O Acidente foi Atentado
João Paulo Guerra, Diário Económico, 6
de Dezembro de 2004
O relatório da comissão multidisciplinar
de peritos, apresentado pela VIII Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso de
Camarate, concluindo pelo «acto de sabotagem», contradiz o relatório dos
peritos de aeronáutica que, em Fevereiro de 2003, atribuiu a queda do Cessna
que vitimou Sá Carneiro e Amaro da Costa a «falhas técnicas», acrescidas de
fadiga acumulada dos pilotos. Camarate está transformado num caso sem fim.
Sucedem-se os relatórios
de comissões de inquérito em São Bento, com uma óbvia conotação com as maiorias
parlamentares de cada época. As hipóteses de sabotagem foram aprovadas por
comissões parlamentares em 1991, 1995 e Julho de 1999. Também é evidente que os
relatórios sobre Camarate têm uma relação íntima com a proximidade de eleições.
Mas este é um tema fracturante que tem agrupado toda a direita parlamentar e
dividido os votos dos representantes dos partidos de esquerda nas comissões. Já
aconteceu, inclusive, que um secretário de Estado de um governo do PS caísse em
desgraça por defender posição contrária à do ministro da Justiça do mesmo
governo.
As contradições sobre
Camarate têm tantos anos como a queda do Cessna.
O primeiro defensor da tese do acidente foi o então primeiro-ministro interino, Diogo Freitas do Amaral, em 12 de Dezembro de 1980. Na década de 80, decorreu um inquérito público, ordenado pelo Procurador-geral da República, Arala Chaves, que veio a concluir pela não existência de indícios de atentado, em 1990, já com o Procurador-geral Cunha Rodrigues, pelo que o processo ficou a aguardar a produção de melhor prova. Chegou a haver quatro arguidos constituídos, mas o procedimento criminal prescreveu em relação a três, mantendo-se apenas para Sinan Lee Rodrigues, embora sem indícios suficientes para deduzir uma acusação.
O primeiro defensor da tese do acidente foi o então primeiro-ministro interino, Diogo Freitas do Amaral, em 12 de Dezembro de 1980. Na década de 80, decorreu um inquérito público, ordenado pelo Procurador-geral da República, Arala Chaves, que veio a concluir pela não existência de indícios de atentado, em 1990, já com o Procurador-geral Cunha Rodrigues, pelo que o processo ficou a aguardar a produção de melhor prova. Chegou a haver quatro arguidos constituídos, mas o procedimento criminal prescreveu em relação a três, mantendo-se apenas para Sinan Lee Rodrigues, embora sem indícios suficientes para deduzir uma acusação.
A primeira Comissão
Parlamentar de Inquérito foi constituída em Novembro de 1982. A VIII, antes da
dissolução da AR, divulgou agora o relatório da comissão multidisciplinar de
peritos. Por iniciativa das comissões parlamentares, e sob o impulso das
famílias das vítimas, foram convocados peritos, constituídas equipas periciais,
realizadas análises químicas, físicas, a exumação dos corpos, testes aos
destroços do Cessna. Num único aspecto estiveram todos de acordo: todas as
investigações se realizaram tarde de mais. Algumas investigações e relatórios
levantaram a ponta de mistérios da República portuguesa, como o acesso ao Fundo
de Defesa do Ultramar, um «saco azul» que sobreviveu ao 25 de Abril.
Com tudo o que se sabe e
o que está ainda por saber, Camarate dava um filme. Como já deu. «Camarate», de
Luís Filipe Rocha, acaba bem, com um sorriso de Maria João Luís, no papel de
uma juíza de instrução que vai formando a convicção da tese do atentado.
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1982,
Novembro 30 – É constituída a I Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao
Acidente de Camarate;
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1983,
Março 24 – A I CPI recomenda que as investigações judiciais sejam
aprofundadas;
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1983, Julho
15 – O MP requer a abertura da instrução preparatória do processo na sequência
dos trabalhos da I CPI;
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1984
Novembro 30 – É constituída a II CPI;
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1985,
Outubro 30 – A II CPI propõe a constituição de nova CPI;
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1985,
Dezembro 12 – É constituída a III CPI;
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1987, Janeiro
22 – A III CPI recomenda ao Governo o prosseguimento das investigações;
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1988, Fevereiro
18 – O MP requer a junção aos autos dos relatórios e actas das I, II e III CPI’s;
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1988,
Julho 7 – É constituída a IV CPI;
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1991,
Maio 21 – O relatório da IV CPI admite que a hipótese de acidente não tem
«fundamentação técnica plausível»;
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1993,
Maio 13 – É constituída a V CPI;
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1995, Maio
2 – O MP requer a reabertura da instrução preparatória, na sequência dos
trabalhos da V CPI;
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1995,
Junho 2 – O relatório da V CPI presume que «o despenhamento da aeronave foi
causado por um engenho explosivo»;
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1999, Julho
2 – A VI CPI conclui pela existência de indícios de crime e considera que o
processo deve seguir o seu curso até julgamento;
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1999,
Julho 15 – O inquérito e conclusões da VI CPI são juntos ao processo;
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2002,
Janeiro 8 – A VII CPI encerra os seus trabalhos, ouvindo o advogado dos
familiares das vítimas;
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2002, Julho
16 – É constituída a VIII CPI;
-
2004,
Dezembro 6 – A VIII CPI divulga o
relatório de uma comissão multidisciplinar de peritos, nos termos do qual a
queda do Cessna se deveu a «um acto de sabotagem».
(- Abril, 2011 – A IX CPI terminou devido à dissolução da Assembleia da República, na sequência da demissão do Governo PS e assumiu as conclusões da anterior.
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Junho, 2015 - A X CPI conclui que testemunha central do
caso foi assassinada.)
Advogado
requer reabertura do caso Camarate
O advogado das famílias
das vítimas do caso de Camarate tem novas provas para reabrir o processo, entre
as quais o depoimento de um cúmplice confesso de Lee Rodrigues.
João
Paulo Guerra, Diário Económico, Dezembro de 2001
Ricardo Sá Fernandes,
advogado das famílias das vítimas da caso de Camarate, anunciou ontem que vai requerer
ao Tribunal de Loures a reabertura do processo com base em «novos factos» dos
quais tomou conhecimento.
«Estes novos factos
permitem reabrir o processo e sustentar a acusação que anteriormente tinha
apresentado», bem como a tese de que Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da
Costa «foram assassinados no dia 4 de Dezembro de 1980», disse o advogado
durante a apresentação do seu livro «O Crime de Camarate». Juntamente com o
requerimento, Sá Fernandes vai apresentar ao Tribunal novos testemunhos que recolheu,
alguns dos quais figuram no livro agora publicado. Os autores de tais
depoimentos não são identificados no livro, mas o advogado entregará as suas
identificações ao Tribunal, em envelope lacrado.
Em declarações ao Diário
Económico, Sá Fernandes deu particular relevância ao depoimento gravado de «um
português, a viver actualmente no estrangeiro» que confessou ter dado «apoio
logístico a Lee Rodrigues» na sabotagem do Cessna que caiu em Camarate há 21
anos. «Se o que este homem diz é verdade – e essa investigação é um trabalho
para a acção policial – o atentado terá como autores materiais elementos
contratados que pertenciam a uma organização terrorista internacional», afirmou
o advogado.
Sobre o móbil do crime,
Sá Fernandes disse ontem que apenas tem «hipóteses de trabalho», mas sublinhou
que «Portugal era um paraíso do tráfico de armas nos anos 80» e que o falecido
ministro da Defesa, Amaro da Costa, «estava a investigar a orgânica desse
tráfico» e a «utilização ilícita de um “saco azul”, o Fundo de Defesa do Ultramar».
Ricardo Sá Fernandes admitiu que ambos os casos estivessem ligados. «No tráfico
de armas eram utilizados fundos provenientes do saco azul», acrescentou o
advogado, manifestando a sua convicção de que «o crime de Camarate se dirigiu
contra Adelino Amaro da Costa».
O livro de Ricardo Sá
Fernandes, editado pela Bertrand, foi apresentado ontem em Lisboa.
Curiosamente, há 21 anos, o autor do livro, como o do prefácio, Freitas do
Amaral, como a editora, Zita Seabra, acreditavam na tese do acidente. «Era essa
a minha convicção até ver o processo, em 1995», disse Ricardo Sá Fernandes.
Armas
e «Barões» assinalados
Se Camarate foi um
atentado e se o móbil foi suster a investigação sobre tráfico de armas e desvio
de verbas militares, essa não foi a primeira iniciativa para abafar um
escândalo explosivo.
João
Paulo Guerra, Diário Económico Caderno Fim-de-semana Dezembro de 2001
Dois anos e meio antes de
Camarate, operacionais do gatilho foram aliciados para uma operação cujo
objectivo era assaltar o edifício então ocupado pelo Conselho da Revolução, no
Restelo, para «roubar meio milhão de contos e documentos de um “saco azul” das
Forças Armadas para os gastos nas colónias». O testemunho de um operacional
envolvido na preparação do golpe revela que os organizadores eram militares,
mais interessados nos documentos do Fundo de Defesa do Ultramar que no meio
milhão de contos guardado no cofre do Restelo.
O caso é agora citado pelo
advogado Ricardo Sá Fernandes no livro «O Crime de Camarate» e reporta-se a um
extenso depoimento, até agora inédito, prestado por um dos operacionais ao
autor deste texto. O autor do depoimento e protagonista dos factos relatados,
aqui designado pelo nome de guerra que então usava, «O Barão», contou este e
muitos outros episódios de «guerras sujas» que então ocorriam em Portugal muito
antes, como sublinha Sá Fernandes, de surgir na imprensa qualquer referência ao
«saco azul» herdado das guerras coloniais. O depoimento, no âmbito de uma série
de reportagens sobre o sistema prisional, foi prestado nos primeiros meses de
1983, ficando os aspectos que não tinham directamente a ver com o tema da
investigação jornalística inéditos até hoje. Mas vamos aos factos, apenas
aflorados no livro do advogado das famílias das vítimas do caso de Camarate.
Os
«gajos do cavanço»
Em Julho de 1978, através
de um túnel cavado a partir da cela 20 da ala C da cadeia de Vale de Judeus,
evadiram-se 124 reclusos, entre os quais a «nata» dos condenados da época: o
«Zé da Tarada», o «49», o «Dédé», o «capitão Ferreira», o «Muleta Negra», o
«Cascais», o «Italiano», «O Barão». A fuga foi um prodígio, «tal e qual como
nos filmes» mas, como salientava um dos organizadores, «habilidoso é quem
precisa». Nos dias seguintes, enquanto as polícias montavam gigantescas
operações de «caça ao homem» e recapturavam 77 evadidos em duas semanas, os
restantes 47 fugitivos faziam-se à vida: ourivesarias, estações dos CTT,
agências bancárias e coisas do género. O maior problema era que havia falta de
«ferramentas», especulação no mercado negro dos «ferros» e muita concorrência.
«Parecia impossível – relatava «O Barão» – numa cidade tão grande [Lisboa] já
tinha encontrado mais de uma dúzia de gajos do cavanço».
«Dei voltas e voltas à tola
para me lembrar quem era esse Lucas. Pensava que era alguma armadilha da bófia». Mas acabou por comparecer ao
«apontamento», marcado para as onze da noite, no Solar da Hermínia. «Afinal se
me quisessem estender uma armadilha, seria mais natural escolherem uma boite que uma casa de fado», relatou o
protagonista. «O Lucas abancou ao pé de mim e contou-me uma treta de uma
operação a fazer em Lisboa. Mas quando eu lhe pedi pormenores ele respondeu-me
que, por enquanto, não podia acrescentar mais nada». Do pouco que ouviu, «O
Barão» saiu do Solar da Hermínia convencido que se tratava de «fazer um banco».
Em contactos seguintes, ficou a saber que no caso «estavam metidos mais de uma
dúzia de homens, todos da pesada» e que «o assunto não era banco nenhum. Era fogo».
Os
documentos do «saco azul»
«O negócio metia política
aos montes», relatou «O Barão» posteriormente. «O Lucas disse-me que se tratava
de um assalto às instalações do Conselho da Revolução. Tinham a colaboração,
dentro do edifício, de um graúdo qualquer. Major, ou coisa que o valha. Esse
gajo arranjava livres-trânsitos e metia dois tipos lá dentro durante a tarde.
Eram eles quem tratava da saúde, à noite, a um cofre onde estava quase meio
milhão de contos. Parece que era o antigo “saco azul” das Forças Armadas, para
os gastos nas Colónias, e que estava a cargo do Conselho da Revolução». «O
Lucas» aceitou logo o contrato. Receberia «dez mil sacos», um passaporte e um
bilhete de avião. Os organizadores do golpe eram militares que não se mostravam
interessados na partilha do bolo. «O que interessava mais aos gajos eram os
documentos que estavam no tal cofre».
Num encontro seguinte, o
plano estava sobre a mesa. Para além dos assaltantes do cofre, «o resto do
pessoal tomaria de assalto o posto militar do edifício». O «esquema» era
simples. «A coisa funcionava como uma rendição. Toda a gente ia fardada, com
fardas e camuflados que vinham de fora, e armada com G-3, que já estavam em
Lisboa. Havia também um jeep e um Unimog. Depois de passar a barreira
basculante, ou os tipos que íamos render comiam a história, ou teríamos que os
dominar à força. Era a única altura em que podia haver acção. O trabalho, lá
dentro, já estava feito pelos tais gajos e depois era só carregar». O plano foi
sendo executado como estava previsto. «O Barão» tirou fotografias tipo passe,
para os seus novos documentos, e recebeu um adiantamento, para comprar roupas
de Verão, pois o destino do prometido
bilhete de avião era quente. «Fiquei eufórico. Estava super ganzado, como se tivesse apanhado um chuto à maneira». Dias mais tarde, num
potente Alfa-Romeo «feito» pelo
«Lucas», «O Barão» foi a Santarém «buscar as fardas e camuflados». Cumprida a
missão, no regresso a Lisboa ficou marcado novo «apontamento» com o «Lucas»
para daí a 24 horas.
«Nunca mais o vi – contou
«O Barão» -. Fiquei fora da operação que, aliás, ao que saiba nunca foi feita.
Na manhã do dia em que devia encontrar-se comigo, o Lucas foi atingido, na rua,
à porta de casa, por uma carga explosiva. Deram-lhe cabo do canastro. Ficou
mutilado. E eu… fiquei sem contacto. Como um cão a quem tiram um osso da boca».
Dias depois, «O Barão»
foi recapturado em Lisboa. Quando prestou este depoimento estava de novo na
cadeia, a cumprir o resto da pena, agravada pela fuga, e a aguardar mais um
julgamento. E pouco ou nada sabia sobre personagens e interpretes de toda esta
história. Nunca viu as caras nem soube os nomes dos militares organizadores do
golpe, mais interessados nos documentos que no meio milhão de contos do «saco
azul». Não soube que, por esse ano de 1978, um tal «Lucas», anteriormente
ligado ao PRP, preso em 22 de Março, denunciou e levou à cadeia grande parte da
organização e passou a trabalhar para a Polícia. Obviamente que também nunca
soube que poderá ter havido, entre as datas
da sua recaptura, em 1978, e do seu relato, em 1983, uma outra «operação» para
escamotear os documentos do «saco azul» do Fundo de Defesa do Ultramar, por
exemplo em Camarate.
Dezembro de 2001 e Dezembro de 2004
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