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sexta-feira, 27 de abril de 2018

... FP-25 disputam audiências com o Papa

EM CIMA DO ACONTECIMENTO ..
Por João Paulo Guerra, TSF
10 de Maio de 1991


Naquele dia de Maio de 1991, o acontecimento era a chegada do Papa a Lisboa. E ninguém previa que pudesse acontecer alguma coisa em cima de tal acontecimento.
       Mas aconteceu. 


Na manhã de 10 de Maio de 1991, a redacção da TSF corria mais que as notícias. Nesse dia, ao princípio da tarde, chegaria a Portugal João Paulo II para uma visita a Lisboa, Açores, Madeira e Fátima. A visita anterior, em Maio de 1982, correra mal, com um atentado contra a vida do Papa por parte de um padre, um fanático religioso armado com uma baioneta.
Na Primavera de 1991, eu estava a editar os noticiários da manhã, das 6 às 10, o horário nobre da rádio, à frente de uma grande equipa da qual faziam parte, entre outros, José Manuel Mestre, Paula Mesquita Lopes, Margarida Serra, João Paulo Baltazar, Luís Lourenço, Ana Cristina Gaspar. As quatro horas em directo eram de pura adrenalina, e nós começávamos a bulir às 4 da manhã para distribuir trabalho, editar sons, conferir agendas e contactos, contactar correspondentes, ler jornais, ouvir outras rádios, ver algumas televisões, prever o que era previsível e, já agora, deixar as portas abertas para o imprevisível, o inesperado capaz de subverter a agenda e surpreender o ouvinte.
Na manhã de 10 de Maio de 1991 a agenda estava preenchida com a ante-visão da chegada e da visita do Papa, com o repórter José Manuel Mestre a reconhecer todo o percurso do desfile papal e a descrever tudo o que mudara na cidade de Lisboa para receber João Paulo II.
        Mas isso seria pelas 14 horas. E às 10, como todos os dias, para a minha equipa era como se lhe abrisse uma válvula de escape.
A rotina de todas as manhãs passava, logo após o noticiário das 10, pela câmara de descompressão: uma descida às Amoreiras para o pequeno-almoço em equipa, antes de voltarmos ao sexto andar da Torre 2 para varrer a agenda e planear o trabalho da manhã seguinte. Mas na manhã de 10 de Maio de 1991 a rotina ia ser quebrada.
No final do noticiário das 10, como acontecia por vezes, eu tinha uma chamada telefónica. Em geral, a eficientíssima produtora Paula Mesquita Lopes procedia à triagem das chamadas e resolvia as questões. Mas aquela chamada era para mim, pessoal. Era uma voz desconhecida, de homem, que me agarrou ao telefone com a promessa de uma grande notícia em exclusivo. Mas para lá chegar eu teria que estar ao meio-dia à porta da Torre 1 das Amoreiras, junto à praça de táxis e ao quiosque dos jornais. Até lá não poderia falar a ninguém sobre o assunto. Foi o que fiz. E como marcara um compromisso para o meio-dia, não desci para o pequeno-almoço. Fiquei a antecipar o estudo da agenda da manhã seguinte. E à hora marcada estava no sítio certo.  Ou seria o sítio errado?
Esperei, procurando apresentar o ar mais natural deste mundo. Olhava para todos os lados e disfarçava acendendo sucessivos cigarros. Quando dei pela carrinha cinzenta, tipo pão-de-forma, pareceu-me que ela já tinha passado mais de uma vez por ali. Mas à segunda ou terceira vez parou, alguém ao lado do condutor fez-me um sinal e em poucos segundos eu tinha entrado pela porta de correr da caixa da carrinha que arrancou rapidamente.
        Caí para cima de duas figuras sentadas na carrinha fechada. Estava escuro mas ainda assim deu para os reconhecer: eram o Rogério Rodrigues, redactor do Público, e o Rui Pereira, repórter do Expresso. O Mundo é pequeno: o Rogério Rodrigues tinha sido meu editor na minha passagem pelo Público, antes de regressar finalmente à rádio pela via da TSF; o Rui Pereira tinha sido meu jovem camarada no Diário. A tal grande notícia não seria em exclusivo – a menos que a rádio batesse a concorrência pela instantaneidade da transmissão - e teria que ser mesmo muito grande para justificar aquelas andanças. Interroguei-os com o olhar mas eles responderam-me com os ombros. Com aquela linguagem gestual não íamos a lado algum. Mas depois de umas tantas voltas entrou mais alguém na caixa da carrinha que se apresentou sumariamente.
- Sou das FP-25.
Não tive tempo para pensar se estaria a ser raptado ou se tinha sido tirado à sorte, com os outros dois camaradas, para testemunhar um atentado das FP-25 contra o Papa. Mas o operacional fez de imediato o ponto da situação.
- As Efe Pês, pá, cessaram toda a actividade.
Então e o que fazíamos ali, três jornalistas em sandes mista dentro de um pão-de-forma, guiados sabe-se lá por onde e acompanhados por três homens talvez procurados pela Polícia?  
            - Queremos dar uma prova de boa vontade - prosseguiu o operacional.  
Nos anos 80, eu tinha acompanhado o julgamento das FP-25 em Monsanto mas não reconheci o nosso interlocutor. Durante a reportagem do julgamento consultara todo o processo. Mas eu não sou juiz. E como jornalista estive no julgamento, como estava ali, não para julgar mas para reportar factos. E quais eram os factos?

- Vamos fazer uma entrega simbólica de material de guerra - anunciou o operacional.
- Uma entrega? A quem?
- A vocês -, prosseguiu o operacional.
- A nós? – Reagimos, num coro uníssono de jornalistas, o que é raro.
- Quer dizer: vamos entregar material de guerra e vocês vão lá estar para dar a notícia.
- E como?
- Calma.
- E quando?
- Mais tarde.
- E agora?
- Agora? Ora! Agora vamos almoçar.

À porta do Cemitério
Bem português: um grupo armado dispõe-se a dizer adeus às armas, convoca três jornalistas para testemunhar o facto, rodeia toda a operação dos maiores tiques de segurança - jornalistas transportados na caixa fechada e às escuras dentro de uma carrinha, às voltas para perderem a orientação e não saberem para onde e por onde vão. E, pelo meio, vai toda a gente almoçar. Tem qualquer coisa de Guerra do Solnado.
A carrinha, entretanto, continuava às voltas, algumas das quais bem apertadas. Aos baldões dentro da caixa fechada e escura, onde estaríamos já? Quando a carrinha por fim parou e a porta se abriu, depois de habituarmos os olhos à luz do dia, vimos que estávamos… em Campo de Ourique. Tinha-se passado uma meia hora e estávamos a pouco mais de 500 metros das Amoreiras, onde ficavam os estúdios da TSF. De maneira que por sugestão dos nossos três anfitriões - anfitriões é uma palavra fraca, mas sequestradores seria demasiado forte -, fomos todos almoçar à Cervejaria Europa, na Rua Francisco Metrass, em Campo de Ourique. Estávamos em Maio, as primeiras sardinhas da época pingavam na grelha. Sardinhas assadas para todos.

Logo à entrada, um dos operacionais apresentou-se ao balcão - provavelmente com um nome falso -, disse que esperava um telefonema muito importante e pediu que o avisassem mal a chamada chegasse. Recomendação que renovou várias vezes ao longo do almoço. Faltavam poucos anos para a generalização dos telemóveis. Ocupámos uma mesa numa sala dos fundos da cervejaria e começámos por falar do tempo e de outras banalidades.
Até que se falou de política. Mas os nossos interlocutores não tinham nada de novo para acrescentar.
- As Efe Pês cessaram toda a sua actividade, pá. Querem dar uma prova de boa vontade, pá. Vamos fazer uma entrega simbólica de material de guerra, pá.  
Mas quando algum dos jornalistas queria saber mais, aprofundar a questão, eles mudavam de assunto.
- Então e que tal estão as sardinhas? - Perguntava um dos operacionais.
Até que chegou, depois de um reforço das sardinhas, a chamada telefónica, posto o que o almoço foi dado por bterminado. Os jornalistas insistiram em dividir a conta, pagámos à pressa e saímos. A carrinha tipo pão-de-forma chegou com os pneus a chiar à porta do restaurante, entrámos, a porta fechou-se, a luz extinguiu-se, voltámos ao circuito em volta de coisa nenhuma. Mas o operacional que viajava agora connosco na caixa da carrinha explicou-nos o que ia acontecer.
Seríamos largados ao fim da Rua Saraiva de Carvalho, ali bem perto, e deveríamos dirigir-nos para o portão do Cemitério dos Prazeres. Do lado esquerdo de quem estava virado para o portão, uns 100 metros mais abaixo, estariam três caixotes com material de guerra e com comunicados das FP-25. A entrega consistia naquilo: nós observávamos os caixotes à confiança, eles garantiam que não estavam armadilhados, líamos os comunicados, tomávamos notas para as nossas notícias. E que nos apressássemos porque a Polícia chegaria de um momento para o outro. Não nos preocupássemos com isso. Disseram-nos que alguém avisaria a Polícia mal nos largassem. O pão-de-forma parou, saímos à pressa e a carrinha arrancou com nova grande chiadeira de pneus. Nós corremos para a porta do cemitério, olhámos para a esquerda e lá estavam os caixotes.
Eram cinco caixotes de papelão grosso, sem qualquer sinalização exterior. Abrimos um deles, depois outro, e outro, para nos certificarmos que não passava tudo de um embuste ou de uma partida de mau gosto. No interior havia pistolas automáticas e pistolas-metralhadoras, com os gatilhos soldados para que não voltassem a ser usadas, temporizadores e outro material para accionar explosivos e um comunicado com os símbolos e o palavreado das FP-25. O Rogério Rodrigues e o Rui Pereira, meus camaradas da imprensa, tomaram notas e fizeram fotografias com pequenas câmaras de bolso. Eu reportei para o gravador o relato do achado.
Também achámos que por dever cívico e para defesa nossa deveríamos telefonar à Polícia. Tirámos à sorte. Um deles foi a um café próximo telefonar para a Polícia, eu fui telefonar para a TSF. Falei com o Emídio Rangel a quem pedi que mandasse alguém ter comigo, imediatamente, à porta do Cemitério dos Prazeres. O Rangel - que por uma boa história, uma boa notícia, mandava alguém ao fim do mundo - mandou a própria secretária, a Glória, que chegou antes da Polícia. Dei-lhe a cassete gravada, com a recomendação para que o Rangel a ouvisse imediatamente. E, já agora, a Glória também ficou fiel depositária dos rolos de fotos batidas pelos camaradas da imprensa. A Glória a partir e nós a começarmos a ouvir ao longe as sirenes dos carros da Polícia. 

Em directo… para o gravador

Primeiro chegou a PSP, Brigada de Minas e Armadilhas. Logo depois veio a PJ, Direcção Central de Combate ao Banditismo. A PSP estabeleceu um perímetro de segurança vedado, dentro do qual ficámos nós, afastou toda a gente e aproximou-se dos caixotes com os agentes protegidos contra eventuais armadilhas. Não havia armadilhas.
O que havia, entre outras armas, era um lote de pistolas Parabellum e revólveres calibre 38, telecomandos e temporizadores para provocar explosões à distância e em diferido no tempo. Também havia um comunicado mas esse já nós conhecíamos. Dizia, simplesmente: «As FP-25 cessaram toda a sua actividade e empenham-se na procura de uma solução política global que passa forçosamente pela amnistia, dissolução da organização e entrega do armamento». O Parlamento já tinha em agenda para próximos dias a discussão sobre a amnistia. 
Talvez houvesse mais alguma coisa: mas nós não conseguíamos ver o fundo aos caixotes. Até porque fomos afastados do local, embora permanecêssemos no interior do perímetro de segurança, onde inspectores da DCCB se ocuparam de nós. Primeiro, começaram por apreender a cassete, limpa, que eu tinha no gravador e os rolos, virgens, das máquinas do Rogério e do Rui. Depois passaram às perguntas.
        Quem éramos, que fazíamos ali, quem nos contactara, porquê nós, podíamos identificar algum dos nossos interlocutores? As respostas eram em geral vagas, evasivas e pela negativa e não satisfaziam a curiosidade e as suspeitas dos polícias. Mas, com franqueza, aquilo era tudo o que sabíamos. Depois separaram-nos e cada um de nós ficou entregue a um inspector que procurava contradições em relação às respostas anteriores. Eu estava a ser ouvido pela DCCB e, através de um pequeno auricular, ouvia a emissão da TSF. Foi assim que ouvi o editor interromper a reportagem da chegada do Papa João Paulo II, do aeroporto de Lisboa, para dar entrada ao repórter João Paulo Guerra com uma notícia de última hora. E lá entrou o meu directo… relatado minutos antes, em directo…  para o gravador. Isso já não foi minha opção mas compreendo-a. 
A notícia saiu no dia seguinte, sábado, 11 de Maio de 1991, no Expresso e no Público. Título da 1ª página do Público, com foto: «FP-25 entregam material de guerra». Texto: «Ontem, à mesma hora em que o Papa aterrava na Portela, três jornalistas, após terem sido contactados por elementos ligados ao processo das FP-25, descobriram, ao lado do portão principal do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, material de guerra, pistolas automáticas e telecomandos (na foto), que a direcção das FP-25 entregava, num gesto simbólico, pugnando por uma ampla amnistia para todos os seus elementos». O texto tinha chamada para a página 10, onde vinha a reportagem do Rogério Rodrigues.
 
O Expresso trouxe a notícia na página 5, com foto, sem assinatura, com o título «FP-25 celebra chegada do Papa». O texto dizia que jornalistas do Expresso, do Público e da TSF foram conduzidos a «um local público de Lisboa» onde lhes foi entregue, por «elementos conhecidos do caso FP-25 que não prestaram declarações e exigiram rigoroso anonimato», cinco caixas de armamento não utilizado. A PSP compareceu no local «avisada pelos jornalistas». A DCCB terá sido avisada «por elementos do próprio comando das FP-25 responsável pela operação».

Os dois jornais do dia 11 de Maio de 1991 traziam mais detalhes, como lhes competia.
Mas a rádio, neste caso a TSF dos gloriosos tempos do Emídio Rangel, estivera na véspera «em cima do acontecimento».
Por João Paulo Guerra TSF 10 de Maio de 1991

2 comentários:

Anónimo disse...

Então e agora? Agora vamos almoçar.

Bem português.

Anónimo disse...

Há todo um lado trágico-cómico neste processo das Forças Populares 25 de Abril que sempre me fascinou. Foi de facto um fenómeno bem à medida do Portugal pequenino e este episódio da "dissolução" é bem demonstrativo dessa forma de estar tão portuguesa que se nos impede tantas vezes de chegar ao topo, também nos impede tantas vezes de cair no abismo.