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sábado, 2 de julho de 2016

Os Olhos Azuis do cinema na Guiné-Bissau

Entrevista com o realizador guineense Flora Gomes.

João Paulo Guerra, TSF, 26 de Janeiro de 1991,
Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, Bissau


No regresso a Lisboa, após a reportagem de um processo político que culminou com a introdução do multipartidarismo na Guiné-Bissau, o repórter cruzou-se no aeroporto com o realizador de cinema Flora Gomes. Nascido em 1949 em Cadique, tabanca a sul de Bissau, uma das principais povoações produtoras de arroz no tempo colonial, Florentino Gomes foi levado pela guerrilha guineense para estudar em Conakry e mais tarde em Cuba. Voltou formado em cinema. Filmou os últimos anos de guerra e depois da independência começou a filmar histórias para o futuro do seu país.
Foi muito bem empregue o tempo de espera naquele dia de Janeiro de 1991, no aeroporto de Bissau.

Pergunta – Como é que um guineense chega a realizador de cinema?
Flora Gomes – Bom, no meu caso foi muito simples. Eu fui dos jovens que a guerrilha, quando passou pela minha aldeia, levou para Conakry para receberem instrução. Fiz a escola primária, a secundária e estudos pré-universitários…



Pergunta – Quando saiu da sua aldeia tinha alguma vez visto cinema?
Flora Gomes – Sim, já tinha visto. Foi o cinema itinerante do Manuel Joaquim, que passou por lá. 
Pergunta - Lembra-se do filme?
Flora Gomes – Era um filme com sete ladrões…
Pergunta – E quanto aos estudos pré-universitários, também os frequentou em Conakry?
Flora Gomes – Não, estudei em Cuba. E estudei cinema no ICAIC, que era o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas.
Pergunta – Lembra-se de algum dos seus professores cubanos?
Flora Gomes – Lembro-me do realizador Santiago Alvarez.
Pergunta – E depois?
Flora Gomes – Fui chamado para o país ainda durante a guerra.
Pergunta – Não entrou aqui por Bissau?
Flora Gomes – Não, vim por Conakry e pelo interior do país.
Pergunta – E veio para aplicar os conhecimentos de cinema?
Flora Gomes – Era um desejo de Amílcar Cabral: registar a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Mas morreu antes disso. Ainda estive também no Senegal, a fazer um estágio com Paulin Soumanou Vieyra, um realizador do Benin, o primeiro cineasta africano que entrou no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, em Paris.
Pergunta – O que é um cineasta africano? É simplesmente um cineasta nascido em África?
Flora Gomes – É alguém que recebe uma formação técnica europeia mas que transporta consigo a sua cultura e os seus valores de homem africano.
Pergunta – E foi assim que começou a fazer cinema?
Flora Gomes – Comecei a fazer reportagens da guerra, tomei parte em algumas operações.
Pergunta – Onde, por exemplo?
Flora Gomes – A primeira acção em que participei foi na Operação No Pintcha, em 1973, quem comandava a operação e me levou foi o Samba Lamine Mané, numa acção contra Bigene, no norte.
Pergunta – E como é que se pega numa máquina de filmar durante uma operação militar? Pega-se como numa arma?
Flora Gomes – O meu objectivo era realmente filmar, registar a história.
Pergunta – E na altura tinha consciência disso, de que estava a registar a história?
Flora Gomes – Sim, tinha essa consciência. Nós tínhamos dirigentes, como o Amílcar Cabral, que diziam sempre que a luta que estávamos a fazer não era para nós, era para amanhã, para os nossos filhos. Nós estávamos a escrever páginas para a história, para o futuro das crianças guineenses e, como dizem os franceses, pourquoi pas, para o futuro também das crianças portuguesas.
Pergunta – Será por essa razão que o seu filme Mortu Nega foi bem recebido em Portugal, porque foi entendido?
Flora Gomes – Eu penso que nós procuramos fazer-nos entender, seja por quem for. O mais importante do meu filme Mortu Nega não era mostrar a guerra - isso toda a gente sabia que aconteceu -, mas mostrar homens que faziam a guerra para construir uma nação. Penso que o povo português percebeu isso muito bem. Para mim, o filme foi um pontapé de saída muito feliz e pode ter aberto caminho para uma próxima produção com Portugal, visto que a Guiné-Bissau não tem condições para financiar longas-metragens.
Pergunta – A sua formação está muito ligada à luta de libertação. Vai ficar assim para sempre?
Flora Gomes – Eu penso que serei capaz de me libertar da questão da guerra. Eu já foco muito pouco a guerra propriamente dita mas há coisas que ficaram na minha consciência. Agora tenho que projectar a minha imagem e a imagem do meu país para o futuro. Os povos, mesmo os que fizeram a guerra, querem viver em paz, querem divertir-se, jogar futebol, viver.
Pergunta – O seu filme já foi visto em África?
Flora Gomes – O meu filme Mortu Nega foi visto no Burkina Faso, onde se realiza a maior manifestação do cinema africano. Também foi visto na Argélia, onde teve um prémio. Na Tunísia ganhou um prémio de interpretação feminina. Mas eu tive que deixar a promoção desse filme porque estou a preparar uma nova longa-metragem. 
Pergunta – O seu filme não foi visto em Bissau?
Flora Gomes – Foi visto mas não há salas em condições. O filme passou durante um mês no Centro Cultural Francês, uma sala para 200 pessoas. Mas durante um mês a sala esteve cheia.
Pergunta – Está a trabalhar num novo filme. Que relação tem esse novo filme com o anterior?
Flora Gomes – O meu próximo filme, que se chama Os Olhos Azuis de Yonta, é uma comédia dramática, que se passa em Bissau. Os filmes não têm que ser para as pessoas irem para lá chorar mas devem reflectir as dificuldades da vida. E o meu filme é uma história de um jovem que vem de Bolama – que é uma cidade e uma ilha dos Bijagós -, e ele quer escrever uma carta a uma rapariga. E então recorre a um livro português que existia antigamente e se intitulava: Como escrever uma carta. E o jovem copia desse livro palavras, algumas delas derivadas do latim, e uma frase que dizia que a miúda, a quem a carta se dirigia, tinha os olhos azuis. E a miúda que recebeu a carta convenceu-se que tinha olhos azuis.
Pergunta – Que dificuldades tem um cineasta guineense?
Flora Gomes – O ideal talvez seja falar num cineasta africano. Somos nós a fazer o guião, a montar a produção, a fazer de cameraman, é uma espécie de homem-orquestra, e depois temos os problemas do financiamento, da distribuição. Eu acho que a primeira condição para se ser cineasta africano é ser maluco. Mas temos que afirmar a nossa cultura. Fomos colonizados por diferentes culturas e nós temos que afirmar o que é positivo na nossa própria cultura.
Pergunta – Neste filme que está a preparar trabalha com técnicos e com actores guineenses?
Flora Gomes – Eu trabalho com guineenses que nem têm nada a ver com cinema. Por exemplo, eu estou a trabalhar nos diálogos do novo filme com um grande amigo meu, que é o Manuel Rambout Barcelos, que é o ministro da Educação e que tem uma paixão pelo cinema. Nós também não temos actores profissionais. Então eu gosto de ensaiar os actores e descobrir nos actores as minhas personagens.
Pergunta – Já encontrou a rapariga africana dos olhos azuis?
Flora Gomes – Já encontrei. Mas ainda não a informei da escolha. Se ela continuar a trabalhar como tem trabalhado será a minha próxima vedette, a Yonta, dos olhos azuis.

João Paulo Guerra, TSF, entrevista em 26 de Janeiro de 1991, Bissau.



Filmografia de Flores Gomes
1976 – O Regresso de Cabral (curta-metragem, documentário)
1977 – A Reconstrução (média-metragem, documentário) - co-realização com Sérgio Pina
1978 – Anos no Oça Luta (curta-metragem, documentário) - co-realização com Sérgio Pina
1987 – Mortu Nega (etnoficção)
1992 – Os Olhos Azuis de Yonta
1994 – A máscara (curta-metragem, documentário)
1996 – Po di Sangui (etnoficção)
2002 – Nha Fala
2007 – As duas faces da Guerra, co-realização com Diana Andringa (longa-metragem, documentário)
2013 – República di Mininus

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns!!!
Conheci parte do seu País e admiro muito sua vontade de mostrar ao mundo um continente maravilhoso chamado Biasau.... vai em frente!