Funeral de Álvaro Cunhal em Lisboa, 15 de Junho de 2005 |
Álvaro Cunhal falava pouco de si
próprio. O culto da sua personalidade alimentava-se do mistério.
Por João Paulo Guerra,
Diário Económico, 14 de Junho de 2005
Álvaro Cunhal, que ontem
faleceu com a idade de 91 anos, dirigiu o Partido Comunista Português desde os
anos 40 e foi secretário-geral entre 1961 e 1992. Desde o 25 de Abril de 1974,
até se retirar da vida política activa, para além da direcção partidária,
desempenhou cargos públicos de grande visibilidade, foi deputado, ministro,
membro do Conselho de Estado. E, no entanto, ninguém sabia onde residia, como
ocupava o seu tempo livre, que paixões lhe alimentavam a alma. Uma questão de
«estilo», como afirmou, admitindo que «não tinha nada a perder» se desse a
conhecer os meandros da sua vida. Biografia, dizia que não tinha. Limitara-se a
viver.
A única biografia de
Cunhal – para além do recente trabalho de José Pacheco Pereira – foi escrita em
1954 por Júlio Fogaça, um comunista acusado de «desvio de direita». No plano
político, o «crime» de Fogaça foi ter procurado transpor para o PCP, após a
morte de Estaline, as teses de Nikita Kruchtchov sobre a «coexistência
pacífica». Mas a «política de transição» foi «corrigida» e a biografia, traçada
por Fogaça em tons laudatórios, foi desautorizada pelo próprio Cunhal, após a
fuga do forte de Peniche, por ser considerada uma peça típica do «culto da
personalidade».
O confronto entre Júlio
Fogaça e Álvaro Cunhal desenrolou-se ao longo de vinte anos. Fogaça subiu e
desceu na hierarquia partidária, defendendo posições reformistas, na política
de alianças do partido e para o derrube do regime fascista e, alternadamente,
retratando-se de tais posições. Outros dirigentes, que secundaram as teses de
Júlio Fogaça mas sem o seu brilho intelectual – como Octávio Pato, António Dias
Lourenço, Pedro Soares – não deixaram por isso de singrar na vida do partido.
Com Fogaça, porém, o ajuste de contas foi radical e definitivo. Em Março de
1962, a mesma reunião do Comité Central que confirmou Álvaro Cunhal no cargo de
secretário-geral, expulsou Júlio Fogaça do partido por «razões morais».
A
«refundação» do PCP
Militante da Juventude
Comunista desde 1931, Álvaro Cunhal subiu na hierarquia do partido no início
dos anos 40, quando encabeçou a luta contra a direcção do PCP – Velez Grilo,
Cansado Gonçalves e Vasco de Carvalho – designada por «grupelho provocatório» e
expulsa da Internacional Comunista, em 1939, sob a acusação de estar
«infiltrada de espiões e provocadores». Jovem licenciado em Direito, autor de
artigos e de polémica sobre questões estéticas e artísticas, Cunhal impôs-se
naturalmente no «partido da classe operária» ou, como ele próprio dizia, foi
«adoptado» como «filho do proletariado».
O combate de Cunhal pela
organização e implantação de um partido vanguardista foi interrompido por
sucessivas prisões. Antes dos anos 40, Cunhal tinha sido preso em Julho de
1937, acusado de distribuir propaganda na via pública, e em Maio de 1939,
acusado de divulgar «ideias duvidosas na imprensa». Já depois de dirigir as
greves operárias dos anos 40, na região de Lisboa, e de ter participado na
fundação do Movimento de Unidade Nacional Antifascista / MUNAF, em 1943, e do
Movimento de Unidade Democrática / MUD, em 1945, Cunhal foi de novo preso em
1949. Condenado a cinco anos de prisão e «medidas de segurança», cumpriu ano e
meio de total isolamento na Penitenciária de Lisboa, sendo depois transferido
para Peniche. As «medidas de segurança» tinham excedido largamente os cinco
anos da sentença. Cunhal estava ainda preso em 3 de Janeiro de 1960, quando se
evadiu da cadeia de Peniche, juntamente com outros nove dirigentes do PCP.
Cunhal e Delgado, 1963 |
Após a evasão, Cunhal
permaneceu cerca de um ano em Portugal, refugiando-se depois em Moscovo. O PCP
corrigiu entretanto o «desvio de direita», mas não terminou a luta interna de
Cunhal pela ortodoxia do partido. Confrontado com a polémica sino-soviética e
com as intervenções do Pacto de Varsóvia na Hungria e na Checoslováquia, Cunhal
combateu em duas frentes: os maoistas e os que não aceitavam a sua tese sobre o
«direito de intervenção» em nome da solidariedade entre estados e partidos
comunistas.
A
«revolução democrática
e nacional»
Em 1965, no VI Congresso
do PCP, Álvaro Cunhal definiu a estratégia e táctica do PCP – o «levantamento
popular armado» como resultado da «luta de massas», que fez questão de
distinguir do «aventureirismo» e do «putchismo». Foi com as maiores reservas
que o PCP se viu forçado a aliar-se a iniciativas revolucionárias, como as de
Humberto Delgado, o «general Coca-Cola» na terminologia dos comunistas, à
Frente Patriótica de Libertação Nacional e, no plano da luta legal no interior,
aos socialistas. Em 1973, Cunhal assinou com Mário Soares, em Paris, um acordo
de cooperação entre o PCP e o recém-criado PS. Mas Cunhal mantinha viva, desde
os anos 40, a tese sobre os perigos de diluição do PCP em organizações e
iniciativas unitárias, contrapondo-lhe o papel vanguardista do partido.
O 25 de Abril de 1974
apanhou Cunhal em Paris. Cinco dias depois estava em Lisboa. * À chegada ao
aeroporto, e à semelhança de Lenine quando regressou à Rússia para encabeçar a
revolução bolchevique, Cunhal discursou do alto de um carro de combate,
protegido pelo major Jaime Neves e seus «Comandos». Cunhal fez uma
absoluta profissão de fé no carácter revolucionário dos militares revoltosos,
proclamando como motor da revolução a «aliança entre o povo e o MFA».
Apoiando-se no único
partido verdadeiramente organizado e militante, em aliança com sectores do
Movimento das Forças Armadas, Cunhal conseguiu levar por diante praticamente
todos os pontos do Programa do PCP, de 1965, para a «revolução democrática e
nacional»: «destruir o Estado fascista», «liquidar o poder dos monopólios»,
«realizar a Reforma Agrária», «reconhecer e assegurar aos povos das colónias
portuguesas o direito à imediata independência». Mas quando, num debate na TV
com o seu inimigo íntimo Mário Soares, o líder socialista o acusou de manipular
a revolução, Cunhal respondeu-lhe que não. «Olhe que não, senhor doutor, olhe
que não».
A força militante do PCP
na sociedade e nas decisões de Estado depressa entrou em choque com a expressão
eleitoral do partido. Em 1975, para a Assembleia Constituinte, o PCP obteve
apenas 12,5 por cento dos votos. De então para cá, em eleições legislativas, o
PCP oscilou entre um máximo de 19 e um mínimo de 8 por cento, com uma acentuada
tendência descendente nos últimos anos. Nunca se dando bem com as eleições,
Cunhal sofreu em 1986 uma verdadeira humilhação. Depois de aprovar em Congresso
que o PCP jamais votaria em Mário Soares, Cunhal tem que convocar um congresso
extraordinário para dar o dito por não dito e votar Soares, contra Freitas do
Amaral, na segunda volta das presidenciais.
Os derradeiros anos da
liderança de Álvaro Cunhal no PCP coincidiram com a derrocada do «socialismo
real», o «Sol da Terra». No ano da queda do Muro de Berlim, após ser submetido
a uma intervenção cirúrgica em Moscovo, Cunhal foi condecorado com a Medalha
Lenine. Entretanto, no PCP, manifestavam-se sucessivas dissidências que o
secretário-geral menosprezou, considerando-as «folhas secas» da árvore do
partido. E ao ser substituído, em 1992, no cargo de secretário-geral do PCP,
Cunhal deixou o seu testamento político no partido que refundou, ergueu e
dirigiu à sua imagem: «Desiludam-se os que pensam que vamos deixar de ser um
partido marxista-leninista, o partido da classe operária».
O
homem e o mito
Nenhum adversário
político de Álvaro Cunhal deixa de reconhecer a sua extrema coerência, a sua
elevação intelectual e a capacidade de resistência que manifestou nas mais
duras condições da vida clandestina. Da sua vida conhecem-se episódios soltos
que o rodeiam de uma aura de heroísmo e de mistério, que ele próprio ajudou a
manter.
Em 1939, encontrando-se
preso, defendeu a tese de licenciatura em Direito sob escolta policial. A tese,
sobre «A realidade social do aborto», mereceu a absoluta discordância
ideológica e política por parte do júri – constituído por Marcelo Caetano,
Cavaleiro Ferreira e Paulo Cunha – que, no entanto, o aprovou com «bom com
distinção», correspondente a 19 valores, em função da excelência da
investigação e da argumentação de Cunhal.
Em 1940, trabalhando como
regente de estudos no Colégio Moderno e colaborando em revistas e jornais como
O Diabo, Sol Nascente e Vértice, manteve uma polémica de grande elevação com
José Régio sobre a função social da arte.
Em 1949, preso pela terceira vez pela
polícia política, assegurou a sua própria defesa em tribunal, baseando-a na
legitimidade da luta contra um regime fascista. Durante os 11 anos de prisão
que iria cumprir, permaneceu um ano e meio em total incomunicabilidade e oito
em isolamento, refugiando-se na criação artística como forma de manter a
sanidade mental.
Em
1961, participou na fuga de 11 dirigentes comunistas do Forte de Peniche. O
livro «60 anos de luta», editado pelo PCP, salienta que a operação resultou de
«uma perfeita coordenação da acção do Partido no interior e no exterior do
Forte, uma disciplina rigorosa, um secretismo total, a audácia a coragem dos
participantes na fuga», dos quais apagou o nome de Francisco Martins Rodrigues.
Álvaro Cunhal com Soeiro Pereira Gomes |
«Até Amanhã, Camaradas»
Álvaro Cunhal, como autor
de produção teórica ou literária, assinou cerca de meia centena de títulos. Da
tese sobre «As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média» à tese
sobre o PCP na idade das «paredes de vidro», da tese sobre «A Questão Agrária
em Portugal» à tese sobre «O Radicalismo Pequeno-burguês de Fachada
Socialista», da tese sobre «A Superioridade Moral dos Comunistas» à tese sobre
«A Arte, o Artista e a Sociedade», para além de incursões na ficção e de uma
inesperada tradução de «King Lear», de William Shakespeare. O que avulta na sua
obra são vinte e dois volumes de discursos e mais estudos, teses e relatórios.
Ao relatório de 1964 Cunhal chamou-lhe «Rumo à Vitória», ao de 1976 designou-o
por «O Passado e o Futuro».
O primeiro propunha-se
guiar o povo português à vitória sobre o fascismo, através da «revolução
democrática e nacional». O segundo propunha-se consolidar a vitória, completa e
definitiva, da «revolução portuguesa». O relatório de 1976 seguiu-se ao Verão
Quente de 75 e ao arrepio de frio de Novembro. Em 1999, em «A verdade e a
mentira sobre a Revolução de Abril», Álvaro Cunhal mantinha ainda que «o
comunismo continua a ser a única alternativa histórica ao capitalismo e a mais
válida esperança da humanidade». Cunhal não meteu os objectivos na gaveta,
defendendo que a democracia construía-se «no caminho do socialismo». E, para
que não restassem dúvidas, tinha proclamado, no final dos anos 70, «o
socialismo tal como existe».
Mas quando o socialismo
começou a dar sinais de que não existia – ou que, existindo, não era
propriamente o «sol da terra» – Cunhal ainda escreveu, à entrada da segunda
metade dos anos 80, que esta era uma época gloriosa da história da humanidade,
marcada por vitórias «irreversíveis». O secretário-geral do PCP forrava de
vidro as paredes do Centro de Trabalho mas, de dentro para fora, não via que o
mundo já era outro.
Saíram da gaveta os
«Desenhos da Prisão», adeus nostalgia da clandestinidade, «Até amanhã, camaradas».
Álvaro Cunhal levou tempo a assumir, em 14 de Dezembro de 1994, a autoria da
ficção da resistência. A versão oficial fazia constar que os manuscritos foram
encontrados numa casa clandestina, assinados «num rabisco apressado» com o nome
de Manuel Tiago.
O texto do romance «Até
amanhã, camaradas», adaptado ao cinema, termina com a personagem José Sagarra –
provavelmente o próprio Cunhal – a apanhar o comboio e a acenar que sim com a
cabeça «em sinal de aprovação a uma ideia que lhe ocorrera». Era a própria
realidade. Ficção seria o autor a dizer que sim a uma ideia de outro.
João Paulo Guerra, Diário Económico, 14 de Junho de 2005
João Paulo Guerra, Diário Económico, 14 de Junho de 2005
Passado
algum tempo chamaram por mim: iam sair. António Dias Lourenço teve a
amabilidade de agradecer e de me comunicar a grande decisão daquela reunião em
minha casa e do contacto internacional que tinham feito através do meu telefone:
-
O Camarada chega amanhã.
E
chegou, Álvaro Cunhal chegou a Lisboa a 30 de Abril de 1974.
J.P.G. / 11 de Junho de 2015
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