Ilha do Sal |
Em
Lisboa Já se admitia recentemente um êxodo em larga escala, de Angola para Portugal,
face ao número sempre crescente de residentes no território angolano, e também moçambicano,
que têm viajado para a chamada Metrópole. Mas esta parece ser a primeira debandada:
parte de Luanda, destina-se a Cabo Verde e é constituída por cabo-verdianos.
Falando
com estes refugiados – com os poucos que aceitam falar para um microfone – não é
fácil perceber o que se está a passar.
Todos
os refugiados com quem falámos eram até há pouco comerciantes, e respectivas famílias,
em bairros periféricos de Luanda. Todos referem os incidentes raciais violentos
que se verificaram nesses bairros, desde Julho passado e nos primeiros dias de
Agosto. Todos insinuam que depois dos incidentes passaram a ser hostilizados
pela população local. Para prevenir novos incidentes, a população cabo-verdiana
foi evada dos musseques e acantonada na Ilha do Mussulo. O último passo desta
deslocação foi o embarque de avião para Cabo Verde.
-
Como se chama?
-
Costa.
-
Nome completo?
-
Não interessa.
- O
que fazia em Luanda?
-
Comerciante.
- O
que aconteceu?
-
Guerra entre pretos e brancos.
-
Onde?
-
Cazenga.
- E
vocês estavam de que lado dessa guerra?
- De
nenhum. Mas os pretos dizem que estávamos com os brancos.
- Eles
desconfiavam de vocês?
- O
senhor, como se chama?
- (não
responde)
-
Que fazia em Luanda?
-
Venda de géneros.
-
Alimentação?
-
Alimentação e casa.
-
Que lhe aconteceu?
-
Entraram lá e mandaram-nos para a cidade.
-
Expulsaram-no do musseque?
-
Sim.
-
Porquê?
-
Por coisas que diziam.
-
Que coisas?
- (não
responde)
- E
para onde vai?
-
Agora não sei.
Este
é um caso que está certamente no início e que vai dar mais que falar. Estes
cabo-verdianos escorraçados dos musseques de Luanda escondem
alguma coisa, vêm com medo e não sabem para onde vão.
O
seu nome, por favor?
-
José Francisco.
-
De onde vem?
-
De Luanda, bairro da Samba, mas agora estava na ilha.
-
Como foi para a ilha?
-
Autoridades mandaram, disseram que era melhor sair do musseque e fomos para a
ilha.
-
Que é que se passou no musseque?
- Uma
guerra.
- E
como começou essa guerra?
-
Foi quando mataram o taxista. Depois a polícia e a milícia andava a fazer perguntas para
saber quem matou o taxista.
- A
si também lhe perguntaram?
-
Perguntaram a todos os comerciantes, com o era costume.
-
Era costume?
-
Quando havia maca vinham, perguntar o que a gente sabia?
- E
o senhor sabia quem matou o taxista?
-
Não.
- E
disse-lhes que não sabia?
-
Disse.
- Essa
polícia que ia fazer perguntas andava fardada ou à civil?
-
Fardada não.
- E
depois?
-
Depois a população atirava pedras no comércio.
Da Ilha do Sal, Cabo Verde, para a Emissora Nacional, João Paulo Guerra
24
de Agosto de 1974
1 comentário:
Na altura, esta reportagem do João Paulo deixou-me quase indiferente; então outras prioridades se impunham a cada momento. Agora, passadas algumas décadas, o horror do conflito rácico abála-nos mais. Os anos temperam os acontecimentos; dão-lhes outra dimensão, mostrando como os pequenos universos se manifestam. Obrigado João Paulo Guerra por este bocado de História.
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