Por João Paulo Guerra, Público, 8 Janeiro 1995
A
Cinelândia, que foi um sonho de Reinaldo Ferreira, com data de 1929, vai
chamar-se a Cidade do Cinema. Quanto á localização, o Repórter X só errou por
meia dúzia de quilómetros.
Os presidentes da Tóbis Portuguesa, José
Fonseca e Costa, e da Luso American Securities (Luso-Am), Carlos de Mattos, já
chegaram a um acordo preliminar para a construção, em Cascais, da Cinema City
ou Cidade do Cinema. Na altura nenhum deles tinha presente a reportagem
ficcionada de Reinaldo Ferreira, publicada em 1929, sobre a criação da
Cinelândia da Europa, precisamente no concelho de Cascais, em Alcabideche.
A “reportagem imaginária” do Repórter X saiu
nas páginas de três números sucessivos da revista quinzenária “Ilustração”,
entre 16 de Janeiro e 16 de Fevereiro de 1929. Mas Reinaldo Ferreira situava a
história, não no final do século, mas apenas a uma dúzia de anos, na década de
40. Por essa altura, Alcabideche «tinha desaparecido» com a construção dos
«primeiros hotéis – uns cinco», a fixação de «uma população que orçava já por
uns cinco ou seis mil indivíduos», a abertura de «boulevards» e, acima de tudo,
a «multiplicação dos estúdios» de cinema: «180 estúdios permanentes e 120
empresas e metteeurs-en-scène e artistas independentes». A Cinelândia
estendia-se, para além de Alcabideche, entre Sintra e Cascais. O próprio
Reinaldo Ferreira, que para além de repórter também já fora realizador de cinema,
entrava na história: era o director do Diário Cinematográfico, um «rotativo de
30 páginas, redigido em cinco idiomas». Por influência do negócio, o mayor de
Cascais era então um dos «reis magos» que tinha procurado fazer de Portugal «a
Hollywood da Europa», Leopold O’Donnell.
José Luís Judas, presidente da Câmara de
Cascais, também desconhecia o texto do Repórter X, quando previu e prometeu,
ainda na campanha eleitoral de 1993, a construção de instalações para a
indústria cinematográfica no concelho. Judas aderiu de imediato ao projecto da
Tóbis e da Luso-Am.
«A Câmara – revela o presidente –
disponibilizou terrenos do concelho, em Plano Diretor Municipal, para se
construir uma espécie de Cidade do Cinema, para produção de cinema e
audiovisuais. É um projecto multimédia com alguma originalidade e que, mais do
que isso, permite criar postos de trabalho, situado num concelho com vocação
clara para actividades de lazer, complementando a própria actividade turística
do concelho de Cascais».
E a Cidade do Cinema, versão real e actual
da Cinelândia imaginada pelo Repórter X há 66 anos, entrou assim na realidade
do mapa do PDM de Cascais, designado por Espaço de Desenvolvimento Urbanístico
da Unidade Integrada de Produção Multimédia: 170 hectares entre o final da
autoestrada e o início do Parque Natural, a poucos quilómetros de Alcabideche, a
meia dúzia de quilómetros do cenário do sonho de Reinaldo Ferreira.
«O sonho é parecido, embora com muitos anos
de atraso – concorda José Fonseca e Costa. – Não tenho a capacidade inventiva,
o génio nem sobretudo o sentido do humor de Reinaldo Ferreira. Mas o sonho faz
parte da minha profissão. Para fazer filmes são precisas unidades, quanto
melhor equipadas, melhor para quem os faz. Foi a partir daí que nasceu o meu
sonho. Se ele coincide com o do Reinaldo Ferreira, o mérito é dele».
Fonseca e Costa salienta que costuma «ser
pessimista, o que é ser otimista duas vezes`. Mas neste momento admite que
estão «criadas as condições para que o sonho possa ser possível», embora «as
coisas tenham começado apenas a andar».
Foi necessário que passasse mais de meio
século sobre o sonho de Reinaldo Ferreira. O Repórter X antecipou-se no tempo
mas, na opinião de José Fonseca e Costa, «acima de tudo fomos nós que nos
atrasámos». José Luís Judas está de acordo: «Creio que perdemos muito tempo
à procura do que é a vocação deste país. Só hoje aparece clara a importância das indústrias ligadas ao lazer, não só pela absorção da mão-de-obra, como pelas possibilidades de futuro. Temos falta de equipamentos e de actividades complementares ao turismo para que as indústrias do lazer se situem com certa profundidade no nosso país».
à procura do que é a vocação deste país. Só hoje aparece clara a importância das indústrias ligadas ao lazer, não só pela absorção da mão-de-obra, como pelas possibilidades de futuro. Temos falta de equipamentos e de actividades complementares ao turismo para que as indústrias do lazer se situem com certa profundidade no nosso país».
Investimento
de 20 milhões
«Mais
tarde ou mais cedo, Portugal será o Hollywood da Europa», sonhava Reinaldo
Ferreira em 1929. Grande parte das cidades da Europa eram «quase infilmáveis,
em grandes períodos do ano». Porém, «circunvagando a vista pelo velho
continente ressalta logo Portugal como uma Califórnia europeia. Luz a jorros,
facilitando durante quase todo o ano as filmagens de exteriores; paisagem
cosmopolita (…) e, sobretudo, país neutro em cinematografia que, por todos e
por igual, dividiria o seu tesouro».
O Repórter X não estava a ser «o mau da
fita» ao escrever, em 1929, sobre a neutralidade da cinematografia portuguesa.
«Ainda hoje não temos uma personalidade cinematográfica – admite Fonseca e
Costa. – A possível riqueza da cinematografia portuguesa reside no facto de
cada um dos filmes ser um protótipo. Ninguém seguiu ninguém. Ninguém fez
escola. Não temos uma tradição». A Cidade do Cinema tem também como objectivo
contrariar essa falta de personalidade, fornecendo aos cineastas portugueses
«um conjunto de tecnologias avançadas e de equipamentos que lhes permitirão
exprimir-se da melhor maneira possível».
Na “reportagem” ficcionada de 1929, a partir
da experiência de uma empresa imaginária, a Windsor-Film, os estúdios
multiplicam-se «nos arredores de Alcabideche». E até mesmo Lisboa passou por
transformações em virtude da imaginação do Repórter X: «um hotel aéreo», onde
antes existia o elevador de Santa Justa, «terraços, cafés cosmopolitas e
hotéis» marginando a Avenida da Liberdade e as ruas do Ouro e Garrett, um
«gigantesco Palace» onde outrora florescia o Jardim de São Pedro de Alcântara.
Lisboa ficou «enlaçada pelas serpentinas imensas de celuloide» e vicejada pelo
hálito vigorizador da sua actividade e fortuna». Com o cinema chegaram a
Alcabideche e a Lisboa os forasteiros, aventureiros e figurantes - «misses
inglesas», «alemãs bizarras», «extravagantes russos», «nervosos italianos» -,
dando «à cidade o aspecto de um music-hall de raças». E tudo isto graças ao sol
e à luz de Portugal.
Para o projecto actual, Portugal não entra
apenas com a luz do sol e paisagem. O presidente da Tóbis prevê a participação
de técnicos de cinema das mais diferentes especialidades. «Para eles – diz
Fonseca e Costa – o facto de passarem a existir aqui novos tipos de
equipamentos permitirá que trabalhem melhor, criem escola, se desenvolvam,
dando mesmo lugar ao reaparecimento de certas profissões cinematográficas
eventualmente em extinção».
O presidente da Câmara de Cascais também já
fez contas aos efeitos do projecto. «Com cerca de 20 milhões de contos de
investimento geral, pode criar porventura o dobro dos postos de trabalho que o
projecto Ford-Volkswagen. Isto não é nenhuma crítica indireta. Significa apenas
que é um tipo de indústria capaz de absorver muitos mais postos de trabalho».
O Governo está de acordo e aderiu de
imediato. Em Setembro passado, o ministro do Comércio, Faria de Oliveira,
assinou em Los Angeles, com Carlos de Mattos – o português galardoado com um
Óscar da Academia em 1991 – um protocolo para a criação da Cidade do Cinema em
Portugal. Como meio de apoio ao projecto, vai ser constituída em LA uma Portuguese Film Comission, destinada a
promover a imagem de Portugal e dos estúdios portugueses junto da indústria
cinematográfica de Hollywood.
A
utopia do Repórter X
A Cidade do Cinema será coordenada por uma
sociedade, a Lisboa Filmes, em cujo capital participarão a Tóbis Portuguesa e a
Luso-American Securiities, estando o projecto aberto ao envolvimento da União
Europeia, de bancos e de outros investidores. Para além da gestão do estúdio de
Cascais, a companhia dedicar-se-á também á produção e comercialização de
filmes, programas de televisão e vídeo e produções musicais.
«O projecto – diz José Fonseca e Costa –
decorre pura e simplesmente, da minha posição como cineasta perante aquilo que
resta da Tóbis. A Tóbis era uma pequena Cidade do Cinema, com equipamento
intensivo à disposição dos cineastas para fazer filmes que ainda fazem as
delícias de milhares de espectadores. Com os anos isto foi-se degradando. Ao
ter conhecimento de que havia o projecto de privatizar esta empresa, e temendo
eu que dessa privatização resultasse a destruição do que resta da Tóbis, sugeri
que se fizesse a privatização mas depois de reconstruir a empresa».
A associação com a Luso-Am para a criação da
Cidade do Cinema passa, assim, pela privatização da Tóbis o que prevê a sua
revitalização. «É altura de o Estado se portar como pessoa de bem – considera
Fonseca e Costa. - Ao longo dos anos, desde que tomou conta da empresa em 1955,
o Estado teve em relação à Tóbis uma atitude torpe: em vez de a desenvolver,
desenvolveu foi um projecto de urbanização que levou à sua destruição. Basta
olhar para o que resta da empresa para se ver que é preciso fazer qualquer
coisa de novo. Agora, a Tóbis só sairá daqui quando essa coisa nova estiver
feita. Não quero cometer o erro, tantas vezes cometido, no passado, que é
começar a destruir alguma coisa, antes de ser feita outra».
Até lá, a velha Tóbis vai procurar responder
às encomendas. O presidente da empresa pretende fazer os acordos necessários e
suficientes para que a Tóbis se mantenha equipada de modo a prestar os serviços
que agora presta «de uma maneira cada vez mais eficaz e melhor».
Quando o Repórter X sonhou a Cinelândia, nem
sequer a Tóbis existia. Também ele realizador e argumentista, Reinaldo Ferreira
produziu as suas histórias para cinema nos estúdios da Invicta Films, no Porto.
A Tóbis nasceu na década seguinte, precisamente como proposta de uma cidade de
cinema, à escala da época. O projeto imaginado por Reinaldo Ferreira, esse já é
à escala do sonho. Uma escala de utopia, que nem mesmo passados 66 anos é
possível em Portugal. «Eu não renego a utopia de Reinaldo Ferreira e gostaria
muito que ela fosse possível, correndo embora o risco de me chamarem
megalómano. Pois que chamem. Se a Cidade do Cinema se fizer, rapidamente se
esquecerá quem foi o megalómano que teve a ideia de a fazer, cujo único mérito
foi o de por no papel uma série de coisas que são óbvias», diz o presidente da
Tóbis.
E é assim que a Cidade do Cinema já tem
configuração no mapa do PDM de Cascais. O presidente da Câmara nem sequer teme
que, à semelhança da história imaginada pelo Repórter X, o peso da indústria
cinematográfica venha a colocar um «rei mago» do cinema à frente do Município.
«É uma caricatura – reconhece José Luís Judas – que hoje até seria possível do
ponto de vista institucional, porque os estrangeiros podem candidatar-se às
autarquias e Cascais até tem uma colónia inglesa bastante grande para votar num
tal candidato. Mas, para lá da caricatura, não tenho qualquer receio que o
projecto venha a transfigurar Cascais que, aliás, já tem um ambiente urbano, de
natureza social, ambiental e cultural, próprio para a instalação de um complexo
desta natureza. Foi essa, aliás, uma das razões para propormos a vinda desse
empreendimento para Cascais.»
João Paulo Guerra, Público, 8 Janeiro 1995
2021 - O sonho do Repórter X continua no domínio dos sonhos, apesar das alterações aos pdm's.
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