Capa: António Belchior |
Corações Irritáveis, de João Paulo Guerra, é um dos mais impressionantes
textos sobre a guerra colonial.
Um texto inqualificável, de non.fiction novel, de policial, de
estudo psicológico, de percurso pela memória histórica. Devia ser promovido e
estudado...
Faz parte da grande literatura portuguesa.
Não faz parte é das
capelas e confrarias...
Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes na apresentação do Livro:
Há muitos anos que ouço e leio que falta
o “Grande Romance” da Guerra Colonial. Acredito que jamais aparecerá esse tal
grande romance sobre a guerra colonial – como não existe o grande romance do
fascismo, nem do colonialismo, nem da resistência.
Mas do que estou aqui a falar e a
apresentar é de um Grande Romance. De um grande romance sem outros
qualificativos e que tem por tema a Guerra Colonial. Ou só a Guerra. Ou a
verdade. Ou a consciência. Ou o remorso. Sobre qualquer dos temas que possamos
escolher, este romance tem uma perspectiva surpreendente.
Tomemos a guerra colonial portuguesa
como tema central. Os romances que têm a guerra colonial como tema abordam-na
normalmente na perspectiva da aventura de um homem, ou de um grupo de homens na
guerra, na operação, a sofrer o medo, a dureza da marcha, a ansiedade da
coluna, das minas, sob a inclemência do clima. Falam no sacrifício, no espanto
de África, na morte. Ou os autores abordam o tema numa perspectiva pessoal, e
escrevem a autobiografia que querem deixar ao seu circulo familiar e de
amizades. Ou ainda romances de fundo ideológico, de crítica ao regime que
lançou uma geração num conflito inútil e moralmente injusto; ou na do seu
reverso: o romance que enaltece as virtudes guerreiras, dos homens que foram
cumprir o seu dever de defender os territórios ultramarinos. No confronto entre
herói e anti-herói.
Podemos encontrar todos esses cambiantes de
abordagem no livro de João Paulo Guerra, a aventura individual e colectiva, a biografia
e a autobiografia, as motivações, mas em nenhum está o coração da narrativa nem
o esqueleto que a suporta.
Começando pelo esqueleto, pela estrutura, o
romance tem uma estrutura de policial – detective
story – um pouco no estilo de Patricia Highsmith. A partir de uma morte, o
autor (através de múltiplos narradores – uma inspectora da judiciária, uma
psiquiatra, um casal de amigos e até da viúva) inicia uma busca de razões, de
causas, de possíveis autores através precisamente da viúva, que é um morto-vivo,
porque se identifica com o morto. Ela é ele. Depois, cada morte explica a
anterior e anuncia a seguinte. E nenhuma morte é uma morte vulgar. Todas
remetem para o que mais marcou o morto quando esteve na guerra, em África.
E entramos no coração do romance. Onde batem
os momentos no limite da violência, da irracionalidade, da bestialidade, da
vergonha, no nojo que estes homens replicam nas suas mortes.
Um dos mistérios resulta do facto de que o
romance poderia (e deveria) ser uma tentativa de explicação do que teria
levado estes homens a suicidar-se, a
realizar, a assumir uma acto individual de redenção, mas isso seria demasiado
comum. Não, a morte destes homens não pode ter sido apenas um suicídio – há
pistas, há impossibilidades que negam a hipótese de suicídio. Pelo menos o
suicídio comum de se donner la morte,
como se diz em francês. Há um fio condutor que é passado de morte em morte e é
suposto haver alguém a desenrolar esse fio.
O autor apresenta-nos num primeiro nível de
leitura o que poderia ser a história dramática de um grupo de homens que sofre
de stress pós traumático de guerra – PTS. É o que parece – e a descrição
pormenorizada dos acontecimentos ajuda a parecer que será assim. Esses
distúrbios são simultâneos e dolorosamente reais – os nomes das terras, as
paisagens, os ambientes são reais – e ao mesmo tempo fantasmagóricos – isto é,
ultrapassam o que estamos preparados para aceitar como comportamento humano.
Eles estão apanhados. “Apanhados” era uma expressão que usávamos nas colónias para
falar de nós… dos apanhados. É efeito da guerra, do clima, do cacimbo. Também
lhes chamavam cacimbados. São os radicais…
Juntam-se
para partir tudo.
Partir
tudo? Não lhe parece excessivo?
Excessivo
é o inferno. A senhora conhece o inferno? É que eu conheço….
O nome das terras (do inferno) e dos locais
corresponde à geografia – rigorosamente e acreditem em mim que andei por alguns
deles – Olivença, Maniamba, Lunho, Cantina Dias, Unango, Macaloge, existiam e
eram assim – buracos – era esse o nome que os militares davam a esses
acampamento de bidons, de lonas, de
palhotas, de chapas de zinco, no Niassa, Norte de Moçambique, e eram assim os
buracos de Cabo Delgado, de Mueda, de Mocimboa do Rovuma, de Nangololo, nas
margens do rio Messalo. Eram assim os buracos do Leste de Angola, do Cazombo e
da Nriquinha, as antigas terras do fim do mundo de Henrique Galvão, e na Guiné,
em Guidaje…
Nesses buracos ocorreram os confrontos que
marcaram a ferro e fogo estes homens que só um acontecimento traumático une.
Une, é mais uma falsa pista. Ao contrário do que acontece em muitos romances ou
filmes de guerra, estes homens não pertenceram a nenhum grupo de combate, não
os une uma camaradagem, como acontece com o meu Nó Cego, n’Os olhos do
caçador, n’Os cus de Judas. Não é
o que acontece em Corações Irritáveis.
O romance podia chamar-se Estilhaços, já que a Viagem ao Fim da Noite está bem ocupado.
Ou a Busca da Noite Absoluta.
O que une estes homens, e a mulher, Adélia,
que se identifica com Henrique, a personagem principal, é o apoio na aceitação
da morte, porque eles buscam a sua.
É a busca do modo como as mortes se foram
sucedendo em rosário que não nos deixa parar de ler este romance.
O resto – e o resto é a matéria-prima do
romance – é o que pode ter sido a verdade de cada um sobre a sua guerra. E essa
verdade de cada um é o seu instrumento de tortura. Descrições em voo picado
sobre o pior que cada um de nós tem. A vergonha de nós. O sentimento de ser, de
ter sido, imperdoável o que a guerra fez fazer a estes homens que o João Paulo
Guerra leva até à morte, mas que andam por aí.
O
coxo?
Esse,
o Serra. Mas ele não é coxo.
Eu
vi-o andar a arrastar uma perna.
O
Serra não tem nenhum problema físico que o leve a coxear.
Então?
Há
outro, o Sousa, que não consegue dormir. Quando está a cair de sono desaparece.
Ninguém sabe onde ele se esconde.
Que
lhe aconteceu?
Também
há o Oliveira. Esse está sempre a mandar calar todas a gente. «Chiu! Não façam
barulho. Ouçam! Calem-se. Assim não se consegue ouvir nada. Agora… não estão a
ouvir?
Que
aconteceu?
E
há o Pimenta, alferes miliciano Pimenta.
Que
lhe sucedeu? – Perguntou Adélia à beira do pranto.
Eu estive várias vezes à beira de deixar o
livro, de o perder e de não mais o encontrar. Voltei sempre. Entendo que o que
foi feito na História não pode ser desfeito e que o melhor para sobreviver é
esquecer – sepultar – e dizer mil vezes que todas as guerras causam mortos,
feridos, estropiados, torturados do corpo e da alma, crimes que não devem ser
encobertos, porque estão a descoberto dentro de cada um. O problema não é a
descoberta do crime que está na origem deste romance, mas como conviver com
ele. Ser herói, neste caso, é vencer o remorso. Ser um herói criminalizado.
Estive várias vezes à beira de deixar o livro,
mas voltei sempre, como disse, e não para fazer uma catarse através do reviver,
mas para ler os grandes planos de que este romance é feito.
Um parêntesis: há uns anos fui convidado
pelo Público para a ante-estreia do filme O
Resgate do Soldado Ryan, com a Lídia Jorge, para depois comentarmos. Tive
de fazer das tripas coração para aguentar os primeiros vinte minutos da
carnificina do desembarque na Normandia. Senti a mesma sensação ao ler Corações Irritáveis. A II Guerra Mundial
não foi só o desembarque na Normandia, os corpos ceifados, os membros
decepados, foi muito mais do que isso, mas também foi esse fora dos limites. A
guerra colonial não foi este mundo a negro e vermelho onde se perderam estes
homens, não foi só o buraco negro que os engoliu, nas também foi este vulcão
que transformou estes homens em lava incandescente, que correram para se
petrificarem, como último destino.
Eles
sofrem porque são humanos. A sua humanidade não suporta os horrores que viram…
Esses
homens foram treinados para matar inimigos, mas na guerra que travam agora os
inimigos são eles próprios…
O
país estava em guerra, uma guerra civil não declarada. Uma guerra quase
desconhecida, e que o país institucional, o país sentado, acomodado,
amodorrado, conhecia mas ignorava…
São palavras do romance.
Por fim, este é um romance em
contra-corrente da literatura portuguesa. Será, porventura, o último grande
romance da guerra. Encerrará o ciclo do que o João de Melo designou por
escritores da guerra, que foi um hiato na literatura portuguesa. Nunca mais se
escreverá assim, com a mão nas gargantas dos leitores. A literatura portuguesa de hoje, da geração
que aí está, a seguir à dos da guerra, tem as suas preocupações e expressões –
e, falando frontalmente como o romance do João Paulo Guerra merece que quem o
apresenta fale, direi que Corações Irritáveis é, no meio deles, um objecto
estranho, uma caveira em cima da renda em que os romances portugueses de hoje
se tecem.
Quem pergunta hoje, a propósito das
personagens dos novos romances?
Mas
o que é que tinham encasquetado na cabeça?
Eu
tinha a cabeça cheia de mortos. Não podia mais. Só me apetecia desatar aos
tiros, atirar granadas. Rebentar com tudo.
Quem escreve:
Quando
alguns homens se aproximaram e puxaram para trás a porta do cubículo, o
indivíduo que fora urinar era um volume informe que se derramava pela
portinhola, num argamassa de sangue, vísceras, fezes, urina e estilhaços.
Aparentemente, o homem não tinha chegado a arriar as calças ou a abrir a
braguilha. Mas de um rasgão no ventre descaiam-lhe as tripas.
Não é desta matéria que se faz a literatura
portuguesa de hoje. Os críticos são pessoas sensíveis. E exigentes: querem
escritas límpidas e transparentes… êxtases, revibrações da alma, penas leves…
dúvidas sobre o ser… fugas ao quotidiano cinzento… carícias… eu sei lá…
Em Corações
Irritáveis há descrições reais – apenas deslocadas no tempo – mas que
talvez não cheguem à realidade. E esta é uma das que conheci e vivi:
A vida já era um inferno em
Guidage. Mas aqueles homens não sabiam que havia algo pior num patamar abaixo
do inferno. Foi disso que tomaram conhecimento quando deixaram de poder sequer
enterrar os seus mortos: os que morriam ao circular entre as trincheiras, e que
eram levados para os buracos num supremo ato de compaixão, e os que passaram a
morrer, esvaídos em sangue no fundo das valas, sem possibilidade de socorro
local, menos ainda de evacuação para o Hospital Militar, em Bissau. O chão de
algumas das escavações era já uma crosta de sangue e terra e o cheiro a morte
empestava o ar que se respirava lá em baixo. Até que, furando o cerco a
Guidage, chegou um esquadrão de Cavalaria para os resgatar. O comandante do
esquadrão, capitão Maia, encontrou o furriel Risques vivo numa trincheira de
mortos.
Puxaram o homem para a
superfície, o oficial deu-lhe um forte abraço – sem se mostrar minimamente
incomodado pelo cheiro a morte que o militar exalava e pelo toque viscoso dos
trapos que envergava - e o furriel julgou que não era real a imagem que tinha à
sua frente de um jovem militar, que os outros tratavam por «meu capitão», e que
se perfilava, em sentido e em respeitosa continência, perante um andrajoso,
sujo, faminto e sedento, um vacilante farrapo humano, ele próprio, furriel
miliciano de Infantaria Juvenal Risques. Depois o capitão passou-lhe
fraternalmente um braço pelos ombros.
- Vamos levar-te para casa
- disse-lhe o capitão.
- Quem dera que houvesse
mais capitães assim - desabafou o furriel.
Corações Irritáveis é um prato de sustância,
indigesto, feito por quem mete e a mão na massa e está ao forno, num tempo de
cozinha de fusão, de degustações e microondas.
Estas páginas fazem parte de uma outra
literatura portuguesa, ácida num tempo de produtos delico-doces:
Seguiram caminho mas, mais
diante, viram ao longe um dos rapazes, parado junto à linha. Tiveram que focar
bem a vista pois a temperatura escaldante daquelas paragens distorcia as
imagens fazendo-as tremeluzir na distância. Dois soldados ficaram a guardar a viatura,
os outros apearam-se e contornaram uma elevação arborizada do terreno, para se
aproximarem sem serem vistos. E conseguiram. Estavam já bem perto e entretanto
um comboio aproximava-se. E a suspeita ganhava crédito entre os militares: o
garoto preparava-se obviamente para dinamitar a linha à passagem do comboio. Os
homens, com as G-3 aperradas, surgiram a uns cinquenta metros do miúdo,
surpreendendo-o, e gritaram-lhe que pousasse a arma no chão e se entregasse de
mãos no ar, bem à vista. O miúdo começou devagar, muito devagar, a baixar-se
para pousar a arma no chão, tudo muito vagarosamente, sempre com os olhos bem
abertos e bem pregados nos olhos dos soldados, que se iam aproximando, e nas
respetivas armas. E de súbito, o miúdo deu um salto a atirou-se, com a arma na
mão, para debaixo do comboio que ia chegando.
Silêncio. O antigo cabo
enfermeiro Valentim Brotas tinha a cara lavada em lágrimas.
- O Hilário, o Maluco dos
Comboios, ficou todo salpicado de sangue - conseguiu dizer.
- E o miúdo? – Perguntou
Luís.
– O miúdo, assim visto de
perto percebia-se que não teria mais de doze, treze anos. – Respondeu o antigo
militar.
O cabo Valentim limpou as
lágrimas que começaram a correr-lhe pela cara. E acrescentou num soluço:
- E a arma do miúdo… A arma
do miúdo era uma espingarda de pau.
Fez-se
um pesado silêncio.
Eu congratulo-me pelo facto de romances como Corações Irritáveis estarem, fora de moda aqui em Portugal… Presumo que estará na moda na Síria, no Iraque, que estará na moda nos países da antiga Jugoslávia, na Bósnia Herzegovina, na Sérvia, no Kosovo onde haverá homens que escrevem, como o autor de Corações Irritáveis:
«Há, como eu, outros homens
perturbados, por uma guerra que não acabou, que me confiam para registo em outros
papéis as raízes das suas perturbações.
«São homens atormentados que têm direito ao seu tormento, ao terror que envolve as suas memórias e os seus corações, que têm direito ao horror, ao remorso, à purificação mas também à veemência e à exaltação. Esses homens confiam nestes papéis e neste interlocutor que se risca, se rasga, se amachuca, que arde, que se dissolve na água, porque sabem que nunca ninguém chegará ao fim deste labirinto de palavras riscadas.
«São homens atormentados que têm direito ao seu tormento, ao terror que envolve as suas memórias e os seus corações, que têm direito ao horror, ao remorso, à purificação mas também à veemência e à exaltação. Esses homens confiam nestes papéis e neste interlocutor que se risca, se rasga, se amachuca, que arde, que se dissolve na água, porque sabem que nunca ninguém chegará ao fim deste labirinto de palavras riscadas.
«Um dia encho-me de coragem e conto-te
tudo…»
2 comentários:
Li pouco nas gostei do que li. Finalmente temos algo diferente na literatura portuguesa. In Sha Alla ou oxalá tenhamos leitores para esta literatura neo realista em que a fusão da realidade e da ficção dá origem a algo mestiço semelhante ao HOMEM NOVO surgido nos trópicos com o ACHAMENTO do Brasil, fruto da miscigenação do europeu com a índia. Mas para o interpretar e compreender há que ter 'alma' e sensibilidade. Enfim e por fim, estamos perante um ROMANCE ESPECIAL, que naturalmente exige LEITORES ESPECIAIS.
José Verdasca, Presidente da Ordem Nacional dos Escritores, Brasil
Acresce um comentário ao comentário: José Verdasca, empresário na região de São Paulo e Presidente da Ordem Nacional dos Escritores, Brasil, foi entre 1966 e 67 "meu capitão", comandante da companhia em que eu era um dos alferes milicianos, unidade colocada em Olivença. extremo norte do Niassa, Moçambique. Era um homem frontal perante as hierarquias, o que lhe custou caro, mas que conquistou a amizade e respeito dos seus subordinados.
O meu romance CORAÇÕES IRRITÁVEIS reconhece parte daquele cenário; mas as personagens são de ficção. E o capitão de de Mpua - local imaginário do romance - era o negativo da imagem do meu capitão de Olivença.
De quem continuo amigo, 50 anos depois da guerra.
João Paulo Guerra
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