Entrevista com o realizador guineense Flora Gomes.
João Paulo Guerra, TSF, 26 de Janeiro de 1991,
Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, Bissau
No regresso a Lisboa, após
a reportagem de um processo político que culminou com a introdução do
multipartidarismo na Guiné-Bissau, o repórter cruzou-se no aeroporto com o
realizador de cinema Flora Gomes. Nascido em 1949 em Cadique, tabanca a sul de
Bissau, uma das principais povoações produtoras de arroz no tempo colonial, Florentino
Gomes foi levado pela guerrilha guineense para estudar em Conakry e mais tarde em
Cuba. Voltou formado em cinema. Filmou os últimos anos de guerra e depois da
independência começou a filmar histórias para o futuro do seu país.
Foi muito bem empregue o
tempo de espera naquele dia de Janeiro de 1991, no aeroporto de Bissau.
Pergunta –
Como é que um guineense chega a realizador de cinema?
Flora
Gomes – Bom, no meu caso foi muito simples. Eu fui dos jovens
que a guerrilha, quando passou pela minha aldeia, levou para Conakry para
receberem instrução. Fiz a escola primária, a secundária e estudos
pré-universitários…
Pergunta –
Quando saiu da sua aldeia tinha alguma vez visto cinema?
Flora
Gomes – Sim, já tinha visto. Foi o cinema itinerante do
Manuel Joaquim, que passou por lá.
Pergunta - Lembra-se
do filme?
Flora
Gomes – Era um filme com sete ladrões…
Pergunta –
E quanto aos estudos pré-universitários, também os frequentou em Conakry?

Pergunta –
Lembra-se de algum dos seus professores cubanos?
Flora
Gomes – Lembro-me do realizador Santiago Alvarez.
Pergunta
–
E depois?
Flora
Gomes – Fui chamado para o país ainda durante a guerra.
Pergunta –
Não entrou aqui por Bissau?
Flora
Gomes – Não, vim por Conakry e pelo interior do país.
Pergunta –
E veio para aplicar os conhecimentos de cinema?
Flora
Gomes – Era um desejo de Amílcar Cabral: registar a
proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Mas morreu antes disso. Ainda estive
também no Senegal, a fazer um estágio com Paulin Soumanou Vieyra, um realizador
do Benin, o primeiro cineasta africano que entrou no Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos, em Paris.
Pergunta
–
O que é um cineasta africano? É simplesmente um cineasta nascido em África?
Flora
Gomes – É alguém que recebe uma formação técnica europeia mas
que transporta consigo a sua cultura e os seus valores de homem africano.
Pergunta –
E foi assim que começou a fazer cinema?
Flora
Gomes – Comecei a fazer reportagens da guerra, tomei parte em
algumas operações.
Pergunta –
Onde, por exemplo?
Flora
Gomes – A primeira acção em que participei foi na Operação No Pintcha, em 1973, quem
comandava a operação e me levou foi o Samba Lamine Mané, numa acção contra
Bigene, no norte.
Pergunta –
E como é que se pega numa máquina de filmar durante uma operação militar? Pega-se
como numa arma?
Flora
Gomes – O meu objectivo era realmente filmar, registar a
história.
Pergunta –
E na altura tinha consciência disso, de que estava a registar a história?

Pergunta
–
Será por essa razão que o seu filme Mortu
Nega foi bem recebido em Portugal, porque foi entendido?
Flora
Gomes – Eu penso que nós procuramos fazer-nos entender, seja
por quem for. O mais importante do meu filme Mortu Nega não era mostrar a guerra - isso toda a gente sabia que
aconteceu -, mas mostrar homens que faziam a guerra para construir uma nação. Penso
que o povo português percebeu isso muito bem. Para mim, o filme foi um pontapé
de saída muito feliz e pode ter aberto caminho para uma próxima produção com
Portugal, visto que a Guiné-Bissau não tem condições para financiar
longas-metragens.
Pergunta
–
A sua formação está muito ligada à luta de libertação. Vai ficar assim para
sempre?
Flora
Gomes – Eu penso que serei capaz de me libertar da questão da
guerra. Eu já foco muito pouco a guerra propriamente dita mas há coisas que
ficaram na minha consciência. Agora tenho que projectar a minha imagem e a
imagem do meu país para o futuro. Os povos, mesmo os que fizeram a guerra,
querem viver em paz, querem divertir-se, jogar futebol, viver.
Pergunta –
O seu filme já foi visto em África?
Flora
Gomes – O meu filme Mortu
Nega foi visto no Burkina Faso, onde se realiza a maior manifestação do
cinema africano. Também foi visto na Argélia, onde teve um prémio. Na Tunísia
ganhou um prémio de interpretação feminina. Mas eu tive que deixar a promoção
desse filme porque estou a preparar uma nova longa-metragem.
Pergunta –
O seu filme não foi visto em Bissau?
Flora
Gomes – Foi visto mas não há salas em condições. O filme
passou durante um mês no Centro Cultural Francês, uma sala para 200 pessoas.
Mas durante um mês a sala esteve cheia.
Flora
Gomes – O meu próximo filme, que se chama Os Olhos Azuis de Yonta, é uma comédia
dramática, que se passa em Bissau. Os filmes não têm que ser para as pessoas
irem para lá chorar mas devem reflectir as dificuldades da vida. E o meu filme
é uma história de um jovem que vem de Bolama – que é uma cidade e uma ilha dos
Bijagós -, e ele quer escrever uma carta a uma rapariga. E então recorre a um
livro português que existia antigamente e se intitulava: Como escrever uma carta. E o jovem copia desse livro palavras,
algumas delas derivadas do latim, e uma frase que dizia que a miúda, a quem a
carta se dirigia, tinha os olhos azuis. E a miúda que recebeu a carta
convenceu-se que tinha olhos azuis.
Pergunta
–
Que dificuldades tem um cineasta guineense?
Flora
Gomes – O ideal talvez seja falar num cineasta africano. Somos
nós a fazer o guião, a montar a produção, a fazer de cameraman, é uma espécie de homem-orquestra, e depois temos os
problemas do financiamento, da distribuição. Eu acho que a primeira condição
para se ser cineasta africano é ser maluco. Mas temos que afirmar a nossa
cultura. Fomos colonizados por diferentes culturas e nós temos que afirmar o
que é positivo na nossa própria cultura.
Pergunta
–
Neste filme que está a preparar trabalha com técnicos e com actores guineenses?

Pergunta –
Já encontrou a rapariga africana dos olhos azuis?
Flora
Gomes – Já encontrei. Mas ainda não a informei da escolha. Se
ela continuar a trabalhar como tem trabalhado será a minha próxima vedette, a Yonta, dos olhos azuis.
João
Paulo Guerra, TSF, entrevista em 26 de Janeiro de 1991, Bissau.
Filmografia
de Flores Gomes
1977 – A Reconstrução
(média-metragem, documentário) - co-realização com Sérgio Pina
1978 – Anos no Oça Luta
(curta-metragem, documentário) - co-realização com Sérgio Pina
1987 – Mortu Nega (etnoficção)
1992 – Os Olhos Azuis de Yonta
1994 – A máscara
(curta-metragem, documentário)
1996 – Po di Sangui (etnoficção)
2002 – Nha Fala
2007 – As duas faces da Guerra,
co-realização com Diana Andringa (longa-metragem, documentário)
2013 – República di Mininus
1 comentário:
Parabéns!!!
Conheci parte do seu País e admiro muito sua vontade de mostrar ao mundo um continente maravilhoso chamado Biasau.... vai em frente!
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