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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Diz que é uma espécie de currículo - III

Com efeito, entretanto, voltei mais uma vez à rádio.
Telefonia de Lisboa 
Eu passara na década de 80 pelo movimento das rádios piratas – louco e heróico, diria o Manuel da Fonseca –, designadamente pela Telefonia de Lisboa. Mas, em Outubro de 1990, o convite veio do Emídio Rangel e a rádio era a TSF. E para ajudar o meu orçamento, a proposta compreendia colaboração com o semanário O Jornal, ligado empresarialmente à TSF. A rádio nacionalizada, que era quase toda, fechara-me as portas: estive arredado longos anos. Uma das muitas propostas que apresentei à rádio nacionalizada e que nem sequer recebeu resposta foi mais tarde um projecto de grande impacto e sucesso na TSF, as laureadas Viagens com Livros.
Reconstituição para O Jornal do assalto
ao avião da TAP em 1961: o
panfleto lançado sobre Lisboa, autografado
 por tripulantes e assaltantes do avião.
No semanário O Jornal consegui manchetes, como as relativas à extensão da rede Gládio em Portugal, fiz investigação sobre a história contemporânea do País, acompanhei casos de polícia. O repórter à antiga, na companhia de grandes mestres do jornalismo e da reportagem.

Na TSF entrei para editor e repórter na equipa que estava a fazer as edições do fim-de-semana: folgávamos segunda e terça, estudávamos a agenda na quarta – durante um almoço numa tasca nas imediações das Amoreiras, uma tasca chamada Regresso, o que me parecia um bom presságio para o meu regresso à rádio –, metíamos mãos à obra e pés ao caminho na quinta e sexta, sábados e domingos editávamos os noticiários e respectivas reportagens, mais um magazine de actualidades, Os Dias Andados. O editor da equipa era o Fernando Alves.  


Trabalhámos no duro, com largas à imaginação e também nos divertimos alguma coisa. E passados seis meses houve rotação das equipas, fui para as manhãs, isto é, alvorada às 4 da madrugada, editar notícias com uma equipa fantástica: João Paulo Baltazar, Margarida Serra, Paula Mesquita Lopes, José Manuel Mestre, Luís Lourenço, José Milheiro, Ana Cristina Gaspar, (avisem-me, e perdoem-me, se estou a esquecer-me de alguém). Mais umas rotações, passei pelos turnos das tardes e noites, e eis-me a trabalhar em grandes projectos de reportagens. O primeiro foi O Regresso das Caravelas, depois Viagens com Livros, pelo meio planifiquei o 20º aniversário da democracia com as 25 Horas do 25 de Abril.   
1993, Prémio Gazeta pela reportagem rádio para O Regresso das Caravelas.
Premiados: Albertino Antunes (Jornal O Ribatejo, Imprensa Regional), Luís Afonso (cartoon), Luís Vilalobos (revelação), Fernando Dacosta (Entrevista) e Inácio Ludgero (Foto reportagem), 2ª fila: João Carreira Bom (crónica), Carlos Pinto dos Santos (Prémio Macau), José Pedro Castanheira (imprensa) Diana Andringa (televisão), Mário Soares (Presidente da República), Mónica Pereira (menção honrosa), João Paulo Guerra (rádio), José Carlos Vasconcelos (Clube de Jornalistas)
        O Regresso das Caravelas, 1993 – A proposta partiu do David Borges, director da TSF que sucedeu ao Emídio Rangel; eu dei-lhe o título e o conteúdo: consistia em recontar o processo da chamada descolonização, aproveitando algum distanciamento histórico dos seus protagonistas. Entre Fevereiro e Abril de 1993 estudei, documentei-me e entrevistei: Adriano Moreira, Alfredo Margarido, Almeida Santos, António de Spínola, António Ramalho Eanes, António Ramos, António Rosa Coutinho, Cardoso e Cunha, Carlos Fabião, Carlos Galvão de Melo, Costa Borges, Ernesto Melo Antunes, Francisco Costa Gomes, Jorge Santos, José Veiga Simão, Kaulza de Arriaga, Lemos Pires, Luís Cabral, Manuel Monge, Manuel José Homem de Mello, Manuel dos Santos, Mário Soares, Paulo Pires, Pedro Pezarat Correia, Vasco Gonçalves, Vítor Ramalho; o Manuel Vilas Boas recolheu o depoimento de D. Manuel Vieira Pinto e do padre Domingos Ferrão, Ana Margarida Póvoa entrevistou Jonas Savimbi, Marcelino dos Santos e Lúcio Lara, recuperei parte da entrevista que fizera a Salgueiro Maia, em 20 de Janeiro de 1992, publicada no mesmo dia pela TSF e o Público. Os cinco episódios foram sonorizados e montados com o Paulo Canto e Castro nos estúdios de João Canedo na Avenida de Ceuta.   

        A série foi distinguida com todos os prémios de reportagem atribuídos em 1994, relativos a 1993: Prémio Nacional de Reportagem / Repórter X, do Clube de Jornalistas do Porto, vencendo a concorrência de reportagens da televisão e da imprensa; Prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas; e Prémio de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa. 
Primeira edição em livro de O Regresso
das Caravelas, Dom Quixote
. A foto de Alfredo Cunha
foi oferecida pelo autor para a capa:
O padrão dos descobrimentos e os
contentores do regresso das caravelas
       Em 1996, passei a escrito O Regresso das Caravelas, editado pela Dom Quixote e lançado com apresentação do coronel Ernesto Melo Antunes. O livro teve mais duas edições: em 2000 saiu pelo Circulo de Leitores, com prefácio de Melo Antunes e um novo capítulo sobre Timor; em 2009 foi reeditado pela Oficina do Livro.
E em 1994 pelo meio da sucessão de atribuições de prémios caiu um processo para despedimentos na TSF. Era o início da criação do Jornalismo Low Cost, como lhe chamou o José Manuel Mestre no 4º Congresso dos Jornalistas. Em 1994, o Mestre estava na lista para despedimentos da TSF. Quando fui ao gabinete do director manifestar a minha total discordância pela existência de uma tal lista, tanto mais que continha alguns dos melhores jornalistas de uma equipa vencedora, fiquei a saber que eu próprio também estava na lista para despedimentos. E foi durante reuniões no gabinete do director, para negociar a rescisão do meu contrato, que caíram sucessivas chamadas telefónicas a anunciar a atribuição de consecutivos prémios para O Regresso das Caravelas
Entretanto, fui convocado para uma reunião com dois administradores – a TSF mudara a composição accionista – que me comunicaram que a proposta para o meu despedimento era um lamentável equívoco, um erro com o qual não podiam estar de acordo, pelo que o processo com vista à cessação do meu contrato ficava naquele mesmo momento sem efeito. Mas as coisas nunca mais foram como tinham sido até então na TSF. Há feridas que não deixam de doer mesmo que cicatrizem.
Adiante! Para 1994, propus uma emissão especial, para consagrar os 20 anos do 25 de Abril, reconstituindo o Dia das Surpresas hora a hora, com os respectivos protagonistas. O desenvolvimento da proposta e o trabalho de pesquisa, identificação e localização de protagonistas deu origem à emissão As 25 Horas do 25 de Abril: das 00h e 20m do dia 25, com a passagem da Grândola Viola Morena na RR, até à 01h 20m de dia 26, com a proclamação da Junta de Salvação Nacional na RTP.  
Fernando Salgueiro Maia, na sua casa, em Santarém, Janeiro de 1992,
evocando o dia em que esteve na mira de um carro de combate e venceu:
 "O brigadeiro foi à torre do carro de combate e disse para o apontador, 
        que era um cabo: “Dispare sobre aquele homem”. E o cabo não disparou. 
             E quando um brigadeiro deu aquela ordem de fogo e um cabo não disparou, 
aí fez-se o 25 de Abril."
                                     
O guião original partiu da Relatório da Operação Fim – Regime; do resto, guardo os papéis de todo o trabalho preparatório, das confirmações, dos registos, tudo, até ao guião final que foi editado ao longo das 25 horas na antena da TSF por Fernando Alves, Sena Santos, Helena Vieira, David Borges e Carlos Andrade. “O dia mais longo da TSF”, escreveu Paulo Curado no Público: “precioso documento histórico”. Emídio Rangel, que viria a replicar a ideia na SIC, mandou um fax de Carnaxide para as Amoreiras: “A TSF fez história». 

Em 1995 apresentei novo projecto de grande reportagem, recuperando um velha ideia que ficara sem resposta das rádios dos anos 80. Tratava-se de procurar pelo País sinais da realidade correspondente à ficção de grandes obras da literatura portuguesa. Eu sabia exactamente o que me propunha fazer, mas reconheço que a proposta era de algum risco. Veio a ser aceite pela direcção da TSF - David Borges, Carlos Andrade e Fernando Alvese no primeiro semestre de 1995 andei em viagem, com uma dúzia de clássicos da literatura portuguesa. 
Vagando pelo quadro imenso do vale do Tejo, em Santarém,
a viagem dos olhos de Almeida Garrett... 
Chamei à série de Viagens com Livros. Visitando os locais da acção, os cenários, os ambientes e as situações de doze romances do último século e meio da literatura portuguesa, encontrei-me, nas encruzilhadas entre a ficção dos livros e a realidade das vidas dos autores. Também com frequência, e apesar de todo o tempo passado desde a data da publicação de cada um dos livros, encontrei sinais muito reais dos sítios, das casas, das ruas e largos, das vilas, cidades e campos que haviam sido cenários de cada romance, como também dos temas e das próprias personagens.

S. Leonardo da Galafura, cenário de Torga
As Viagens começaram pelo «cimo de Portugal», como lhe chama Miguel Torga, com os Contos da Montanha, seguiram pela margem direita do Douro, com A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, e chegaram às «cenas da vida do Porto» de Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis, num tempo em que o «inglês mais benquisto na cidade» não era já Mr. Whitestone mas sim o mister Bobby Robson. Voltaram depois às serras da Beira Alta, onde e Quanto os Lobos Uivam, de Aquilino Ribeiro, vizinhas das terras onde deixou vestígios o Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires, e ao encontro do ciclo de pastores de rebanhos e dos operários de lanifícios de A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, ali bem perto do seminário onde procurava despertar nos claustros do Seminário do Fundão, uma Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira. Quase em linha recta para o litoral, nas areias e pinhais da Gândara, a reportagem passava pela Casa na Duna, de Carlos de Oliveira. 
A Gândara, paisagem tatuada
           na obra de Carlos de Oliveira 

Em Lisboa, o percurso era o da Avenida Almirante Reis, cenário de Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis, e em particular das Saudades para Dona Genciana. De Lisboa partiu o repórter, como partira século e meio antes Almeida Garrett, pelo Vale do Tejo nas Viagens na Minha Terra para ler «o livro de pedra que há em Santarém». No Alentejo, a reportagem procurou a rua, o largo, todas as ruas, largos e conversas dos contos de O Fogo e as Cinzas, de Manuel de Fonseca. E nos Açores, entre a eterna busca da ilha perdida, a gesta dos baleeiros e o presságio de uma serpente cega, a reportagem navegou com Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.
A Fonte da Joaninha das Viagens de Garrett
Digo só isto: em mais de 50 anos de trabalho nenhuma outra iniciativa me deu tanta satisfação pessoal e realização profissional. As doze reportagens, sonorizadas por Alexandrina Guerreiro, foram para o ar entre Abril e Setembro de 1995 e vieram a ser editadas numa caixa de seis CD, com masterização digital das gravações originais, em 1996.
Vigia para a caça à baleia, na ilha do Pico

Ainda cheguei a avançar para a segunda série das Viagens: tinha as obras e os autores identificados, os livros, a história, a literatura e a geografia estudados, algum trabalho de campo realizado para a reportagem em redor da Ode Marítima, de Álvaro de Campos. E, de repente, recebi ordem para deixar tudo e regressar à edição de notícias. 
Já não estava na TSF quando foram atribuídos à série Viagens com Livros dois prémios de reportagem: Prémio de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa, e Prémio Procópio de Jornalismo, 1996.   

Caldas de Aregos / Tormes: adeus cidade,
«adeuzinho, até nunca mais»
Uma das minhas Viagens com Livros, a viagem pela Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, foi objecto da dissertação de mestrado em Jornalismo de Filomena Sousa Borges, na Escola Superior de Comunicação Social, Lisboa, em Novembro de 2013. Apresentados pelo orientador da dissertação e meu antigo director na TSF, Carlos Andrade, conversámos longamente e da conversa mas, acima de tudo, da minuciosa, especializada e atenta audição da reportagem saiu a belíssima e profunda dissertação “Som, sentido e paisagem sonora n’ A Cidade e as Serras, análise de uma reportagem radiofónica”. 
Em Setembro de 1997, depois de uma passagem de seis meses pela delegação de Lisboa do jornal desportivo O Jogo, aceitei o convite do Sérgio Figueiredo para fazer parte da equipa do Diário Económico. Confesso que não gostei da experiência do trabalho em O Jogo, mas agradeço reconhecidamente ao então director, Manuel Tavares, meu camarada dos tempos de O Diário, e ao Joaquim Oliveira. Ceámos os três à beira do Tejo, de 3 para 4 de Setembro de 1997 – e brindámos ao meu filho mais novo, o Francisco, que tinha nascido nesse dia –, mas eu tinha decidido sair e saí.
Uma campanha eleitoral para o DE

E a 6 de Outubro de 1997 comecei a trabalhar no Diário Económico
Então e a rádio? De facto, a rádio…

(continua) 

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