Bissau é uma cidade
sob controlo, nestes dias de Agosto de 1974. Mas controlo de quem? O
PAIGC declarou unilateralmente o Estado da Guiné-Bissau, em Setembro do ano
passado e, por muito que isso esteja atravessado na garganta de alguns
dignitários portugueses, o coronel Fabião e os outros militares que aqui
representam o Governo e o MFA não querem hostilizar o novo Estado e os seus
dirigentes, tanto mais que decorrem negociações para a assinatura do
cessar-fogo e o reconhecimento da independência da Guiné.
A autoridade colonial
é aqui representada por um «delegado da Junta de Salvação Nacional». O coronel
Carlos Fabião recusou o título de “governador” para não afrontar os guineenses. Mas
para efeitos práticos a autoridade colonial é uma ficção em Bissau. Ao lado do
Palácio do Governador, uma vivenda aloja uma pequena representação do PAIGC,
dirigida por Jovêncio Gomes. Só se viu quem de facto controla Bissau no dia 3
de Agosto de 1974, passagem do 15º aniversário do massacre colonial de
trabalhadores do porto de Pidjiguiti. A cidade de Bissau, à voz do PAIGC,
cumpriu a 100 por cento uma greve geral. Parou tudo. Nesse dia, para enviar uma
crónica para a Emissora Nacional em Lisboa, tive que o fazer directamente dos
emissores regionais, localizados na estrada para Bissalanca, arredores de
Bissau. Na capital nem os estúdios da Emissora do Estado português funcionaram,
porque nenhum trabalhador guineense trabalhou.
A guerra na Guiné parou mas as forças em presença no terreno mantêm as
respectivas posições, em certas situações à vista umas das outras. Na delegação
do PAIGC em Bissau acabei por obter um «visto» para visitar as áreas
controladas pela guerrilha. Parti logo após a greve geral de 3 de Agosto. Foi
de lá que regressei agora, de uma estadia de uma semana, sem contactos com Lisboa.
O carro da Emissora
levou-me de Bissau a Bafatá. Ao fim de longas de conversações com o comandante
da guarnição militar portuguesa tinha uma viatura Unimog com condutor à disposição. Precisei de outro tanto tempo para convencer o oficial a confiar-me
a viatura mas sem condutor, que era uma exigência do PAIGC para a minha
deslocação: “nada de tropa portuguesa”.
Mas à hora aprazada eu
estava ao volante do Unimog pronto a partir não sabia para onde. Foi quando um
grupo de civis, que depois percebi constituírem uma patrulha do PAIGC, tomou
conta da viatura e me informou, delicadamente, que eles próprios me conduziriam
às «áreas libertadas da Guiné». Pelo caminho, no banco da frente, ao lado do
condutor do PAIGC, partilhei a música de um pequeno rádio a pilhas que ele
pendurou no retrovisor. O aparelho de rádio transmitia jazz e o condutor,
quadro clandestino do PAIGC, a dado momento não se conteve sem exclamar, ao
mesmo tempo de aumentava o volume do transístor:
- Vi estes gajos no Festival de Jazz de Cascais, há dois anos.
- Eu também lá estive - respondi. - E também vi e ouvi
estes gajos: são o quarteto de Dave Brubeck, estiveram no Cascais Jazz de 1972.
De Bafatá ao meu destino, que
eu ignorava, foi um longo caminho. Permaneci uma semana nas matas de
Canjambari, no norte da Guiné, onde estava a direcção do PAIGC, liderada por
Luís Cabral, e o Governo provisório da República da Guiné-Bissau, com os
ministros Vítor Saúde Maria e Manuel dos Santos, entre outros. Falei com quem
quis, assisti a cerimónias de Estado, à apresentação de credenciais de
embaixadores de quatro países africanos, no dia 11 de Agosto, a um desfile
militar com carros de combate. Falei com diplomatas africanos, professores e
alunos guineenses, médicos cubanos. Vivi uma semana numa região da Terra onde
não circulava dinheiro nem havia portas com fechaduras. E uma semana depois, com
a mesma roupa no corpo com que tinha chegado, parti de volta para Bafatá com as
fitas magnéticas da Nagra da Emissora Nacional cheias de
preciosos dados de reportagem. Tinha testemunhado verdadeiramente o nascimento
de um país. Uma das preciosidades que trouxe na Nagra foi a
primeira gravação do Hino da Guiné-Bissau, cantado por crianças das escolas da
área de Canjambari para o meu microfone de repórter. [i]
Manuel dos Santos |
Perto de Bafatá ainda
testemunhei a substituição de uma guarnição militar portuguesa por
guerrilheiros guineenses. Cerimónia militar, com o rigor da formatura. Mas à
voz de destroçar, os soldados portugueses e guineenses caíram nos braços uns
dos outros. E choraram, aqueles homens calejados pela guerra, choraram.
Como é que podiam ser
inimigos?
João Paulo Guerra, Emissora Nacional, crónica da
Guiné-Bissau, Agosto de 1974
[i] Anos mais tarde, quando procurei obter
uma cópia da reportagem, fui informado que a bobina tinha sido apagada.
Sem comentários:
Enviar um comentário