… No entanto, o semanário acabou antes
de começar. Foi assim.
Número 0 do AE, imagem da Galeria Virtual do Museu da Imprensa |
O escritor e jornalista Mário Ventura Henriques, que fazia
a ligação entre a administração e a redacção, disse-nos que se tratava de um
semanário para «fazer concorrência ao Expresso,
pela esquerda».
E era assim o destino de um jornalista no regime salazarista: O Expresso começara a publicar-se em Janeiro de 1973 e eu declinara o convite pessoal de Francisco Pinto Balsemão para fazer parte da redacção, pois isso implicaria que deixasse a rádio e o RCP. No fim desse ano, porém, fiquei sem RCP, e anteriormente tinha ficado sem Expresso. Só me faltava ficar também sem AE. Da redacção do AE faziam parte, entre outros, José Saramago, Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Helena Neves, Lino de Carvalho, João Paulo Guerra. O director era o economista Herberto Goulart.
E era assim o destino de um jornalista no regime salazarista: O Expresso começara a publicar-se em Janeiro de 1973 e eu declinara o convite pessoal de Francisco Pinto Balsemão para fazer parte da redacção, pois isso implicaria que deixasse a rádio e o RCP. No fim desse ano, porém, fiquei sem RCP, e anteriormente tinha ficado sem Expresso. Só me faltava ficar também sem AE. Da redacção do AE faziam parte, entre outros, José Saramago, Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Helena Neves, Lino de Carvalho, João Paulo Guerra. O director era o economista Herberto Goulart.
No AE, enquanto a
redacção fazia a rodagem, foi lançada uma dispendiosa campanha publicitária,
executada pela agência Espiral e da autoria do criativo José Carlos Ary dos
Santos, que incluía anúncios no horário nobre da RTP. O jornal foi apresentado
num exuberante cocktail no Hotel Ritz.
Ao fim de dois meses de rodagem, a redacção fez o número 00, depois o número 0 - manchete:
Vida cara! - e, por fim, o número 1. A manchete, O Pão é Político, remetia para uma reportagem minha sobre a
iminência do aumento do preço do pão. «O
pão é político» era o desabafo de uma das minhas fontes. Salazar nunca
quisera mexer mas Marcelo Caetano, pressionado pelos industriais de moagem, admitia subir.
Pelo que o antetítulo antecipava que vinha aí uma «fornada de aumentos». Mas o número 1 do AE foi suspenso pela Censura,
aliás, Exame Prévio. A administração
decidiu parar para reflectir e negociar com o Governo.
Ao tempo era mais fácil para um investidor comprar o alvará de um jornal que tivesse deixado de publicar-se do que vencer as
dificuldades burocráticas e administrativas imensas para lançar um título novo.
Foi isso que os accionistas da Torralta fizeram: compraram o título Actividades Económicas a familiares do
Marechal Carmona, Presidente da República nos alvores do Estado Novo – nos
alvores e nos 23 anos seguintes.
Ao mesmo tempo que a Censura devastou o primeiro
número do AE - até cortaram a previsão do tempo, redigida pelo Saramago - os antigos
proprietários do jornal comunicaram aos accionistas que, bem vistas
as coisas, pensando melhor, não autorizavam que o título fosse usado em nova
publicação. Agostinho e José da Silva ofereceram mais dinheiro pelo título,
sobre o preço por que o tinham comprado. Mas com a Direcção-Geral de Informação
a tomar parte nas conversações, a família Carmona abdicou do chorudo negócio.
«Eram famílias
ligadas ao regime, supomos que foram pressionadas», disse o jornalista
Avelino Rodrigues, em entrevista ao Diário
Económico, em Abril de 1999. E a decisão dos accionistas da Torralta foi "suspender" o projecto. Quanto aos jornalistas, alguns aceitaram a proposta da
administração e foram colocados em outras publicações do Grupo – revistas de
promoção turística, de arquitectura, de espectáculos e de automobilismo –, mas
a maioria foi desmobilizada e indemnizada nos termos do Contrato Colectivo de
Trabalho dos jornalistas. Até aconteceu que os jornalistas sairam da sede da Torralta, na Duque de Loulé, com cheques nos bolsos que davam para comprar automóveis, foram todos almoçar e no fim não havia liquidez para pagar a conta do restaurante O Telheiro.
O AE, aguardado com a expectativa que a campanha de publicidade tinha criado, acabou antes de começar.
O AE, aguardado com a expectativa que a campanha de publicidade tinha criado, acabou antes de começar.
Fiquei em exclusivo com o gancho no Notícias da Amadora. Eu pensara que a
rádio tinha acabado para mim mas agora começava a perceber que a imprensa
também não me seria fácil.
Em Março e Abril de 1974 eu vivia, portanto, da
indemnização do AE e de uma
retribuição simbólica pelo meu trabalho no
NA, onde chefiava uma redacção de três redactores. A
redacção era constituída, para
além de um corpo de colaboradores, pela Helena Neves e dois jovens
estagiários, José Freire Antunes, mais tarde conhecido dirigente do MRPP,
depois deputado do PSD e investigador da história contemporânea portuguesa, e
Muradali Mamadhussen, moçambicano que após a independência de Moçambique foi
chefe de gabinete de Samora Machel e com ele morreu na queda do avião
presidencial em 19 de Outubro de 1986. O NA
era dirigido, na sua última fase, por Carlos Carvalhas, uma vez que a Censura
não aceitava a designação para o cargo do proprietário, Orlando Gonçalves, e
rejeitara igualmente o nome do economista Sérgio Ribeiro.
O NA definia-se
como um semanário popular na linha da
imprensa alternativa da qual faziam parte títulos de um leque menos ou mais
radical, como o Jornal do Fundão,
Independência de Águeda, Opinião, Jornal do Centro ou o Comércio do Funchal, com uma vida
atribulada pelo estrangulamento financeiro e pela vigilância feroz da
Censura.
O jornal funcionava numa dependência da pequena empresa
tipográfica com a mesma designação, Notícias
da Amadora, na Damaia, e foi para aí que me dirigi na manhã de 18 de Abril
de 1974, uma quinta-feira, dia de fecho da edição. O portão da tipografia estava
fechado, o que não era hábito, e quando dois desconhecidos façanhudos vieram
abrir percebi num relance o que se estava a passar. Uma brigada da PIDE/DGS
tinha ocupado as instalações, que foram vasculhadas ao longo de toda a manhã.
Quem batia à porta, entrava e já não saía. Nem o carteiro escapou.
Soube depois que, nesse mesmo dia, tinham sido presos
diversos colaboradores da Seara Nova
e outros jornalistas e colunistas habituais da imprensa alternativa. Do Notícias da Amadora, para além de quilos
de papelada – no essencial boletins e folhetos sindicais impressos na
tipografia – e até mesmo de toneladas de granéis de composição em chumbo, a
brigada da PIDE/DGS levou para Caxias o proprietário do jornal, Orlando
Gonçalves, e a jornalista Helena Neves. Sérgio Ribeiro, colaborador do jornal,
já fora preso em casa.
«Era forçoso reprimir»,
escreveu Marcelo Caetano no seu Depoimento,
mais tarde, já no exílio do Rio de Janeiro, referindo-se à «onda de subversão» que no seu entender
alastrava por essa altura no país e englobava «as canções de protesto e as baladas insinuadoras», o «teatro de amadores», o «cinema e a imprensa», entre a qual
destacava «sobretudo o Notícias da
Amadora». Menção honrosa de Caetano para o velho NA.
A edição do NA
que fechava na quinta-feira da semana seguinte à ocupação pela PIDE
apresentava-se problemática. A brigada da PIDE causara estragos assinaláveis e
o futuro do jornal apresentava-se sombrio. A prisão de Orlando Gonçalves
desatara os nós entre a administração e a redacção. Sem poder fazer qualquer
alusão à invasão do jornal pela PIDE/DGS e sem meios materiais e humanos
suficientes para escrever, compor, imprimir, distribuir e, acima de tudo, pagar
a edição habitual do jornal, redigi para a primeira página um enigmático apelo - "Apoie o NA" - à compreensão e ao apoio dos
leitores, procurando que as entrelinhas dissessem mais alguma coisa que as
linhas a enviar à Censura. Mas uma semana depois, manhã de 25
de Abril de 1974, o Notícias da Amadora avançou para a máquina sem mandar à Censura
duas colunas de última hora, de alto a baixo na primeira página, dando conta do
movimento militar dessa madrugada.
Ao sair da cadeia de Caxias, no dia seguinte, Orlando
Gonçalves viu-me entre a multidão e gritou-me: “Vamos passar o Notícias da Amadora a diário”. Sonhos de Abril.
E quatro dias depois, eu voltava à rádio. Para mim, foi
para isso que se fez o 25 de Abril: para os meus filhos não irem à guerra e
para eu voltar à rádio.
Álvaro Belo Marques em 1998 |
Capa do disco do Primeiro 1º de Maio editado pela EN. |
A Emissora Nacional na Rua do Quelhas |
O Diário no fundo da mina do Pejão. Foto de Bruno Neves |
Ao longo de todos estes anos - entre as décadas de 60 e 80 - também colaborei em outra imprensa: escrevi no suplemento Cena 7, de A Capital, na Mosca, do Diário de Lisboa, na Memória de Elefante, a convite do meu amigo João Afonso Almeida, que dirigia a publicidade e relações públicas da publicação.
Ficha na PIDE / ANTT |
Eu também participara, em 1971, na criação de
uma Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão, o que pôs a PIDE, a
censura, os SNI's de olho em mim. Como
jornalista e cidadão eu tinha cadastro
e estava numa lista negra do Governo
e da PIDE/DGS. E qual era o cadastro?
Para além de dois despedimentos por motivos políticos, fizera parte do núcleo
fundador da Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão. A Comissão
nasceu e morreu entre 1971 e 1972 e produziu o texto de um Manifesto,
abaixo-assinado por gente ligada aos jornais, rádio, televisão, cinema, teatro,
literatura, etc. Da rádio éramos muito poucos e ficámos mais expostos: João
Alferes Gonçalves, Jorge Dias, Jorge Gil, Luís Filipe Costa e João Paulo Guerra.
Nos arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo, há uma
denúncia pidesca de uma intervenção
que fiz, numa iniciativa cultural promovida pelo Jornal do Fundão, em 23 de
Maio de 1972. Escreve e assina o bufo, um agente de 2ª ordem, que «um tal João
Paulo Guerra, profissional de rádio, ao fazer uso da palavra, por várias vezes,
teve apenas em vista criticar o Regime Político Vigente».
O documento tem um
outro, apenso ao original, com a informação: «O seu nome consta do Manifesto da “Comissão de Defesa da Liberdade de
Expressão”, datado de Maio de 1971 e arquivado na Pasta de organizações
oposicionistas». Outra vítima desse pide
de 2ª, na sessão, foi o magistrado Dr. Laborinho Lúcio.
Deixei O Diário
num dia, comecei a trabalhar para o Público
poucos dias depois, embora à peça.
Estive três meses a colaborar no Público,
ganhei um Prémio de jornalismo instituído pela Secretaria de Estado para a
Modernização Administrativa com uma reportagem sobre a burocracia. Título: "E não se pode exterminá-la?"
Mas a o melhor desta reportagem sobre a burocracia veio em post scriptum. Na cerimónia para entrega do Prémio, recebi uma carta informando-me que a Secretaria de Estado do Tesouro não libertara a verba correspondente ao Prémio pecuniário criado pela Secretaria de Estado para a Modernização Administrativa.
Mas a o melhor desta reportagem sobre a burocracia veio em post scriptum. Na cerimónia para entrega do Prémio, recebi uma carta informando-me que a Secretaria de Estado do Tesouro não libertara a verba correspondente ao Prémio pecuniário criado pela Secretaria de Estado para a Modernização Administrativa.
Era a resposta ao título da minha reportagem: não se podia
exterminar a burocracia. Quando recebi o prémio para a reportagem de imprensa
que saiu no Público, já estava a
trabalhar noutra empresa e noutro meio.
Com efeito…
(continua)
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