
9 de Julho de 1993.
Fotos de António Cruz,
datadas de 2012, cedidas pelo autor para ilustrar a transcrição da reportagem
radiofónica
O
quadro fixa um tempo e um lugar parados no tempo, à esquina dos anos 60 para a
década de 70. Freguesia do Barco, local da Recheira, perto da nascente do
Zézere, à boca das minas.
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Apolinária Fernandes: Lá está o marteleiro a furar, não é? Faz de conta que é a
mina. O do outro lado está com a escada, que era o ajudante, e aqui estes, faz
de conta que são os senhores engenheiros. E por cima lá estão os passarinhos,
os coelhos, as árvores…
O
quadro pintado por Apolinária Fernandes fixa a memória de um tempo parado. Faz
de conta que é a mina. A mina fechou em 1971.
Mas nas galerias da memória dos irmãos Fernandes – César e Apolinária, antigos
mineiros, e Maria José, antiga funcionária administrativa da mina – ainda
circulam vagonetas carregadas de cascalho.
E
de saudade.
Britador |
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Apolinária: A inauguração foi em 66 e em Novembro de 71 fechou. Foram só cinco
anos.
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Repórter: E agora, já lá vão todos estes anos, podia recomeçar a funcionar?
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Apolinária: Podia sim. E a gente gostava imenso.
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Repórter: E é a senhora, o seu irmão e a sua irmã que cuidam disto?
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Apolinária: Pois, exacto.
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Repórter: Mas é com essa ideia, de que isto um dia poderia voltar a funcionar,
ou é apenas para guardar a memória do tempo em que viveram e trabalharam aqui?
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Apolinária: Eu não sei realmente se recomeçam, se não recomeçam. O que se passa
é que o meu irmão ficou como guarda aqui da mina. E nós vimos cá de vez em
quando fazer a limpeza ao escritório, aos pisos, à lavaria. E também para matar
saudades. Porque de facto, tenho saudades disto.
Boca da mina |
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Repórter: Senhor César, conte-me lá, isto aqui é uma das galerias da mina?
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César Fernandes: É, é, sim. Galeria número 2.
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Repórter: Qual é a extensão?
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César: É capaz de andar aí à volta de 200 metros. Há aí mais, há muita galeria.
Tem uma, duas, três, depois uma ali a atravessar o cabeço, também em pesquisas,
quatro, para aquele lado há mais duas, quatro e duas, seis, há uma data delas…
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Repórter: Há aqui mais outra, que sai daqui para a direita…
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César: Essa liga lá para diante.
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Repórter: Estas paredes, esta rocha são o quê?
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César: Aqui é onde estão os filões que dão o estanho.
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Repórter: Mas diga-me: isto não está esgotado? Continua a haver minério?
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César: Continua, continua a haver minério.
Já
lá vão 22 anos, desde o fecho em 1971. Mas César Fernandes ainda vê o traçado das minas no escuro das
galerias.
Vértice
de um triângulo com a Argemela e a Panasqueira, as Minas do Zêzere, na
Recheira, foram um parente pobre do couto mineiro da Beira Interior. Os filões
de estanho foram descobertos nos anos 40 por César Fernandes, já no rescaldo da
corrida ao Volfrâmio. Ali perto, perdidos na memória dos tempos, romanos e
mouros já tinham escavado o solo, à procura dos tesouros da terra.
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César: Há até uma mina, assim muito estreitinha, feita por eles, pelos mouros.
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César: Os mouros era ouro. Há uma mina que tem um poço, desviado para a
Argemela, aí com uns 16 metros de fundura, com um filão largo…
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Repórter: Um filão de… estanho?
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César: Eles exploravam também estanho mas aquilo havia de ser outro material
qualquer, ouro, ou prata, ou qualquer coisa assim.
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Repórter: E esta mina nunca tinha sido explorada antes?
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César: Esta aqui, não, nunca foi explorada por ninguém.
Nos
anos 60 chegaram à Recheira os alemães Walter e Karl Thobe. Investiram nas
Minas do Zêzere e ganharam, pelo menos, um lugar no coração e na memória da
família Fernandes.
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Apolinária: O Senhor Walter tratava os operários como família. Tal e qual. E
também não podia ver um animal mal tratado. Tínhamos dois ou três cães e ele
não queria que ninguém lhes tocasse. E então, como ele era assim para os animais,
fizemos-lhe uns versos que eram assim:
Ó
Recheira do Zêzere // tantos anos esquecida // Estimada pelo senhor Walter //
Que te dá tanta guarida. // Para os animais é um santo // Trata-os com muito
amor // Nunca eles pensaram // Ter assim um protector. // Adeus ó linda Recheira
// Do senhor Walter o encanto // Se ele agora te deixasse // Desfazia-se tudo
em pranto.
Casa do cão |
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Repórter: E acabou por deixar?
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Apolinária: Pois foi.
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Repórter: E quando a mina fechou e eles deixaram isto, foi mesmo assim, esse
pranto?
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Apolinária: Ficámos todos tristes. Mas tínhamos outros versos. Era assim:
Já
lá vem o senhor Walter // As minas inaugurar // Os filhos que o acompanham //
Para a obra continuar. // Aos senhores engenheiros // Um parabém queremos dar
// Que nunca se arrependam // de connosco trabalhar.
Walter
e Karl Thobe ficaram com um nome nas ruas da memória da Recheira. As Minas do
Zêzere fecharam em Novembro de 1971, porque as regras da economia são mais fortes
que as leis do coração. Os filões de minério ainda brilham, no escuro das
rochas da Recheira. Mas a cotação do estanho não justifica a exploração da
mina. As pegas de fogo já não soam nas artérias da Recheira. Mas o coração da
mina não parou. Foi o tempo que suspendeu a sua contagem, preso a uma memória mais
viva e mais forte do que as leis da oferta e da procura.
Correia de transporte |
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Maria José Fernandes: Portanto, eram estas as folhas dos trabalhadores, que
depois eu enviava para Lisboa, consoante os dias que faziam, que não faziam. Ficou
cá tudo.
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Repórter: Como era o salário deles?
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Maria José: Bom, nessa altura já era um salariozinho, digamos bom, para aquela
altura.
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Repórter: E o seu salário, também era bom?
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Maria José: Era, consoante aquele tempo, não podia ser mais.
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Repórter (folheando as folhas de salários): César Gil Fernandes. Este aqui é o
seu o irmão?
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Maria José: É sim. É o meu irmão.
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Repórter: Ora vamos lá ver então, as despesas. Almoço que se deu ao senhor
engenheiro Barros. Um almoço, 22 escudos e 50 centavos. Almoçava-se barato.
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Maria José: Pois era assim naquele tempo. Agora é assim. É tudo diferente.
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Repórter: E aqui nesta parede temos… o mapa da mina, é?
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Maria José: É sim, o mapa.
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Repórter: E ali naquela outra parede temos uma lagartixa.
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Maria José: É verdade. Já outro dia ali andava.
A memória das Minas do Zêzere vai pelos dedos de Maria José Fernandes nas páginas
amarelecidas de uma contabilidade que fechou sem balanço. Como se fosse ontem,
no pequeno escritório da Recheira alinham-se as pastas do Deve e do Haver, o dia-a-dia
do trabalho.
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Repórter: Como era o trabalho aqui, debaixo da terra, com esta escuridão, esta
humidade?
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César: Isto era duro, sabe? Era um bocado duro. Eu vinha cá três, quatro vezes
acima… Olhe, isto aqui é minério. Um filão que dá o estanho. Isto era
desmontado a tiro, com gelamonite, e depois era carregado aqui, à pá, e era
transportado em vagões.
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Repórter: Esta água toda que há aqui no chão…
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César: É humidade que escorre. É muito húmido. Olhe, aqui há outra… aqui para a
esquerda.
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Repórter: Isto é quase como um labirinto. Mas os senhores conheciam isto, não
havia o perigo de se perderem?
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César: Alguns perdiam-se. Eu é que não me perco porque eu é que mandei fazer
isto tudo. Desde o primeiro tiro até agora, conheço isto tudo. Onde é que estão
os poços. Olhe, agora aqui há outro buraco. Esta mina aqui é que é perigosa. Lá
dentro caem blocos de pedra. É um bocado perigoso.
César
Fernandes, o guarda do coração e das artérias das minas do Zêzere, um coração
que bate no peito da família Fernandes: César, antigo alfaiate, e as irmãs,
Apolinária e Maria José, antigas costureiras, entregaram-se à mina na sequência
de uma tragédia familiar que lhes levou o pai, enlouquecido, para o Hospital Miguel
Bombarda, em Lisboa, na altura conhecido por Rilhafoles. Jaime Fernandes, o pai de César, Apolinária e Maria José, foi internado em 1938 com diagnóstico de esquizofrenia paranóica e nos últimos anos de vida começou a desenhar e pintar como modo de terapia. Morreu em 1969 e está representado em diversos museus do mundo.
A vida continuou na Recheira até que a mina fechou e o tempo parou. Mas os três irmãos encontraram nas galerias da
Recheira um sentido para a vida parada no tempo, na aldeia do
Barco, alimentando o sonho da reabertura da mina e da procura os tesouros que as minas encerram.
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Apolinária: Por exemplo, os engenheiros, ou eu, ou qualquer pessoa, que vá à
sua fazenda e queira saber se a fazenda tem qualquer minério, ou estanho, ou
volfrâmio, ou ferro, eu ali em poucos minutos, com uma bacia com água, eu sei.
Não precisa de ir para uma lavaria. Eu
com uma bacia e com água, eu manobro aquilo e fica o produto no fundo.
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Repórter: Como é que se distingue?
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Apolinárias: A terra vai saindo, juntamente com as pedrinhas, e eu faço aquelas
manobras com a bacia com água, fica apurado no fundo o material que há na
terra. Se há, fica, se não há, não fica.
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Apolinária: Seja qual for. Ou ferro, ou ouro. Eu na minha fazenda até lá
encontrei ouro.
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Repórter: Encontrou ouro?
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Apolinária: Encontrei sim. Eu era miúda e nem sequer disse à minha família. Fui
ao ourives e ele por uma bola de ouro deu-me um anel. Eu queria era o anel. Eu
agora já estou reformada. Mas aquilo era o meu encanto. Arear. Gosto imenso de
encontrar aquelas coisas lindas na terra. Lindas e de valor. Eu trabalhava de
costura porque era a minha necessidade. E tinha que trabalhar na vida, porque a
minha mãe não me pôde dar um curso. Porque ouve uma fatalidade na nossa vida.
Na vida da minha mãe. Tivemos que trabalhar de pequenas. Mas tínhamos outras
coisas na ideia. Eu o que queria era escrever e pintar. Mas ninguém me ajudava.
Nem a família me perguntou alguma vez o que é que eu queria ser na vida.
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Repórter: O que é que queria ser na vida?
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Apolinária: Esse sonho desapareceu-me e dá-me pena porque eu toda a vida quis
estudar. Eu queria… ser escritora. Porque ainda hoje só me dá para escrever,
escrever…
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Repórter: Mas escreve. Faz poemas, não é?
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Apolinária: À minha maneira porque eu não tenho cultura. Mas quando fui para as
minas gostei muito, porque era aí que eu gostava de andar, atravessava o campo…
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Repórter: Foi esse gosto pela natureza que a levou a pintar os quadros que tem
aqui na vossa casa?
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Apolinária – Foi sim.
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Repórter – Mas já houve exposições, com quadros seus?
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Apolinária: Fiz uma exposição na Covilhã e fiz outra aqui, no Barco. Vendi
tudo. Vendi-os baratos porque comecei a trabalhar com material mais ordinário.
Agora é que já passei para pastel de óleo.
Primeira vista |
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Apolinária: Nasceu comigo. Desde pequena tinha essa ideia mas não me revelava.
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Repórter: Por exemplo, aquele quadro, a menina com o cãozinho ao colo…
- Apolinária: Aquele é como se fosse eu quando era pequena. Porque eu era assim. Com os olhos azuis. Bom, olhos azuis, ainda os tenho. Mas aquele não o vendo.
- Apolinária: Aquele é como se fosse eu quando era pequena. Porque eu era assim. Com os olhos azuis. Bom, olhos azuis, ainda os tenho. Mas aquele não o vendo.
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Repórter: É como se fosse a sua memória?
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Apolinária: Sim, aquele quadro é a minha memória.
Memória
de Apolinária Fernandes. Memória de uma vida com as voltas trocadas entre as
galerias das Minas do Zêzere e a galeria de quadros ingénuos, de uma exposição
permanente nas paredes da velha casa da freguesia do Barco.
Filha
de Jaime Fernandes, o pintor que transportou para a tela as paixões da alma de uma vida
de 30 anos atrás dos muros do Hospital Miguel Bombarda, Apolinária guarda nas
cores dos quadros o registo de um tempo parado. Desde 1971 o tempo parado ainda vive na memória dos seus irmãos, César e Maria José. Um
tempo gravado no estanho das Minas do Zêzere.
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Apolinária: Levavam as vagonas lá para onde faziam a pega de fogo; depois
traziam-nas cheias, depois vinham, despejavam-nas aqui, o moinho britava isto
tudo, seguia na transportadora para o outro moinho que lá está em cima, depois
ia para o crivo… Era assim…
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Separadora, após o saque |
Moinho primário, após o saque |
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Repórter: E ali na parede temos a lagartixa.
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Maria José: É verdade. Já outro dia ali andava…
Reportagem
de João Paulo Guerra, montagem de Paulo Castanheiro, no original rádio, TSF, 9 de Julho de 1993.
Fotos
datadas de 2012, da autoria de António Cruz, um amador que ama e fotografa o
seu País, e que amavelmente as cedeu para ilustração da transcrição da reportagem
radiofónica.
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Jaime, pintura |
A
freguesia de Barco foi extinta em 2013, associada a uma outra na União das
Freguesias de Barco e Coutada.
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