EM CIMA DO ACONTECIMENTO ...
Por João Paulo Guerra, TSF
Por João Paulo Guerra, TSF
Naquele dia de Maio de 1991, o acontecimento
era a chegada do Papa a Lisboa. E ninguém previa que pudesse acontecer alguma
coisa em cima de tal acontecimento.
Mas aconteceu.
Mas aconteceu.

Na Primavera de 1991, eu estava
a editar os noticiários da manhã, das 6 às 10, o horário nobre da rádio, à
frente de uma grande equipa da qual faziam parte, entre outros, José Manuel
Mestre, Paula Mesquita Lopes, Margarida Serra, João Paulo Baltazar, Luís
Lourenço, Ana Cristina Gaspar. As quatro horas em directo eram de pura
adrenalina, e nós começávamos a bulir às 4 da manhã para distribuir trabalho, editar
sons, conferir agendas e contactos,
contactar correspondentes, ler jornais, ouvir outras rádios, ver algumas
televisões, prever o que era previsível e, já agora, deixar as portas abertas
para o imprevisível, o inesperado capaz de subverter a agenda e surpreender o
ouvinte.
Na manhã de 10 de Maio de 1991 a agenda estava
preenchida com a ante-visão da chegada e da visita do Papa, com o repórter José
Manuel Mestre a reconhecer todo o percurso do desfile papal e a descrever tudo
o que mudara na cidade de Lisboa para receber João Paulo II.
Mas isso seria pelas 14 horas. E às 10, como todos os dias, para a minha equipa era como se lhe abrisse uma válvula de escape.
Mas isso seria pelas 14 horas. E às 10, como todos os dias, para a minha equipa era como se lhe abrisse uma válvula de escape.
A rotina de todas as manhãs
passava, logo após o noticiário das 10, pela câmara de descompressão: uma
descida às Amoreiras para o pequeno-almoço em equipa, antes de voltarmos ao
sexto andar da Torre 2 para varrer a agenda e planear o trabalho da manhã
seguinte. Mas na manhã de 10 de Maio de 1991 a rotina ia ser quebrada.
No final do noticiário das 10,
como acontecia por vezes, eu tinha uma chamada telefónica. Em geral, a
eficientíssima produtora Paula Mesquita Lopes procedia à triagem das chamadas e
resolvia as questões. Mas aquela chamada era para mim, pessoal. Era uma voz
desconhecida, de homem, que me agarrou ao telefone com a promessa de uma grande
notícia em exclusivo.
Mas para lá chegar eu teria que estar ao meio-dia à porta da
Torre 1 das Amoreiras, junto à praça de táxis e ao quiosque dos jornais. Até lá
não poderia falar a ninguém sobre o assunto. Foi o que fiz. E como marcara um
compromisso para o meio-dia, não desci para o pequeno-almoço. Fiquei a
antecipar o estudo da agenda da manhã seguinte. E à hora marcada estava no
sítio certo. Ou seria o sítio errado?
Esperei, procurando apresentar o
ar mais natural deste mundo. Olhava para todos os lados e disfarçava acendendo
sucessivos cigarros. Quando dei pela carrinha cinzenta, tipo pão-de-forma, pareceu-me que ela já
tinha passado mais de uma vez por ali. Mas à segunda ou terceira vez parou,
alguém ao lado do condutor fez-me um sinal e em poucos segundos eu tinha
entrado pela porta de correr da caixa da carrinha que arrancou rapidamente.
Caí para cima de duas figuras sentadas na carrinha fechada. Estava escuro mas ainda assim deu para os reconhecer: eram o Rogério Rodrigues, redactor do Público, e o Rui Pereira, repórter do Expresso. O Mundo é pequeno: o Rogério Rodrigues tinha sido meu editor na minha passagem pelo Público, antes de regressar finalmente à rádio pela via da TSF; o Rui Pereira tinha sido meu jovem camarada no Diário. A tal grande notícia não seria em exclusivo – a menos que a rádio batesse a concorrência pela instantaneidade da transmissão - e teria que ser mesmo muito grande para justificar aquelas andanças. Interroguei-os com o olhar mas eles responderam-me com os ombros. Com aquela linguagem gestual não íamos a lado algum. Mas depois de umas tantas voltas entrou mais alguém na caixa da carrinha que se apresentou sumariamente.
Caí para cima de duas figuras sentadas na carrinha fechada. Estava escuro mas ainda assim deu para os reconhecer: eram o Rogério Rodrigues, redactor do Público, e o Rui Pereira, repórter do Expresso. O Mundo é pequeno: o Rogério Rodrigues tinha sido meu editor na minha passagem pelo Público, antes de regressar finalmente à rádio pela via da TSF; o Rui Pereira tinha sido meu jovem camarada no Diário. A tal grande notícia não seria em exclusivo – a menos que a rádio batesse a concorrência pela instantaneidade da transmissão - e teria que ser mesmo muito grande para justificar aquelas andanças. Interroguei-os com o olhar mas eles responderam-me com os ombros. Com aquela linguagem gestual não íamos a lado algum. Mas depois de umas tantas voltas entrou mais alguém na caixa da carrinha que se apresentou sumariamente.
- Sou das FP-25.
Não tive tempo para pensar se
estaria a ser raptado ou se tinha sido tirado à sorte, com os outros dois
camaradas, para testemunhar um atentado das FP-25 contra o Papa. Mas o operacional fez de imediato o ponto da
situação.
- As Efe Pês, pá, cessaram toda
a actividade.
Então e o que fazíamos ali, três
jornalistas em sandes mista dentro de um pão-de-forma,
guiados sabe-se lá por onde e acompanhados por três homens talvez procurados pela
Polícia?
Nos anos 80, eu tinha
acompanhado o julgamento das FP-25 em Monsanto mas não reconheci o nosso
interlocutor. Durante a reportagem do julgamento consultara todo o processo.
Mas eu não sou juiz. E como jornalista estive no julgamento, como estava ali, não
para julgar mas para reportar factos. E quais eram os factos?
- Vamos fazer uma entrega simbólica
de material de guerra - anunciou o operacional.
- Uma entrega? A quem?
- A vocês -, prosseguiu o operacional.
- A nós? – Reagimos, num coro
uníssono de jornalistas, o que é raro.
- Quer dizer: vamos entregar
material de guerra e vocês vão lá estar para dar a notícia.
- E como?
- Calma.
- E quando?
- Mais tarde.
- E agora?
- Agora? Ora! Agora vamos
almoçar.
Bem português: um grupo armado
dispõe-se a dizer adeus às armas, convoca três jornalistas para testemunhar o
facto, rodeia toda a operação dos maiores tiques de segurança - jornalistas transportados
na caixa fechada e às escuras dentro de uma carrinha, às voltas para perderem a
orientação e não saberem para onde e por onde vão. E, pelo meio, vai toda a
gente almoçar. Tem qualquer coisa de Guerra do Solnado.
A carrinha, entretanto,
continuava às voltas, algumas das quais bem apertadas. Aos baldões dentro da caixa
fechada e escura, onde estaríamos já? Quando a carrinha por fim parou e a porta se
abriu, depois de habituarmos os olhos à luz do dia, vimos que estávamos… em
Campo de Ourique. Tinha-se passado uma meia hora e estávamos a pouco mais de
500 metros das Amoreiras, onde ficavam os estúdios da TSF. De maneira que por
sugestão dos nossos três anfitriões - anfitriões é uma palavra fraca, mas
sequestradores seria demasiado forte -, fomos todos almoçar à Cervejaria Europa,
na Rua Francisco Metrass, em Campo de Ourique. Estávamos em Maio, as primeiras
sardinhas da época pingavam na grelha. Sardinhas assadas para todos.
Logo à entrada, um dos operacionais apresentou-se ao balcão -
provavelmente com um nome falso -, disse que esperava um telefonema muito
importante e pediu que o avisassem mal a chamada chegasse. Recomendação que
renovou várias vezes ao longo do almoço. Faltavam poucos anos para a
generalização dos telemóveis. Ocupámos uma mesa numa sala dos fundos da cervejaria
e começámos por falar do tempo e de outras banalidades.
Até que se falou de política.
Mas os nossos interlocutores não tinham nada de novo para acrescentar.
- As Efe Pês cessaram toda a sua
actividade, pá. Querem dar uma prova de boa vontade, pá. Vamos fazer uma entrega simbólica
de material de guerra, pá.
Mas quando algum dos jornalistas
queria saber mais, aprofundar a questão, eles mudavam de assunto.
- Então e que tal estão as
sardinhas? - Perguntava um dos
operacionais.
Até que chegou, depois de um
reforço das sardinhas, a chamada telefónica, posto o que o almoço foi dado por bterminado. Os jornalistas insistiram em
dividir a conta, pagámos à pressa e saímos. A carrinha tipo pão-de-forma chegou com os pneus a chiar
à porta do restaurante, entrámos, a porta fechou-se, a luz extinguiu-se,
voltámos ao circuito em volta de coisa nenhuma. Mas o operacional que viajava
agora connosco na caixa da carrinha explicou-nos o que ia acontecer.
Seríamos largados ao fim da Rua
Saraiva de Carvalho, ali bem perto, e deveríamos dirigir-nos para o portão do
Cemitério dos Prazeres. Do lado esquerdo de quem estava virado para o portão,
uns 100 metros mais abaixo, estariam três caixotes com material de guerra e com
comunicados das FP-25. A entrega consistia naquilo: nós observávamos os
caixotes à confiança, eles garantiam que não estavam armadilhados, líamos os
comunicados, tomávamos notas para as nossas notícias. E que nos apressássemos
porque a Polícia chegaria de um momento para o outro. Não nos preocupássemos
com isso. Disseram-nos que alguém avisaria a Polícia mal nos largassem. O pão-de-forma parou, saímos à pressa e a
carrinha arrancou com nova grande chiadeira de pneus. Nós corremos para a porta
do cemitério, olhámos para a esquerda e lá estavam os caixotes.
Eram cinco caixotes de papelão
grosso, sem qualquer sinalização exterior. Abrimos um deles, depois outro, e
outro, para nos certificarmos que não passava tudo de um embuste ou de uma
partida de mau gosto. No interior havia pistolas automáticas e pistolas-metralhadoras, com os gatilhos
soldados para que não voltassem a ser usadas, temporizadores e outro material
para accionar explosivos e um comunicado com os símbolos e o palavreado das FP-25.
O Rogério Rodrigues e o Rui Pereira, meus camaradas da imprensa, tomaram notas
e fizeram fotografias com pequenas câmaras de bolso. Eu reportei para o
gravador o relato do achado.
Também achámos que por dever
cívico e para defesa nossa deveríamos telefonar à Polícia. Tirámos à sorte. Um
deles foi a um café próximo telefonar para a Polícia, eu fui telefonar para a
TSF. Falei com o Emídio Rangel a quem pedi que mandasse alguém ter comigo,
imediatamente, à porta do Cemitério dos Prazeres. O Rangel - que por uma boa
história, uma boa notícia, mandava alguém ao fim do mundo - mandou a própria
secretária, a Glória, que chegou antes da Polícia. Dei-lhe a cassete gravada,
com a recomendação para que o Rangel a ouvisse imediatamente. E, já agora, a Glória
também ficou fiel depositária dos rolos de fotos batidas pelos camaradas da
imprensa. A Glória a partir e nós a começarmos a ouvir ao longe as sirenes dos
carros da Polícia.
Em directo… para o gravador
Primeiro chegou a PSP, Brigada
de Minas e Armadilhas. Logo depois veio a PJ, Direcção Central de Combate ao
Banditismo. A PSP estabeleceu um perímetro de segurança vedado, dentro do qual
ficámos nós, afastou toda a gente e aproximou-se dos caixotes com os agentes
protegidos contra eventuais armadilhas. Não havia armadilhas.
O que havia, entre outras armas, era um lote de pistolas Parabellum e revólveres calibre 38,
telecomandos e temporizadores para provocar explosões à distância e em diferido
no tempo. Também havia um comunicado mas esse já nós conhecíamos. Dizia,
simplesmente: «As FP-25 cessaram toda a sua actividade e empenham-se na procura
de uma solução política global que passa forçosamente pela amnistia, dissolução
da organização e entrega do armamento». O Parlamento já tinha em agenda para próximos dias a discussão sobre a amnistia.
Talvez houvesse mais alguma
coisa: mas nós não conseguíamos ver o fundo aos caixotes. Até porque fomos
afastados do local, embora permanecêssemos no interior do perímetro de
segurança, onde inspectores da DCCB se ocuparam de nós. Primeiro, começaram por
apreender a cassete, limpa, que eu tinha no gravador e os rolos, virgens, das
máquinas do Rogério e do Rui. Depois passaram às perguntas.
A notícia saiu no dia seguinte,
sábado, 11 de Maio de 1991, no Expresso e
no Público. Título da 1ª página do Público, com foto: «FP-25 entregam
material de guerra». Texto: «Ontem, à mesma hora em que o Papa aterrava na
Portela, três jornalistas, após terem sido contactados por elementos ligados ao
processo das FP-25, descobriram, ao lado do portão principal do Cemitério dos
Prazeres, em Lisboa, material de guerra, pistolas automáticas e telecomandos
(na foto), que a direcção das FP-25 entregava, num gesto simbólico, pugnando
por uma ampla amnistia para todos os seus elementos». O texto tinha chamada
para a página 10, onde vinha a reportagem do Rogério Rodrigues.

Os dois jornais do dia 11 de
Maio de 1991 traziam mais detalhes, como lhes competia.
Mas a rádio, neste caso a TSF dos gloriosos tempos do Emídio Rangel, estivera na véspera «em cima do acontecimento».
Mas a rádio, neste caso a TSF dos gloriosos tempos do Emídio Rangel, estivera na véspera «em cima do acontecimento».
Por João Paulo Guerra TSF 10 de Maio de 1991
2 comentários:
Então e agora? Agora vamos almoçar.
Bem português.
Há todo um lado trágico-cómico neste processo das Forças Populares 25 de Abril que sempre me fascinou. Foi de facto um fenómeno bem à medida do Portugal pequenino e este episódio da "dissolução" é bem demonstrativo dessa forma de estar tão portuguesa que se nos impede tantas vezes de chegar ao topo, também nos impede tantas vezes de cair no abismo.
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