Croquis do assalto ao emissor do Rádio Clube Português |
O Diário, 11 de Março de 1989
Em
11 de Março de 1975 andava meio mundo de cabeça no ar. O caso era que, nesse
dia, o curso conturbado da revolução dera de caras com uma contra-revolução
organizada e em força que caiu dos céus às portas de Lisboa: metralha e
para-quedistas desceram sobre um ponto preciso da cidade como anjos de vingança
contra uma revolução que se fizera sem sangue, com cravos nos canos das
espingardas. Esse foi o dia do reverso dos cravos.
Meses
depois veio a público o relatório oficial, com uma grande quantidade de anexos.
É com essas fontes de recontamos uma história.
Em
Janeiro de 1975, o general Spínola mudou de semblante: em geral irascível e
manifestando um irredutível azedume quanto às perspectivas políticas, quer
pessoais quer do País, Spínola passou então a manifestar certa «confiança no
futuro». Quem o disse, ratificou e assinou, no inquérito sobre os acontecimentos
do 11 de Março, foi o então ajudante de campo do general. Em entrevista ao Expresso,
publicada a 4 de Janeiro, Spínola disse por essa altura que pensava «voltar á
vida política».
Instalado
numa quinta em Massamá, desde que em Setembro renunciara à Presidência da
República, Spínola recebia então frequentes visitas – civis e militares – designadamente
dos coronéis Dias de Lima e Xavier de Brito, do major Manuel Monge e do capitão
António Ramos, alguns dos oficiais que constituíam então, no complexo quadro
político-militar da época, o núcleo duro dos chamados spinolistas, ligados ao
general por afinidades e fidelidades de ordem muito diversa. Entre os civis, e
segundo o depoimento do então ajudante de campo do general, Spínola recebia com
frequência «pessoas ligadas ao Partido Socialista».
O
ex-Presidente da república e da Junta militar tinha desde Outubro um ajudante
de campo designado pelo Estado-Maior do Exército, o capitão de Artilharia
Carlos Marques Abreu. O capitão deslocava-se semanalmente a Massamá, mas é de
crer, pela leitura dos diversos depoimentos que constam do processo, que a
maior parte das actividades e contactos do general passavam à margem da sua
ligação formal e oficial ao Exército, constituindo uma cadeia de comando
paralela. Nas suas declarações para o processo, o capitão para-quedista António
Ramos revelou que em Janeiro de 1975 Spínola o mandou telefonar para casa do capitão-tenente
Guilherme de Alpoim Calvão – o célebre comandante da invasão da República da Guiné
– com um recado enigmático: «O primo quer falar com ele».
Não
consta do conjunto dos depoimentos a que tivemos acesso se o comandante Alpoim
Calvão recebeu o recado e se entrou em contacto com o «primo». Mas, pouco tempo
depois, entraram em cena os homens do comandante.
«Gente conhecida e organizada»
Em
Agosto de 1974, o primeiro-tenente Carlos Rolo pôs em contacto o general da Força
Aérea Rui Tavares Monteiro com o tenente fuzileiro Nuno Barbieri, filho do
antigo director-adjunto da PIDE, Agostinho Barbieri Cardoso. Em declarações para
os autos, Nuno Barbieri disse que Carlos Rolo «teria contactos em Espanha», «talvez
com portugueses refugiados», e que passou a ter com o general Tavares Monteiro
«conversas informais acerca da evolução da situação».
Em
Março de 1975, e de acordo com o seu depoimento, os contactos do
primeiro-tenente Barbieri alargaram-se ao coronel Durval de Almeida e a «um
grupo de ex-militares», entre os quais Miguel e José Carlos Champalimaud, com
os quais se reuniu por diversas vezes para discutir a situação do País e a
eventualidade de organizar uma «resposta» a um eventual «esquema de violência
terrorista».
Numa
reunião, a 7 de Março, Barbieri e os Champalimauds organizaram-se em grupos de
tipo «comando», admitindo a «utilização futura de acções armadas». Nas reuniões
dos dias seguintes, e sempre de acordo com o depoimento do próprio Barbieri,
participaram o general Tavares Monteiro, o coronel Durval de Almeida, o
tenente-coronel Xavier de Brito – visita habitual da quinta de Massamá – e o
major Silva Marques. Nuno Barbieri e Durval de Almeida, nos seus contactos, os
pseudónimos de «Teixeira» e «Gaspar», respectivamente. Quanto aos civis – e segundo
Nuno Barbieri – tratava-se de «gente conhecida e organizada e que estava pronta
a colaborar no que fosse preciso», designadamente na eventualidade de uma
resposta a um eventual «esquema de violência terrorista».
E
o esquema surgiu, como que por milagre: no dia 9 de Março, o tenente Carlos
Rolo voltou de uma visita a Espanha com o alarmante recado de que estaria em
preparação uma «Matança da Páscoa», querendo com isso significar a «eliminação
física de centenas de civis e militares» hostis ao Movimento das Forças
Armadas. A notícia caiu como uma bomba na reunião e o general Tavares Monteiro
correu a prevenir Spínola. Mas o general já sabia.
«Tupamaros em Sacavém»
Nos
primeiros dias de Março – segundo depoimento que consta dos autos – o general Spínola
entrou em estado de completa exaltação. Ao seu ajudante de campo confidenciou
que os serviços secretos alemães e franceses lhe tinham comunicado que o PS e o
PCP se preparavam para lançar, no caso da realização de eleições presidenciais,
a candidatura do general Costa Gomes. Mas, pior do que isso, e segundo
informações que chegavam ao general «de quase todas as embaixadas», o PCP preparava
um atentado – ou pelo menos o rapto - contra a sua pessoa. Na sequência destas «informações»,
o major Manuel Monge tinha mesmo organizado uma guarda pessoal para o general,
composta por oficiais de confiança, que passaram a reforçar a segurança de
Massamá que estava a cargo da GNR.
As
«informações das embaixadas» eram, aliás, confirmadas por outra fonte, o major
Morais Jorge, que passara a frequentar Massamá e que era considerado um homem
«marcado pelo ódio ao MFA», em geral, e em particular ao Regimento de Artilharia
Ligeira 1, vulgo RAL 1, mais tarde RALIS. Uma das testemunhas contou que, a 10
de Março, o major Morais Jorge alertou o Estado-Maior do Exército: «Estão
Tupamaros no RAL 1» para uma «Matança da Páscoa». Nessa mesma noite, pelas 23
horas, o major começou a espalhar a notícia: «A Matança é hoje».
Os
Tupamaros – designação de guerrilheiros que lutavam contra a ditadura no
Uruguai – aparecem também no depoimento do tenente Nuno Barbieri e na informação
trazida de Espanha pelo tenente Carlos Rolo: «A Matança da Páscoa seria
executada pelos Tupamaros ou pelas Brigadas Revolucionárias». Na noite de 9 de
Março o tenente Carlos Rolo avisou o general Tavares Monteiro sobre a
«Matança». O coronel Durval de Almeida, porém, assegurou no seu depoimento que
o general Tavares Monteiro lhe toinha falado na véspera sobre o assunto citando
uma fonte da «Seguridad espanhola». O coronel confirma que Spínola sabia já da
história da «Matança» por «outras fontes». Certo, também, é que a notícia se
tinha espalhado a todas as armas e a diversas unidades: o comandante Santos
Patrício, por exemplo, foi avisado na noite de 9 para 10 pelo tenente Silva
Horta sobre um «possível ataque da LUAR às instalações do Alfeite pela
manhãzinha».
«Prostituir a Pátria»
As referências à hipotética «Matança da
Páscoa» surgem nesta estranha cronologia depois de todas as informações sobre a
preparação de medidas de prevenção contra a alegada «Matança»: o tenente Carlos
Rolo ou o major Morais Jorge terão apenas acendido um rastilho; mas oi engenho já
estava armado. Aliás, ao longo dos diversos depoimentos do inquérito o pretexto
da «Matança» como objectivo do 11 de Março aparece muito diluído e discreto.
O
alferes piloto Ribeiro Mendonça contou para os autos que na manhã de 11 de
Março, pelas 9 horas e 30, o major Mira Godinho reuniu os pilotos da Base Aérea
3 para um briefing. «Chegou o dia de por cobro à anarquia que gera (sic) pelo
País e vamos portanto desencadear uma operação para repor a verdade do 25 de
Abril. Temos o nosso general Spínola em segurança cá na Base e ele, como um dos
chefes desta contra-revolução (sic) vai-nos dirigir umas palavras». E Spínola mãos
pilotos: «O futuro do povo português está em grande parte nas nossas mãos». O
sargento piloto Carlos Gomes da Silva contou uma versão aproximada da alocução
de Spínola: «Os pilotos são a última esperança da salvação do País, pois alguns
portugueses estão a tentar prostituir a Pátria», tratando-se, pois, de «retirar
do Governo alguns indivíduos que lá estão».
O
comandante da BA 3 coronel Moura dos santos, contou por seu lado que foi «sondado»
e não propriamente «aliciado», a 7 de Março, pelo coronel Orlando Amaral
«acerca da situação que se vivia» e que «evidentemente não lhe agradava». Na
madrugada do golpe, o coronel Amaral não lhe fez a mínima referência a qualquer
hipotética «Matança» mas sem a «operar determinadas modificações no Conselho dos
20 e no Governo Provisório». O capitão Salgueiro Maia, por seu lado, declarou
para os autos que, tanto quanto lhe parecia, o golpe se destinava a demitir o
primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, o comandante-adjunto do COPCON, Otelo
Saraiva de Carvalho, e a Coordenadora do MFA. E um oficial enviado a Tancos na
manhã de 11 de Março pelo chefe do Estado-Maior do Exército em missão de observação,
declarou que Spínola lhe repetiu, mais palavra, menos palavra, o seu discurso
de renúncia à Presidência, acrescentando que tinha sido «convidado» a tomar
aquela posição «devido á situação a que o País tinha chegado».
«Chegámos
ao ponto mais baixo da nossa história, onde já nem a religião é respeitada», teria
dito Spínola. É pelo menos o que uma testemunha diz que o general teria dito.
«Está tudo doido»
O
enviado do Estado-Maior do exército contou para os autos que o general Rui
Tavares Monteiro se lhe apresentou como comandante da operação do 11 de Março,
o que aliás é confirmado pelo depoimento do então brigadeiro Lemos ferreira,
enviada a Tancos pelo chefe do Estado-Maior da Força Aérea para observar os
acontecimentos. Também o capitão António Ramos afirmou que «quem ali pontificava
era o general Monteiro» e quanto a Spínola «estava de certo modo entusiasmado».
Para além do general Tavares Monteiro, o capitão Ramos considerou como
responsáveis maiores pelos acontecimentos o comandante Alpoim Calvão e o
coronel orlando Amaral. Na versão do ajudante de campo de Spínola, o comando de
toda a operação foi repartido pelo general, comandantes Alpoim Calvão e Rebordão
de Brito, tenente-coronel Xavier de Brito e majores Morais Jorge e Carlos
Simas. O capitão-piloto Mário Jordão - que esteve a pontos de bombardear a
Emissora Nacional, na Rua do Quelhas, junto ao populoso bairro da Madragoa, ao princípio
da tarde de 11 de Março -, ditou para os autos que quem estava a fazer o golpe
eram os generais Spínola e Tavares Monteiro, mas foi de Alpoim Calvão que
partir a ordem para ir «destruir a Emissora nacional» e dar uns tiros para as
janelas para assustar as pessoas».
Segundo
depoimento do tenente Barbieri, na madrugada de 11 de Março é o general Spínola
que decide que a acção se desenvolva» e distribui funções entre os presentes: Alpoim
Calvão para ocupar o Palácio de Belém, Xavier de Brito para a GNR, tenentes
Rola e Benjamim de Abreu para o Forte de Caxias – onde se encontravam os presos
do 28 de Setembro e os pides - e o tenente Barbieri para os emissores de Porto
Alto do Rádio Clube Português. De todas as ordens de operações esta foi a única
que veio a ser executada. O coronel Durval de Almeida acrescentou que o plano
de operações de Alpoim Calvão compreendia a ocupação do COPCON, da Ponte 25 de
Abril e da Emissora Nacional pela tropa de Comandos.
O
andamento do golpe, no Posto de Comando da BA 3 vogava de acordo com as
informações contraditórias sobre os aderentes. Quando, a maior da noite, Spínola
começou a contar as espingardas, Alpoim Calvão, citado pelo tenente Barbieri, advertiu:
«A Marinha não se mete nisto». Mas Spínola, conforme depoimento do coronel
Moura dos Santos, fazia outras contas: «Claro que o Exército está comigo. Eu
sou o Exército. A GNR está comigo. A Escola Prática de Cavalaria está comigo. Os
“Comandos” estão a caminho da Emissora Nacional. O Alfeite está em movimento».
«O
meu general tem a certeza do que está a dizer?», perguntou o enviado do chefe
do Estado-Maior do Exército.
«Quem
é você?», retorquiu o general.
Na
voragem das ordens e contra-ordens, Spínola ia distribuindo sucessivas funções e
missões.
«Está
tudo doido», comentou um dos presentes, citado por outro que o ditou para os autos.
«Amotinados
incontroláveis»
Na
noite de 10 de Março, pelas 23 e 30, estava o capitão António Ramos na messe de
Tancos – segundo depoimento do próprio – quando chegou o major Mira Godinho. «O
teu velho está ali na Base», disse o major da Força Aérea para o capitão para-quedista.
Ramos terá ficado «admirado», pelo menos foi isso que ditou para os autos.
Tinha estado com Spínola no dia 8 em Massamá onde tinham travado a conversa «habitual»
sobre a situação política e militar.
Em
casa do major Martins Rodrigues, no perímetro de Tancos, o capitão Ramos foi
encontrar o «velho», à cabeça de uma vasta lista: general Tavares Monteiro, brigadeiro
Francisco Morais, os coronéis Durval de Almeida, Xavier de Brito e Quintanilha
de Araújo, comandantes Alpoim Calvão, Costa Santos, Rebordão de Brito, os majores
Rosa Garoupa, Mira Godinho e Zuquete da Fonseca, tenentes João Corvo, Silva
Horta, Cunha e Silva, Cardoso Anaia. Ao todo seriam uns 60 presentes, entre
oficiais e civis fardados. O coronel Durval de Almeida testemunhou que Spínola
e Alpoim Calvão corrigiram um «Manifesto» manuscrito.
Pelas
10 horas e 45 saram da Base Aérea 3 os T-6 para bombardear o RAL 1 e pelas 11
largaram 10 helicópteros Alouettes e 3 aviões Nordatlas transportando para-quedistas
para cercar aquela unidade militar da cintura de Lisboa. O golpe foi pouco mais
que isso.
O
comandante da BA 3, coronel Moura dos Santos, testemunhou que ao princípio da
tarde, simultaneamente com a contenção do golpe em Lisboa e outros pontos do País,
no interior da Base «os instruendos do Serviço Geral» avançaram para o edifício
onde estava instalado o Posto de Comando do golpe. Chegara a Tancos a notícia
de que às portas de Lisboa os para-quedistas enviados para ocupar o RAL 1
estavam a confraternizar com o pessoal do quartel, trocando efusivos abraços. Em
Tancos e segundo um depoimento do processo, os instruendos e furriéis instrutores
constituíram um corpo de «amotinados incontroláveis», arrombaram os Mercedes
que tinham transportado os conspiradores para Tancos e apreenderam oi armamento
que encontraram no interior. Pelas 15 horas e 40 minutos de 11 de Março de
1975, Spínola e a elite dos spinolistas
fugiram em dois helicópteros à fúria dos recrutas de Tancos.
Abaixo as reacções
Hoje,
o 11 de Março é um esqueleto no armário da democracia portuguesa e dos quartéis
generais partidários. Em cima dos acontecimentos e à medida que não restavam
dúvidas quanto a vencedores e vencidos, penderam todos para o mesmo lado.
PS:
«O PS condena severamente esta provocação reaccionária…»
PPD:
«Elementos reaccionários atentaram contra as liberdades (…) Viva o MFA».
PCP:
«Muitas lições haverá a tirar dos acontecimentos (…) Os factos aí estão».
CDS:
«Solidário com o MFA, o CDS reprova veementemente os acontecimentos
antidemocráticos que se traduziram designadamente no ataque a um quartel…»
PDC:
«O PDC foi surpreendido pelas insólitas manobras de forças reaccionárias…»
MRPP:
«Na luta intestina que se trava entre as diversas fações da burguesia…»
MES:
«Para esmagar a reacção capitalista (…) armas para o povo…»
João Paulo Guerra, in O Diário, 11 de Março de 1989
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