Páginas

sábado, 18 de junho de 2016

... estranha morte de um homem que a guerra ... continuou a matar depois da guerra

Por Fernando Alves, Sinais, 
TSF, 2 de Março de 2016


Não deveis tomar à letra, ou distraidamente à letra, o título deste romance de João Paulo Guerra, Corações Irritáveis, que esta tarde [quarta, 2 de Março] é apresentado por Carlos Matos Gomes, em Lisboa. Não apenas porque o romance de João Paulo Guerra nos dá um Nó Cego, também nos leva a um fim do mundo que talvez não esteja, nem em Cazombo, nem em Olivença, do Niassa, mas no coração de um velho combatente atormentado. Não vos precipiteis. Corações Irritáveis, mesmo rimando com indomáveis, inflamáveis, inexpugnáveis, não é a legenda para uma qualquer melancolia do coração. Adiante no livro nos está explicado que existe sim a chamada síndrome do coração irritável, já detectada em combatentes da guerra civil americana.
Este livro leva-nos, antes de mais, à morte de um homem...


... à estranha morte de um homem que a guerra foi matando em vida, que a guerra continuou a matar depois da guerra e a tantos que sabemos que aconteceu assim, que acontece assim, mesmo que os seus corações nos pareçam afáveis, pois tudo se passa aí, nessa granada vibrátil do peito. Por isso, a pergunta que se vai instalando ao ler este romance é formulada logo nos momentos iniciais quando sabemos de um corpo encontrado com sinais de asfixia por imersão no Rio Jamor e vais senso revelada a história daquele homem que atravessou uma guerra e lhe sobreviveu. A pergunta é: o que é que pode fazer um homem que tendo sobrevivo à guerra tem medo do que vê nos olhos de uma criança. Há também outras perguntas. A da inspectora da Brigada de Homicídios à companheira do homem agora morto: Ele fez a guerra? Não, a guerra é que o fez a ele, responde a mulher. Ele e a guerra fizeram-se um ao outro,
Perguntará depois a inspectora: Ele entrou em combate? Sim, não, titubeia. Entrou sim, entrou e saiu, nunca se sai da guerra. E a mulher conclui: O meu marido morreu na guerra. Não, responde a inspectora, o seu marido morreu seguramente asfixiado por submersão no Rio Jamor, há cerca de oito dias e a guerra acabou há quase vinte anos. Mas a mulher responde: a guerra dele nunca acabou.
Este livro prende-nos desde as primeiras páginas porque nos conduz de uma forma exímia a um poema que David Mourão Ferreira incluiu na Tempestade de Verão. É um poema sobre a guerra, fala de uma arma secreta em cada coração e essa arma é que faz mover, no peito dos combatentes, aquilo que o poema chama a tortura de tudo o que perderam. Ora esse tanto perdido leva as personagens do livro à noite dos lugares que foram, para tantos de nós, cenários de outros bravos combates do coração. Ao Constituinte, ao Procópio, ao Jamaica, onde, quando entrava o homem do coração irritável, o Mário Dias punha a rodar os velhos Doors, e este tema que muitos viram contra a guerra do Vietnam.

Entretanto, Henrique e Adélia estão sentados na Bicaense, imaginando que cada um poderia ser metade de – estou a ler – «qualquer coisa terna, sensível, bela e a dois. A Amélia da Bicaense não disfarça um sorriso. E eu, que conheço esse sorriso, é ali que fico a ler o resto do romance. Porque, como avisa uma bela canção:
        «A noite tem bordado // Nas toalhas dos bares // Corações arpoados // Corações torturados // Corações de ressaca // Corações desabrigados demais» (A Noite, Ivan Lins) + The Doors – The End


Fernando Alves, TSF, Sinais, 2 de Março 2016  (Ouça aqui

Sem comentários: