Lino Bicari 1990 |
Por João Paulo Guerra,
Público,
24 de Setembro de 1990
Lino
Bicari não é um Cristo guerrilheiro. Mas, no início dos anos 70, trocou a Ordem
Religiosa do Instituto para as Missões Estrangeiras pelo PAIGC. Viveu 23 anos
na Guiné-Bissau e é um dos raros estrangeiros que tem no país o estatuto de
Combatente da Liberdade da Pátria.
Lino
Bicari é um homem magro e seco, de 54 anos de idade [em 1990], nascido em
Itália, com a pele curtida por 23 anos de África, que fala com paixão, usando a
voz, as mãos e os olhos, e alimenta todos os sonhos e utopia do Evangelho e das
teorias revolucionárias sobre o poder popular. Jesus Cristo e Amílcar Cabral,
as Escrituras e as Palavras de Ordem, dão-lhe a base teórica e não vê qualquer
contradição nesse facto. Diz: O Evangelho não é um código político.
É
militante do PAIGC mas mantém um espírito crítico que, segundo aforma, aprendeu
a exercer nas «áreas libertadas» pela guerrilha. «Era uma vida muito mais
democrática que a actual. Lá, podia dizer-se: Não». Com a mesma frontalidade,
critica os caminhos da Igreja em África e na Guiné em particular:
«A
Igreja, na Guiné, recuperou privilégios e mantém o discurso da conversão».
No
dedo anelar da mão esquerda usa uma aliança de ouro e prata entrançada. Diz que
é um compromisso com a namorada, uma rapariga guineense, filha de um chefe
tradicional muçulmano, fuzilado pela guerrilha:
«Estou fora do estatuto de padre, embora a
Igreja não tenha tomado qualquer decisão a meu respeito».
Guiné, anos 60
O
padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso
teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e
etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua
portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às
colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como
cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata,
ao Acordo e ao Estatuto missionários.
Na
Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a
cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros
missionários, significava ouvir tiros Ao longe e viver n um centro populacional
sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.
Amílcar Cabral na Guiné |
Mesmo
para os agentes de difusão da fé católica, o regime colonial representava uma
dura experiência.
«A
Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários definiam as missões como
instituições de utilidade imperial, textualmente, ou seja, ao serviço de um
sistema», recorda Lino Bicari.
E o
missionário italiano exerceu as funções de director e professor da Escola para
a Formação de Monitores Escolares até que as autoridades coloniais lhe
comunicaram a intenção de encerrar a missão. Só mais tarde, Lino Bicari veio a
saber que 17 dos seus alunos, uma vez completado o curso, tinham saído da
escola directamente para a luta armada. Os próprios missionários comunicavam
pouco e exemplos com o o do padre António Grilo, preso na Guiné e remetido para
Lisboa sob a acusação de apoiar a «mobilização» do PAIGC, eram abafadas pela
Censura e pela hierarquia da Igreja.
«Estávamos
entre dois poderes, o político e o religioso», diz Bicari.
Foi
em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao
Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do
PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando
tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de
Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e
acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do
Instituto para as Missões Estrangeiras.
Nas matas de Boé
«Se
há uma situação injusta e uma revolta, a ideologia que dirige a revolta é
secundária», afirma Lino Bicari, acrescentando: «Estava do lado da revolta,
aceitando a violência revolucionária contra a violência do sistema colonial e a
violência da repressão. Era uma violência contra duas». E conclui: «A
condenação genérica de toda a violência é a favor do sistema».
Bicari
assumiu esta discussão, que apaixonou os anos 60 e 70, quando o romantismo
guerrilheiro se retratava nos posters
de Ernesto Che Guevara e do padre Camilo Torres. Mas Bicari não pegou em armas.
No
final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de
novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias
de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a
Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na
região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional.
«Não
era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por
forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso
às tropas portuguesas», recorda Bicari.
Ali
experimentava-se o idealismo de todos os matizes revolucionários. O PAIGC
construía a capital para um futuro que foi subitamente antecipado em 25 de
Abril de 1974.
«Estava
tudo preparado para mais uma dezena de anos de guerra», diz Bicari e
acrescenta: «Tudo se discutia organizadamente e todos participavam na
discussão, num quadro de desenvolvimento da vida civil e da autogestão dos
interesses imediatos da população, embora nem sempre soubéssemos traduzir a
teoria de Amílcar Cabral para uma prática».
Foi
na região de Boé que Lino Bicari ouviu, pela rádio, a notícia do 25 de Abril em
Portugal. Luís Cabral comentou na ocasião:
«Desta
vez é a valer».
Expectativas e frustrações
Após
o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné Bissau, em Setembro de
1974, e a com sequente transmissão do poder, Lino Bicari ocupou sucessivas
funções nos domínios da educação e da saúde. Era o tempo de todas as
expectativas.
«Mas,
um ano, uno e meio depois, era já o tempo das contradições entre aquilo que
todos esperavam e o que estava a acontecer.»
Aristides Pereira, Proclamação do Estado da Guiné-Bissau 24 de Setembro de 1973 |
Bicari
atribui o insucesso e as frustrações ao «abandono do poder de base», à «fuga
para Bissau» dos quadros que administravam as áreas controladas pelo PAIGC
durante a guerra e à criação de «uma estrutura de Estado que não existe nas
concepções de Cabral», à absoluta falta de discussão:
«Uma
vez chegados à independência, deveríamos discutir tudo, até o papel do
movimento de libertação, do partido. Mas, como se diz na Guiné, não pudemos
meter a boca lá».
Para
Lino Bicari, todo o poder exercido na Guiné-Bissau, quer por Luís Cabral após a
independência, quer por “Nino” Vieira após o 14 de Novembro de 1980, como
também as perspetival actuais de pluripartidarismo, são apenas «diferentes
estruturações do poder, em termos de prolongamento de um poder central, à
margem de estruturas de controlo popular tal como Amílcar Cabral tinha
ensinado».
Não
é um homem desiludido, mas um homem amargo quer hoje, à margem da Igreja e do
Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e
militante do PAIGC. Radicado em Lisboa há poucas semanas, trabalha num projecto
apoiado pela diocese de Bissau e por organizações não-governamentais alemãs,
holandesas e portuguesas para acolher, alojar e prestar apoio logístico aos
estudantes africanos que frequentam estabelecimentos de ensino em Lisboa – uma
espécie de Casa dos Estudantes do Império pós-colonial.
Quanto
às ilusões das décadas de 60 e 70 e ao exercício do poder de base nas matas de
Boé, ficaram para longe no tempo e para trás na distância.
João Paulo Guerra, Público, 24 de Setembro de 1990
1 comentário:
Olha descobri o Lino que foi meu adjunto no Niassa em Moçambique.
Combatemos em lados diferentes e nunca isso criou problema
Se o virem transmitam um abraço do Coordenador Duarte OIKOS
Enviar um comentário