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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

LER O PAÍS: Empreendedora cidade

«O Porto enfim cessou de ser província. É segunda capital
(segunda, por ordem cronológica, bem entendido!)»
Ramalho Ortigão


Por João Paulo Guerra 

«No fundo das suas convicções políticas e sociais o portuense era verdadeiramente patuleia. Detestava instintivamente a Corte, a nobreza, a capital do reino (...) O Governo uma corja! E os pedintes dos deputados, tão bons uns como os outros! (...) Hoje, transformação completa! (...) O Porto enfim cessou de ser província. É segunda capital (segunda, por ordem cronológica, bem entendido!)».
A «farpa» é de Ramalho Ortigão, com data de Julho de 1883, e a «Ramalhal figura» acrescentava que o Porto «perdeu esse bom e saudável cheiro provincial que tão especialmente embebe como de um aroma antigo a prosa dos seus grandes escritores - O Arco de Sant'Ana, de Garrett, e alguns dos romances burgueses de Camilo Castelo Branco e de Júlio Dinis».


No traçado atual da cidade do Porto, Júlio Dinis é nome de uma Avenida, de uma maternidade, de um cinema. Mas o autor vive, acima de tudo, nos percursos do romance «Uma Família Inglesa - Cenas da Vida no Porto»: a antiga Rua dos Ingleses, onde a vida comercial ocupava os passeios, o centro da rua e os portais das casas; a Boavista onde, passado o Carnaval, Carlos Whitestone passeava, bucólico, por entre pinhais; a Quinta da China, o Palácio do Freixo, Campanhã, o Jardim de S. Lázaro, o itinerário do passeio de Manuel Quintino; a Foz, à beira-mar, onde passeavam Jenny Whitestone e Cecília Quintino.
Do tempo do autor e do romance ficaram na cidade a Ponte D. Maria, o Palácio de Cristal, o comboio para Lisboa e o vinho do Porto, sempre generoso. Quanto às figuras do romance, é possível reconhecer ainda os sucessores de Manuel Quintino, nesses «homens que o Porto julga indispensáveis e cujos nomes figuram em quantos cargos, sociedades e comissões se organizam nesta empreendedora cidade». E os sucessores de Mr. Richard, esses continuaram no Porto e nas quintas do Douro os seus hábitos de vida inglesa. Mas a tradição, um século depois da Rainha Vitória, é que já não é o que era.
O Porto, a cidade «toda ela uma forma, uma alma de muralha», na prosa de Agustina Bessa Luís, é o centro e o leitmotiv do projeto da regionalização e da Região Entre Douro e Minho. Entre o Minho, onde «o verde come o resto do arco-íris...», e o «Doiro», um «corpo-a-corpo» de «pedra e água» (Torga).
Do Minho são as «Novelas» de Camilo Castelo Branco, vividas em S. Tiago d'Antas, Requião, S. Paio de Ceide, Santa Maria de Abade, Avidos, Landim, Delães, Vermoim, Ruivães, Esmeriz, Santa Eulália de Arnoso e, ao centro deste universo, Vila Nova de Famalicão ou, mais precisamente, São Miguel de Ceide. E no entanto, como assinalava Alexandre Cabral, o maior dos camilianos, «a vida rural desagradava ao escritor, saudoso porventura dos tempos turbulentos passados no Porto: 'Aqui estou, numa terra onde não há estradas, nem gente... Moscas há mais que as pragas... Os relvedos são lamaceiros... Que aborrecimento'»
Não é este o tradicional postal do Minho. Mas os postais dos escritores viajantes não correspondem, necessariamente, a objetivos de promoção turística. Miguel Torga queixava-se da monotonia da cor: «O vinho é verde, o caldo é verde...», viajando entre Guimarães, «a célula da nacionalidade», «a cama da pátria», e Braga, «a Idoláctrica» (Luíz Pacheco). Já Camilo escrevia que «a cidade santa dos cónegos despeitorou-se, desnalgou-se, sofraldou as saias e mostrou a liga sobre o joelho desde que um jornal da nossa terra lhe chamou segunda Paris». 
Quando a viagem das letras chegou à pena de Luíz Pacheco, quando «o Libertino» passeou por Braga «o seu Esplendor», os santos tremeram nos altares da cidade dos arcebispos: «Decido ficar e fazer uma tarde de luxúria mental em Braga, para esconjurar o cheiro a incenso e mofo de padre que empestam estas ruas». 
O mapa das regiões é uma questão da política. A região das letras não cortaria o Porto do curso do Douro, o leito impetuoso que alimenta a cidade. 


À ambição e à conveniência dos políticos poderá contrapor-se a paixão pela cidade e pela região que, na literatura, viaja de Fernão Lopes a Garrett, de Camilo a Raúl Brandão, de José Gomes Ferreira a Sophia de Mello Breyner, de Agustina a Mário Cláudio, com passagem obrigatória por Eugénio de Andrade: 

«No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo (...) Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim: Para a minha alma eu queria uma torre como esta, assim alta, assim de névoa acompanhando o rio».    

João Paulo Guerra, Diário Económico,  Outubro 1998
Versão para papel de jornal da série de reportagens Viagens com Livros  

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