O panfleto, com assinaturas de sete dos assaltantes e assaltados |
Por João Paulo Guerra, O
Jornal, 15 de Novembro de 1990
No
rasto do voo rasante do super-constellation
1049 CSTLF da TAP sobre a Avenida da Liberdade, Alcântara, Terreiro do Paço, em
Lisboa, e ainda sobre o Barreiro, Beja e Faro, no dia 10 de Novembro de 1961, ficaram 100 mil
panfletos subscritos por uma Frente
Antitotalitária dos Portugueses Livres no Estrangeiro e assinados por
Henrique Galvão, denunciando o logro das eleições marcadas para dois dias
depois. No Terreiro do Paço, os panfletos até entraram pelas janelas do
Ministério do Interior.
As
tarjetas rectangulares sobre o comprido (10x24 cm), impressas em Marrocos, em
papel de baixa gramagem, eram dirigidas, com uma gralha tipográfica, aos «Homes e mulheres de Portugal,
estudantes, juventude sem rumo, militares saídos do povo e que ao povo
pertencem, trabalhadores sem liberdade nem pão» e propunham aos eleitores que
rasgassem as listas eleitorais e votassem de outro modo: «Protestando por todas
as formas abertas ou clandestinas ao vosso alcance, impedindo o exercício do
acto eleitoral de qualquer maneira, mostrando pela vossa repulsa que votais assim
pela abolição do Estado Novo e destituição do seu tirano».
Foi
quando passou o Tejo que o comandante José Sequeira Marcelino, um piloto com
cerca de 14 mil horas de voo, conseguiu iludir a vigilância dos assaltantes e
avisar a torre sobre o que se passava. A torre de controlo nem acreditava no
que ouvia e pediu ao comandante que repetisse a mensagem. O comandante não
podia fazê-lo mas ouviu, nos auscultadores, a voz de um píloto da Força Aérea
que tinha intercetado e entendido a comunicação.
Palma Inácio |
Com
a Força Aérea metida no assunto, o comandante do super-constellation voou baixo sobre a planície alentejana para
escapar ao radar de Montejunto. E assim escaparam também aos caças que
levantaram em busca do avião desviado, alertados pelo oficial que intercetara a
comunicação do comandante Marcelino com a torre do aeroporto. O comandante
manteve o pesado super-constellation
a baixa altitude pois não queria sujeitar os seus passageiros a eventuais “heroicidades”
por parte de algum piloto de caça. «A minha obrigação, como comandante de um
voo comercial, era conduzir o aparelho e os passageiros, em condições de
segurança, ao próximo aeroporto», diz hoje José Sequeira Marcelino.
Voaram
mais panfletos entre Beja e Faro e, três horas depois de ter largado serenamente
de Casablanca para um voo rotineiro até Lisboa, o quadrimotor da TAP aterrou em
Tânger. A polícia marroquina tomou conta da ocorrência e os assaltantes, embora
retidos numa sala do aeroporto, festejaram o êxito da Operação Vago com champanhe.
A
Operação de 10 de Novembro de 1961, o primeiro assalto e desvio de um avião por
motivos políticos, segundo o líder da ação foi executada por um comando de 5 pessoas – Palma Inácio,
Camilo Mortágua, Amândio Silva, Maria Helena Vidal e Raul Martins - sob as
ordens do próprio Hermínio Palma Inácio. A operação foi planeada pelo capitão
Henrique Galvão no âmbito de um projecto mais vasto. «Nós estávamos em
Casablanca – recorda Palma Inácio – para esta operação do avião, mas também
para tentar, com um grupo bastante numeroso, organizar uma outra operação aqui
em Portugal, que veio a consumar-se com o assalto ao quartel de Beja».
Amândio Silva |
Amândio
Silva, um dos membros do «comando» de Palma Inácio para a Operação Vago, tinha participado apenas com 19 anos na Revolta da
Sé e vivia desder então exilado no Brasil. Em Casablanca encontrou-se com
outros revolucionários que vieram do Brasil com Henrique Galvão, entre os quais
Manuel Serra, Silva Graça, Raul Marques, António Brotas, Palma Inácio e Camilo
Mortágua. «Não éramos uma organização – diz Amândio Silva – mas um grupo de
portugueses contra Salazar e a sua ditadura, com um trajecto político comum que
começava na campanha do general Delgado, em 1958, e passava pela Revolta da Sé,
em 1959». E recorda que nem todas as ações mereciam o mesmo consenso e
aprovação por parte de Delgado e Galvão. O «sequestro» do paquete Santa Maria
foi organizado por ambos, o desvio do avião foi planeado por Galvão sem a participação
do general, o assalto ao quartel de Beja foi dirigido no terreno por Delgado,
mas desaprovado por Galvão.
Maria del Pilar Blanco |
Em
Casablanca não pululavam apenas os revolucionários anti-salazaristas. «Também
lá andavam agentes da PIDE e vigiar-nos dia e noite», recorda Palma Inácio.
«Decidimos fazer a operação do avião, a Operação
Vago, como lhe chamou o Galvão, para coincidir com as eleições para a
Assembleia Nacional. Mas tivemos que fazer uma grande operação para despistar
os Pides em Casablanca e em Tânger. Íamos todos os dias para o porto, para os
convencer que estávamos a preparar alguma coisa com um barco».
Mas
a PIDE sabia, desde o assalto ao paquete Santa Maria, no início desse ano, que
se preparava qualquer outra operação. «Nós estávamos à espera de qualquer
coisa. Uma semana antes tínhamos sido avisados na TAP que estaria para
acontecer alguma, provavelmente com um avião», recorda o comandante Marcelino.
Um
«assalto de cavalheiros»
Com
bilhetes para Lisboa comprados em Casablanca, os assaltantes embarcaram no avião
da carreira da TAP, levando na bagagem de mão armas e panfletos. A época da
pirataria aérea ainda não começara e as cautelas nos aeroportos eram poucas.
Maria del Pilar Blanco, assistente de bordo, verificou os passaportes à entrada
dos passageiros para o avião e não deu por qualquer falsificação. Aliás, os
passaportes eram autênticos, mas pertencentes a outros titulares. O de Palma
Inácio, por exemplo, era de António Cardona, um português ainda hoje radicado
no Brasil. Os assaltantes tinham-se limitado a substituir as fotografias.
A
meio do caminho Palma Inácio e Camilo Mortágua entraram na cabina de armas na
mão. «Mas que brincadeira é esta?», perguntou o comandante Marcelino. «Eles
responderam-me que não era brincadeira nenhuma», que eram revolucionários,
patriotas. «Não me quis armar em herói de maneira nenhuma, o que tinha era que
evitar o pânico. Então, aceitei a situação e conversei com eles», recorda o
comandante.
«Claro
que o comandante tentou dizer-nos que a operação era impossível, que o avião não
tinha gasolina para ir a Lisboa e voltar a Tânger, que não podia abrir as
janelas para lançar os panfletos», recorda por sua vez Palma Inácio,
acrescentando: «Eu também era piloto e mecânico e, como tal, conhecia o avião.
E disse ao comandante Marcelino e ao copiloto Teles Grilo que eles só tinham
que escolher quem iria pilotar o avião até Lisboa: se a tripulação, se eu
próprio. E como o comandante era uma pessoa responsável, para não pôr em perigo
os passageiros ocupou-se do avião».
Pilar
Blanco recorda-se, por sua vez, que deu pela falta de dois passageiros quando
vendia artigos e recordações de bordo na parte da frente da cabina. Um dos
elementos do grupo disse-lhe, calmamente, que os seus companheiros estavam na
cabina de pilotagem porque o avião tinha sido ocupado. A assistente riu-se da
brincadeira.
O super-constellation 1049 CSTLF |
Hoje,
29 anos após o assalto ao avião, Pilar Blanco considera que o comandante Marcelino
nunca ultrapassou os limites de segurança e executou todas as operações com a
sua perícia ímpar. «O comandante era um artista, com umas mãos excecionais»,
recorda a antiga assistente de bordo.
A
viagem correu sem incidentes. O comandante avisou os passageiros que o avião
iria sobrevoar Lisboa e depois voltaria a Tânger e mandou distribuir bebidas.
Palma Inácio e o seu comando
ofereceram rosas e panfletos às passageiras. A excitação era enorme. Houve
mesmo passageiros emocionados que se ofereceram para colaborar no lançamento de
panfletos sobre Lisboa, através das janelas das traseiras do avião, abertas
pelo mecânica de bordo, António Coragem, depois do comandante ter
despressurizado a cabina.
«Foi
um assalto de cavalheiros», comenta a antiga assistente de bordo Pilar Blanco.
A
operação também correu bem. «Como um relógio», comentou Henrique Galvão que
aguardava os assaltantes em Tânger, tanto quanto Amândio Silva se recorda.
Depois é que começaram os problemas. Os assaltantes ficaram retidos em Marrocos
cerca de uma semana, antes de serem autorizados a regressar ao Brasil, com
trânsito por Dakar. Mas ainda enfrentaram a ameaça de serem expulsos de
Marrocos para Espanha.
José e Luísa (1990) |
O
avião regressou nesse mesmo dia a Lisboa. À espera da tripulação estava a
administração da TAP e a PIDE. «Foi uma receção feérica» observa Pilar Blanco.
O comandante Marcelino andou um mês inteiro a ser ouvido, por diversas
entidades, designadamente pela PIDE. «Estive sem voar mais de um mês. A PIDE
suspeitava de mim», diz o comandante. A assistente Pilar Blanco foi ouvida na sede
da rua António Maria Cardoso: «Faziam-me sempre as mesmas perguntas e eu dava
sempre as mesmas respostas, o que os exasperava. Percebi que eles suspeitavam
que nós tínhamos colaborado com os assaltantes».
A
principal suspeita pidesca assentava no facto de o comandante Marcelino ter
trocado o serviço para tripular um voo que veio a ser desviado. «Eu respondia
que fora por uma questão de ordem pessoal que, para mim, era um ponto de honra:
não lhes explicava», responde agora o comandante.
A
questão que o comandante José Sequeira Marcelino só agora decidiu revelar é,
afinal, uma bela e longa história de amor. «Há muito tempo que não voávamos
juntos», diz José Marcelino, referindo-se a uma assistente de bordo com quem mantinha
uma relação de afeto. «Para não a comprometer, nunca disse nada», remata o
comandante.
A
história tem um happy end. O
comandante José Marcelino casou-se com a assistente de bordo Maria Luísa
Infante e ainda hoje, quase trinta anos após a aventura do avião, estão casados
e felizes.
Por
João Paulo Guerra, semanário O Jornal, 15 de Novembro de 1990
Revista Visão 26 de Fevereiro de 1998 |
Assaltados
e assaltantes, a tripulação do avião e o “comando” de Palma Inácio,
encontraram-se em Fevereiro de 1998. Foi por iniciativa da revista Visão, e com
a participação de uma equipa do programa da SIC (em elaboração) “Século XX
português”, que quase todos se juntaram para uma reconstituição dos
acontecimentos de 10 de Novembro de 1961. Foi nas instalações da antiga FIL, à
Junqueira, e seguiu-se um jantar. A reportagem da Visão (publicada em 26 de
Fevereiro de 1998) foi assinada por J. Plácido Júnior.
A recolha para o
programa da SIC foi conduzida por João Paulo Guerra.
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