista formais e de conteúdos, bem como estabelecidos princípios, métodos e procedimentos mais ágeis para o funcionamento da rádio do Estado, em plena revolução. 
A Emissora Nacional na Rua do Quelhas

Também fiz reportagens. Mas acabei num chamado Centro de Estudos e Planeamento da Direcção de Programas num edifício distante dos estúdios.
Foi bonita a Festa, pá. Mas quando a Festa acabou eu fiquei apenas com o meu nome num papel afixado á porta das instalações, impedindo-me a entrada. Durante anos reclamei para tribunais e para a tutela; a única resposta que obtive foi da primeira-ministra Maria de Lurdes Pintasilgo, informando-me que o meu recurso fora considerado e remetido para o ministro da tutela… que por coincidência era o indivíduo que havia assinado o meu despedimento da EN.


O Diário no fundo da mina do Pejão. Foto de Bruno Neves
Como alguns dos muitos  saneados de Novembro de 75, comecei a trabalhar na redacção do jornal O Diário, na delegação da cidade do Porto, vindo mais tarde para Lisboa. Era um jornal fundado por uma empresa do grupo PCP e Álvaro Cunhal disse-me, mais de uma vez que nos cruzámos, que O Diário, tal como era, sob a direcção de Miguel Urbano Rodrigues, não era o jornal que o PCP tinha idealizado, embora nunca adiantasse nada sobre tal projecto. Mas quando mudou a direcção e a chefia e o novo director quiseram mudar o jornal – mais profissional, mais aberto, mais credível –, a empresa do grupo PCP deitou mão pela primeira vez ao pacote laboral de Cavaco Silva para despedimento colectivo.

Ao longo de todos estes anos - entre as décadas de 60 e  80 - também colaborei em outra imprensa: escrevi no suplemento Cena 7, de A Capital, na Mosca, do Diário de Lisboa,  na Memória de Elefante, a convite do meu amigo João Afonso Almeida, que dirigia a publicidade e relações públicas da publicação. 
Ficha na PIDE / ANTT


Eu também participara, em 1971, na criação de uma Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão, o que pôs a PIDE, a censura, os SNI's de olho em mim. Como jornalista e cidadão eu tinha cadastro e estava numa lista negra do Governo e da PIDE/DGS. E qual era o cadastro? Para além de dois despedimentos por motivos políticos, fizera parte do núcleo fundador da Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão. A Comissão nasceu e morreu entre 1971 e 1972 e produziu o texto de um Manifesto, abaixo-assinado por gente ligada aos jornais, rádio, televisão, cinema, teatro, literatura, etc. Da rádio éramos muito poucos e ficámos mais expostos: João Alferes Gonçalves, Jorge Dias, Jorge Gil, Luís Filipe Costa e João Paulo Guerra.

Nos arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo, há uma denúncia pidesca de uma intervenção que fiz, numa iniciativa cultural promovida pelo Jornal do Fundão, em 23 de Maio de 1972. Escreve e assina o bufo, um agente de 2ª ordem, que «um tal João Paulo Guerra, profissional de rádio, ao fazer uso da palavra, por várias vezes, teve apenas em vista criticar o Regime Político Vigente». 
O documento tem um outro, apenso ao original, com a informação: «O seu nome consta do Manifesto da “Comissão de Defesa da Liberdade de Expressão”, datado de Maio de 1971 e arquivado na Pasta de organizações oposicionistas». Outra vítima desse pide de 2ª, na sessão, foi o magistrado Dr. Laborinho Lúcio. 
Deixei O Diário num dia, comecei a trabalhar para o Público poucos dias depois, embora à peça. Estive três meses a colaborar no Público, ganhei um Prémio de jornalismo instituído pela Secretaria de Estado para a Modernização Administrativa com uma reportagem sobre a burocracia. Título: "E não se pode exterminá-la?" 
Mas a o melhor desta reportagem sobre a burocracia veio em post scriptum. Na cerimónia para entrega do Prémio, recebi uma carta informando-me que a Secretaria de Estado do Tesouro não libertara a verba correspondente ao Prémio pecuniário criado pela Secretaria de Estado para a Modernização Administrativa.
Era a resposta ao título da minha reportagem: não se podia exterminar a burocracia. Quando recebi o prémio para a reportagem de imprensa que saiu no Público, já estava a trabalhar noutra empresa e noutro meio.
Com efeito…

(continua) 

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