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quinta-feira, 26 de abril de 2018

A emoção não está prevista no manual de jornalismo

Por João Paulo Guerra, em Moçambique, O Diário, 7 de Maio de 1988


O Luís Lázaro é três anos de gente e tem um braço, o direito, com fracturas múltiplas e expostas. Nos olhos, o Luís Lázaro tem o espanto de todas as perguntas sem resposta, porque o Luís Lázaro não faz as perguntas que fazem os miúdos de três anos e porque não há respostas para as perguntas dos olhos deste miúdo de fraldas, ligaduras e aparelho de gesso. Porquê?


Quem responde ao Luís Lázaro, moçambicano de três anos de vida – menos dez que a jovem independência do seu país, Moçambique? Há cerca de um mês em Vilanculos, província de Inhambane, Moçambique, os bandidos chegaram. Saquearam a aldeia, esfaquearam os homens e metralharam a vida. Diz o boletim clínico no Hospital Central de Maputo que as fracturas múltiplas e expostas do braço direito do Luís Lázaro foram provocadas por balas. Uma rajada de espingarda metralhadora no corpo de uma criança de três anos não é um acto de guerra, não é coisa de soldados. É obra de bandidos. O Luís Lázaro foi metralhado num braço mas alguém sabe qual é a distância entre um braço e o coração num corpo de três anos? Alguém dispara para o braço de uma criança de três anos, ou simplesmente atira ao alvo que é um corpo pequeno, que cabe ao colo, que se aperta contra o peito, um pequeno corpo que cabe inteiro nas costas da mãe aconchegado nas dobras da capulana? O Luís Lázaro, de três anos de vida, não tem um dói-dói, tem fracturas múltiplas e expostas provocadas por balas disparadas por bandidos. Bandidos!
Que me desculpem a emoção, que é coisa que não está prevista nos manuais de jornalismo. Mas quem é que quer saber dos manuais de jornalismo diante do corpo mutilado de uma criança de três anos? E o jornalismo, diante do Luís Lázaro – sinal vivo deste guerra de inaudita crueldade – que mais pode e deve ser que um braço a apontar, já que o Luís Lázaro não tem hoje e talvez não tenha nunca, um braço direito para apontar: foram eles, os bandidos!

No Hospital Central de Maputo misturam-se o bafo do calor e da humidade – 30 graus e um tecto baixo a ameaçar chuva – e cheiros intensos de desinfectantes e infectantes, de corpos, de pus e de suores, de camas e roupas, da febre e da doença, ouvem-se vozes e gritos, choros e gemidos. À porta e pelos corredores vigora aquela imensa resignação dos doentes pobres, dependentes do remédio para a doença e da solução para a pobreza. Será como em todos os grandes hospitais das grandes cidades e não é nada agradável visitá-los. Mas, se não sujamos os sapatos no pó das estradas com o é que vamos conhecer os caminhos e saber as distâncias? E há alguma estatística que nos dê o grau de sofrimento das pessoas?
Aqui, sofrem as vítimas da guerra contra o povo de Moçambique. O inimigo tem um longo braço armado e aqui se encontram homens, mulheres e crianças vindos do Rovuma ao Maputo, os corpos traçados pelas armas dos bandidos. Josio, 8 anos, fracturas múltiplas na perna esquerda, conta que os bandidos chegaram à aldeia, entraram na casa e dispararam. Foi há menos de um mês, aqui perto, em Moamba, província de Maputo.
Sucedem-se os relatos sofridos, porque talvez seja que falar alivie as dores e afaste os fantasmas – como quem assobia no escuro -, sucedem-se as memórias das horas de sangue e de pavor, como as que viveu Lourenço dos Santos, 22 anos, jovem de Manhiça e técnico do Departamento de Prevenção e Combate às Calamidades Naturais, que passou uma noite inteira, retirado meia dúzia de metros para fora da Estrada Número 1, a 13 quilómetros de Manhiça, 40 quilómetros de Maputo e outro tanto da fronteira com a África do Sul, assistindo à chacina dos seus companheiros de viagem, numa coluna de cinco camiões civis e um militar, ele próprio com uma das pernas esfacelada a tiro - «ouvi os tiros e senti a perna a dançar, a dançar de cima para baixo, e muito frio, ou calor, não sei» -, a perna garrotada com o cinto das calças e os atacadores das sapatilhas, num derradeiro esforço de sobrevivência, enquanto os bandidos, certamente julgando-o morto, se entregavam a uma orgia de sangue, fogo e destruição, a um jogo macabro sobre corpos já sem vida, os fuzilamentos de dois militares amarrados de costas um ao outro, e isto toda a noite e pela noite foram, e nunca mais era dia, até que se calaram os bandidos, exaustos, esgotados da orgia e das disputas violentas em volta do saque, e se ouviram então os pássaros a prever as luzes do dia e ao longe, muito ao longe, se ouviu o ronco dos motores dos carros – seriam dos militares? chegariam a tempo? - que dos bandidos já só encontraram os rastos sangrentos da chacina e um único sobrevivente, ele próprio, Lourenço dos Santos, vivo mas morto de terror e de ansiedade, toda a noite a contar cada segundo como o último segundo antes da morte, agora queria erguer-se para que o vissem mas já não tinha forças e perna tinha só uma, e agora relata a sua história de terror de um fôlego, como temendo não ter tempo para contar tudo e para chorar, na paz branca de uma cama de hospital, desconfiando o pior quanto ao futuro da sua perna direita, submetido no dia da vista a mais uma limpeza cirúrgica, talvez a derradeira esperança antes da amputação, aos 22 anos.

Para aqui vêm os casos mais graves, diz a enfermeira Isabel, um sorrio lindo que era o único sinal de frescura e de alegria, naquela tarde, no Serviço de Ortopedia 1 do Hospital Central de Maputo. Ainda assim, não são muito numerosas, relativamente, as vítimas civis internadas. Mas, como observa a enfermeira Isabel: «E para aqui só vêm os vivos».
Cá fora, na Avenida Agostinho Neto, respira-se, estão a cair as chuvas da mudança de estação, pelo menos está mais fresco e do chão sobe um vapor e um cheiro forte de terra e de flores africanas, é «o cheiro da terra agradecida depois da chuva», dizia José Bação Leal, poeta e alferes miliciano que morreu em Moçambique por uma guerra que não queria, assassinado pela Pátria.

Deslocados de guerra
Ninguém sabe dizer, com rigor, qual é neste momento a população de cada uma das 10 províncias ou dos 109 distritos de Moçambique. Há uma população móvel de um milhão e cem mil deslocados em fuga à guerra e à fome – sobretudo no centro e norte do país, mas também em Gaza, Inhambane e Maputo – abandonando os campos e acolhendo-se nas cidades e nos centros de deslocados, o que desorganiza por completo a produção e os circuitos de abastecimentos. Somam-se aos que fogem das aldeias e dos campos de prisioneiros do Inimigo. Todos trazem nos corpos as marcas terríveis das maiores privações, chegam seminus e famintos, dizimados pela subnutrição, pelas doenças e pelas feras.
Em Marromeu, vila da margem sul do Zambeze, província de Sofala, 160 quilómetros para norte da cidade da Beira, António Bouzene João, comandante distrital da Polícia Popular, avisa-me que «é preciso coragem para ver», antes de me conduzir ao centro de acomodação de deslocados de Nucepe, um dos três centros da cintura de fome da vila. Eu tinha chegado a Marromeu a bordo de um velho Dakota sem porta, viajando em cima de sacos de feijão – um carregamento de oito toneladas fornecido «by the people os United States of America» - e da fome em Moçambique tinha uma ideia teórica colhida em Maputo e na Beira em resmas de estatísticas e horas de conversas.

Mas agora a fome estava ali e eu não sabia, ante de chegar a Nucepe, Marromeu, que a vida podia subsistir e circular por entre o espaço nenhum, que eu via entre os ossos e a pele dos corpos das mulheres e crianças, a pele que os ombros e os joelhos quase perfuravam, nas faces que deixavam adivinhar os contornos das caveiras, mas que, ainda assim, faziam gestos lentos e articulavam sons, e os olhos, os olhos moviam-se e seguiam-me e eu vi, ou julguei ver, qualquer coisa como um sorriso, ou seria apenas um esgar, um estertor, um grito sem força para romper a grade dos dentes.
Eram 88 e tinham chegado, dias antes, do cativeiro, vindos de Massiamboze, distrito de Inhaminga, onde permaneceram mais de dois anos alimentando-se de suco das raízes e vestindo-se da casca curtida das missassas. Mais nada.

Política do medo e da fome
Marromeu, neste ano de 1988, é uma vila fantasma onde, para lá das instituições sociais, a única actividade visível é a de esperar pelo avião dos abastecimentos – a comida que chega do céu, sacos de feijão americano, Pinto Beans, transportado pelo velho Dakota sem portas, tripulado por pilotos civis sul-africanos contratos pela empresa moçambicana de táxis aéreos. De resto, em Marromeu funciona o posto de saúde – mas faltam medicamentos e os doentes e feridos mais graves têm de ser evacuados para a Beira -, a escola – mas falta mobiliário, na aldeia já cortaram madeira mas não há pregos -, o departamento das calamidades, as forças de defesa e segurança. Marromeu esteve ocupada e durante a ocupação os bandidos dinamitaram a fábrica da Sena Sugar. Hoje, o único estabelecimento comercial na vila de Marromeu tem à venda o que restou dos stocks de açúcar mas ninguém compra.
Marromeu esteve ocupada 17 dias em Janeiro de 1986. Na retirada, os ocupantes saquearam a vila e levaram consigo grande parte da população, para carregar o saque e para servir de escudo para eventuais operações de perseguição. As mulheres carregam o saque, trabalham nas machambas, são escravas sexuais. Os rapazes têm instrução militar. E participaram num ataque seguinte a uma povoação da sua região de origem. Aqueles jovens perdem nesses dias as ligações com a sua comunidade e ficam comprometidos, por laços de sangue e de terror.
As populações sequestradas, algumas das quais começam agora a voltar às suas terras, têm estatuto de verdadeira escravatura: trabalham, sem roupas nem alimentos, e sobrevivem da generosidade da floresta. A permanente instabilidade e deslocação de populações impede a mais elementar norma de sobrevivência em terra fértil como a de África: ninguém tem tempo para semear e colher.

De regresso à Beira ao fim do dia, com um esplendoroso pôr-do-sol africano, num voo rasante sobre matas verdes e cursos de água, levantando com o ruído dos motores manadas de búfalos e antílopes, deu para sonhar com uma terra de paz e de abundância. Mas, como que para despertar do sonho, por duas vezes os pilotos sinalizaram movimentos em terra que os fizeram elevar o Dakota às alturas por razões de segurança.

(…)
Duas semanas depois, concluída a reportagem sobre a guerra e a paz em Moçambique, despedi-me dos velhos e dos novos amigos e, de caminho para ao aeroporto, ainda passei pelo Hospital Central de Maputo. O Luís Lázaro continuava com as mesmas perguntas nos olhos espantados.

 João Paulo Guerra, O Diário, 7 de Maio de 1988
Fotos: Notícias, de Maputo, e Diário de Moçambique, Beira

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