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domingo, 19 de junho de 2016

O Cenáculo da Marquesa



Por João Paulo Guerra, 
Telefonia de Lisboa, Janeiro de 1987

          O tempo parou ali há muito tempo como que imobilizado num daguerreótipo antiquíssimo, amarelecido nos cantos, esbatido no centro do plano de conjunto. Mesmo assim, distingue-se o conjunto: onze figuras de cera em redor de uma mesa, todos eles voltados ligeiramente sobre o lado direito, fixando a posteridade.
Ilumina-se a cena e distinguem-se então as cores, tons de cinza e violeta, esmaiados sobre o fundo austero de uma estante de mogno onde jazem livros encadernados pelo pó, o bafio, o esquecimento. Reposteiros pesados coam os sons da vida e tornam mais íntimos os sussurros das conversas, por onde passam, em ladainha, os nomes de legiões de fantasmas, a memória de irremediavelmente perdidos tempos de grandeza, sonorizados pelo tilintar das porcelanas e das dentaduras postiças, o ronronar dos catarros. 


Tapetes espessos abafam os passos dos que vão chegando levemente, como que deslizando acima do nível da terra áspera.
A Marquesa:
- Não dei pela sua chegada, Senhor Comandante!
Terão chegado todos pela porta? Quantos terão ali ficado do cenáculo anterior? Ou do primeiro sarau? Ou da última ceia? 
Tomam lugar à mesa e servem-se de chazinhos medicinais, de bolachinhas de araruta e de poesia sem sal.
A um gesto da Marquesa, sublinhado pelo tilintar das pulseiras e pelo faiscar dos anéis, anima-se a acção. Júlio Dantas revivido e recriado, versão para poesia e tosse de uma nova ceia de velhos cardeais da cultura. A poesia é rija demais para velhinhos doentes. Marquesa, tenho ainda uns quatro ou cinco dentes.
Estamos neste ano da graça de 1987 num sarau do Cenáculo da Marquesa de Valverde.
- O senhor é que telefonou a pedir a entrevista?
- Sim, fui eu.
- Mas é o senhor que vem fazer a entrevista ou é só o homenzinho que vem colocar o microfone?
- Bom, eu, com efeito, sou só o homenzinho. E o gravador já está a gravar.
- Então, grave:
- O Cenáculo literário
Vivendo em simplicidade
Tem por lema e seu fadário
Patriotismo e humanidade.

São onze à volta da mesa, sete damas e quatro valetes. Os naipes de trunfo são Deus, Pátria e Família. Há duas cadeiras vazias. Se viessem todos seriam treze. Azar para a poesia. A Marquesa agita a batuta dos anéis carregados de dedos, os convivas tossem à vez para aclararem as vozes.
Acção: entram em cena musas das modalidades versos ponto-de-cruz, versos pó-de-arroz e reversos pomada beladona, versos faz-de-conta, versos aliás, versos não desfazendo, versos salvo seja.
A Marquesa, declamando:
- Tenho um castelo de amor
Chegam-lhe as torres ao céu
Vive um sonho encantador
Nesse castelo que é meu.
Que sonho embriagador
Com que força me prendeu
Perturbante, embalador,
Chegou, tocou-me e venceu.
Palmas. Muito bem.
Uma nobre:
- Estão a gravar?
- Pois estão.
- É melhor eu dizer qualquer coisa de cor, porque com a pressa nem sequer trouxe os óculos. Vamos lá ver se consigo:
Há no meu nome um perfume vago
De encantada princesa do Oriente
Uma canção dulcíssima e plangente
Que passa sobre ti como um afago.
Todo o meu corpo moço de menina
È uma estranha orquídea a florescer
E a minha boca rubra de amorosa
Dos teus beijos ardentes, sequiosa,
Gritam meu amor quanto te quer.

Palmas. 
- Muito bem.
O Senhor Comandante:
- É pena. 
- O quê?
- Eu é que deveria estar no lugar desse seu amor.

O Cenáculo tem um passado. E como futuro, mais passado. Ficou-se no fundo da gaveta das memórias embrulhado em rendas velhas. Reconstituição do passado: a Marquesa e os seus pares.
A Marquesa:
- A este meu grupo chamam-lhe Cenáculo Literário Marquesa de Valverde, que se mantém sempre livre de pressões políticas ou religiosas, lutando contra ódios, invejas, intrigas, ruindades, para que haja harmonia e amor entre ambos os sexos de todas as idades e combatendo o vinho, o tabaco e o beijo, causadores de muitas doenças.

Uma baronesa do contra recitando João de Deus:
- Beijo!
Beijo na face
Pede-se e dá-se.
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo.
Vá. 

A Marquesa:
- O lema do Cenáculo é o amor a Deus, à Pátria, à Família, ao Trabalho e à maravilhosa Natureza que nos cerca e que merece ser alindada.
Pergunta:
- Continua a fazer saraus?
A Marquesa:
- Continua a fazer-se a expansão dos poetas e dos artistas que há em Portugal. A entrada é completamente livre. Já fizemos vinte anos de existência.
Uma viscondessa:
- Este poema é meu e foi dedicado aos vinte anos do Cenáculo da Senhora Marquesa:
- Vinte anos
Divina luz neste dia
Avé Maria, Avé Maria.
Poéticos sinos aos mil
Repicam sem fraquejar
Senhora:
Não esquecendo o Brasil
Poesia:
Vinte anos a contar.

Palmas. Muito bem.
O Senhor Comandante:
- Sim senhora, sim senhora.

A Marquesa
- A entrada é completamente livre que é para darmos expansão a tudo o que é português.  E a ver se consegue uma harmonia.
- Através da poesia?
- Pois. Da poesia. Mas vêm pessoas de outras categorias, da pintura, da música. O Cenáculo é para realçar os portugueses de valor, os que já morreram e os que ainda existem. Mas o que as pessoas querem é a poesia. Poesia rimada, poesia não rimada, poesia moderna, poesia antiga, há de tudo.

Uma Morgada:
- Muro!
Pedra por pedra ergueste o muro
Muralha de indiferença a separar-nos
Quando a minha alma…
- Ah! Esqueci-me.
- Muro!
Pedra por pedra ergueste o muro
Muralha diferente…
- Ai… não sei… esqueci-me… Não sou capaz
A Marquesa:
- De maneira que o senhor com isso que está a gravar faz depois a propaganda que entender.
Poesia passatempo mas o tempo não passa. O sarau foi-se extinguindo à medida que alguns dos presentes começaram a passar pelas brasas. O que valia à poesia era o Senhor Comandante, sempre atento, no seu posto.
O Senhor Comandante, à saída, para uma Fidalga:
- Posso acompanhá-la?

Transcrição de reportagem gravada, Telefonia de Lisboa, Janeiro de 1987 
Ilustração: Marqueses, às vezes, da linhagem da Internet. 
Nota: Segundo o Dicionário de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses, de Adriano da Guerra Andrade, Marquesa de Valverde seria o pseudónimo de Zina Maria Margarida Cristina Jesuína do Carmo. Seja!

1 comentário:

Anónimo disse...

Segundo fonte próxima da Corte, não existe em Portugal marquesado de Valverde. Na listagem dos marquesados espanhóis há dois Valverde mas as datas de nascimentos e nomes excluem a alegada marquesa. No Brasil, Valverde não é nenhum dos 48 marquesados do Império. Resta a informação do Dicionário de pseudónimos e iniciais de escritores portugueses: Marquesa de Valverde é pseudónimo literário. Mas está por certificar o apêndice literário do pseudónimo.