O tempo parou ali há muito tempo como que imobilizado num daguerreótipo antiquíssimo, amarelecido nos cantos, esbatido no centro do plano de conjunto. Mesmo assim, distingue-se o conjunto: onze figuras de cera em redor de uma mesa, todos eles voltados ligeiramente sobre o lado direito, fixando a posteridade.
Ilumina-se a cena e distinguem-se então as cores, tons de cinza e violeta, esmaiados sobre o fundo austero de uma estante de mogno onde jazem livros encadernados pelo pó, o bafio, o esquecimento. Reposteiros pesados coam os sons da vida e tornam mais íntimos os sussurros das conversas, por onde passam, em ladainha, os nomes de legiões de fantasmas, a memória de irremediavelmente perdidos tempos de grandeza, sonorizados pelo tilintar das porcelanas e das dentaduras postiças, o ronronar dos catarros.
Tapetes espessos abafam os passos dos que vão chegando levemente, como que deslizando acima do nível da terra áspera.
A
Marquesa:
-
Não dei pela sua chegada, Senhor Comandante!
Terão
chegado todos pela porta? Quantos terão ali ficado do cenáculo anterior? Ou do
primeiro sarau? Ou da última ceia?
Tomam
lugar à mesa e servem-se de chazinhos medicinais, de bolachinhas de araruta e
de poesia sem sal.
A
um gesto da Marquesa, sublinhado pelo tilintar das pulseiras e pelo faiscar dos
anéis, anima-se a acção. Júlio Dantas revivido e recriado, versão para poesia e
tosse de uma nova ceia de velhos cardeais da cultura. A poesia é rija demais
para velhinhos doentes. Marquesa, tenho ainda uns quatro ou cinco dentes.
Estamos
neste ano da graça de 1987 num sarau do Cenáculo da Marquesa de Valverde.
-
O senhor é que telefonou a pedir a entrevista?
-
Mas é o senhor que vem fazer a entrevista ou é só o homenzinho que vem colocar
o microfone?
-
Bom, eu, com efeito, sou só o homenzinho. E o gravador já está a gravar.
-
Então, grave:
- O
Cenáculo literário
Vivendo
em simplicidade
Tem
por lema e seu fadário
Patriotismo
e humanidade.
São
onze à volta da mesa, sete damas e quatro valetes. Os naipes de trunfo são
Deus, Pátria e Família. Há duas cadeiras vazias. Se viessem todos seriam treze.
Azar para a poesia. A Marquesa agita a batuta dos anéis carregados de dedos, os
convivas tossem à vez para aclararem as vozes.
Acção:
entram em cena musas das modalidades versos ponto-de-cruz, versos pó-de-arroz e
reversos pomada beladona, versos faz-de-conta, versos aliás, versos não
desfazendo, versos salvo seja.
A
Marquesa, declamando:
-
Tenho um castelo de amor
Chegam-lhe
as torres ao céu
Vive
um sonho encantador
Nesse
castelo que é meu.
Que
sonho embriagador
Com
que força me prendeu
Perturbante,
embalador,
Chegou,
tocou-me e venceu.
Palmas.
Muito bem.
Uma
nobre:
-
Estão a gravar?
-
Pois estão.
-
É melhor eu dizer qualquer coisa de cor, porque com a pressa nem sequer trouxe
os óculos. Vamos lá ver se consigo:
Há
no meu nome um perfume vago
De
encantada princesa do Oriente
Uma
canção dulcíssima e plangente
Todo
o meu corpo moço de menina
È
uma estranha orquídea a florescer
E
a minha boca rubra de amorosa
Dos
teus beijos ardentes, sequiosa,
Gritam
meu amor quanto te quer.
Palmas.
- Muito bem.
- Muito bem.
O
Senhor Comandante:
-
É pena.
- O quê?
- Eu é que deveria estar no lugar desse seu amor.
- O quê?
- Eu é que deveria estar no lugar desse seu amor.
O
Cenáculo tem um passado. E como futuro, mais passado. Ficou-se no fundo da
gaveta das memórias embrulhado em rendas velhas. Reconstituição do passado: a
Marquesa e os seus pares.
A
Marquesa:
-
A este meu grupo chamam-lhe Cenáculo Literário Marquesa de Valverde, que se
mantém sempre livre de pressões políticas ou religiosas, lutando contra ódios,
invejas, intrigas, ruindades, para que haja harmonia e amor entre ambos os
sexos de todas as idades e combatendo o vinho, o tabaco e o beijo, causadores
de muitas doenças.
Uma
baronesa do contra recitando João de Deus:
-
Beijo!
Beijo
na face
Pede-se
e dá-se.
Dá?
Que
custa um beijo?
Não
tenha pejo.
A
Marquesa:
-
O lema do Cenáculo é o amor a Deus, à Pátria, à Família, ao Trabalho e à
maravilhosa Natureza que nos cerca e que merece ser alindada.
Pergunta:
-
Continua a fazer saraus?
A
Marquesa:
-
Continua a fazer-se a expansão dos poetas e dos artistas que há em Portugal. A
entrada é completamente livre. Já fizemos vinte anos de existência.
Uma
viscondessa:
-
Este poema é meu e foi dedicado aos vinte anos do Cenáculo da Senhora Marquesa:
-
Vinte anos
Divina
luz neste dia
Avé
Maria, Avé Maria.
Poéticos
sinos aos mil
Repicam
sem fraquejar
Senhora:
Não
esquecendo o Brasil
Poesia:
Vinte
anos a contar.
Palmas. Muito bem.
O
Senhor Comandante:
-
Sim senhora, sim senhora.
A
Marquesa
-
A entrada é completamente livre que é para darmos expansão a tudo o que é
português. E a ver se consegue uma
harmonia.
-
Através da poesia?
-
Pois. Da poesia. Mas vêm pessoas de outras categorias, da pintura, da música. O
Cenáculo é para realçar os portugueses de valor, os que já morreram e os que
ainda existem. Mas o que as pessoas querem é a poesia. Poesia rimada, poesia
não rimada, poesia moderna, poesia antiga, há de tudo.
Uma
Morgada:
-
Muro!
Pedra
por pedra ergueste o muro
Muralha
de indiferença a separar-nos
Quando
a minha alma…
- Ah! Esqueci-me.
- Muro!
Muralha
diferente…
- Ai…
não sei… esqueci-me… Não sou capaz…
A
Marquesa:
-
De maneira que o senhor com isso que está a gravar faz depois a propaganda que
entender.
Poesia
passatempo mas o tempo não passa. O sarau foi-se extinguindo à medida que alguns
dos presentes começaram a passar pelas brasas. O que valia à poesia era o Senhor
Comandante, sempre atento, no seu posto.
O Senhor
Comandante, à saída, para uma Fidalga:
-
Posso acompanhá-la?
Ilustração: Marqueses, às vezes, da linhagem da Internet.
Nota: Segundo o Dicionário de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses, de Adriano da Guerra Andrade, Marquesa de Valverde seria o pseudónimo de Zina
Maria Margarida Cristina Jesuína do Carmo. Seja!
1 comentário:
Segundo fonte próxima da Corte, não existe em Portugal marquesado de Valverde. Na listagem dos marquesados espanhóis há dois Valverde mas as datas de nascimentos e nomes excluem a alegada marquesa. No Brasil, Valverde não é nenhum dos 48 marquesados do Império. Resta a informação do Dicionário de pseudónimos e iniciais de escritores portugueses: Marquesa de Valverde é pseudónimo literário. Mas está por certificar o apêndice literário do pseudónimo.
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