
Em 10 de Maio de 1958, uma simples frase
abalou um regime já então com 32 anos de poder. O general Humberto Delgado,
respondendo em conferência de imprensa, no Café Chave d’Ouro, à pergunta do
correspondente da Agência France Press em Lisboa, Lindorfe Pinto Basto, sobre o
destino de Salazar caso o general viesse a ser eleito Presidente da República,
declarou com firmeza: «Obviamente demito-o».
As hostes do regime reagiram com um coro orquestrado de protestos de uma
imprensa censurada e domesticada. Mas a frase não ficou sufocada pelos títulos
e prosas de desagravo ao regime e ao seu líder. A frase representou a maior
pedrada no charco estagnado do regime, despertou toda uma geração para a luta política e
constituiu o início da derrocada do poder erguido por Salazar. Quanto ao
«general sem medo» pagou com a vida esta e muitas outras ousadias: foi
assassinado pela polícia política do regime antes do seu rival nas eleições de
1958 terminar o mandato.
Raul Rego, que veio a ser assessor de imprensa da campanha de Humberto Delgado,
conhecera o general durante uma viagem aos Estados Unidos, onde o general desempenhava o
cargo de adido militar da Embaixada portuguesa. Republicano e anti-militarista,
Rego desconfiou quando lhe apresentaram um oficial general português, da
confiança do regime, que defendia valores próximos aos da oposição tradicional
portuguesa. Chegou a dizer-lhe que, pensando daquele modo, o general estaria
brevemente nas hostes do «reviralho». E a verdade é que acertou em cheio.
Poucos anos depois do encontro em Washington, Raul Rego trabalhava na
candidatura do general à Presidência da República.
Foi na qualidade de assessor de imprensa da candidatura que Raul Rego
convocou e ajudou a preparar a conferência de imprensa de 10 de Maio, no
primeiro andar do café Chave d'Ouro, em Lisboa. Na véspera, a direcção da
campanha submeteu o general a uma sabatina, prevendo perguntas dos jornalistas
e ajudando-o a encontrar as respostas politicamente correctas. E a questão das
intenções de Delgado, se viesse a ser eleito, em relação a Salazar foi uma das
que se colocaram como mais previsíveis. A Comissão Central de Apoio à
candidatura (Vieira de Almeida, António Sérgio, Jaime Cortesão, Azevedo Gomes,
Adão e Silva, Mário Soares e outros) aconselhou vivamente o general a dar uma
resposta evasiva.
Humberto Delgado, no entanto, retribuía aos oposicionistas tradicionais
as desconfianças e reservas que estes lhe votavam. Chamava aos velhos e novos
republicanos a «Oposição dos papéis» e afirmava-se como um homem de acção e,
acima de tudo, «sem medo». Na conferência de imprensa de apresentação da
candidatura, questionado sobre as
suas intenções em relação a Salazar, o general disparou, ao
arrepio de todos os seus conselheiros: «Obviamente, demito-o».
O
«Diário de Notícias», dirigido por Augusto de Castro, deu a notícia na edição
do dia seguinte, um domingo, no canto inferior da primeira página. A manchete
da edição foi para os «Milhares de telegramas recebidos na Presidência do
Conselho manifestando agradecimento e confiança em Salazar e protestando contra
as afirmações do general Humberto Delgado».
Um general em campanha
A campanha de Humberto Delgado varreu o país como um vendaval, arrastando
multidões e revelando um Portugal desconhecido que aderia publicamente à
contestação ao regime, enfrentando a repressão. O primeiro dos grandes «banhos
de multidão» que marcaram a campanha registou-se no Porto, com cerca de metade
da população da cidade a vitoriar o candidato nas ruas. À noite, no comício do
Coliseu, Cal Brandão referiu-se a Delgado como «o general sem medo», epíteto
que ficou até hoje.
No regresso de
Delgado a Lisboa, o regime tomou medidas. Entre Santa Apolónia e o Terreiro do
Paço, uma imensa multidão, mantida à distância pela cavalaria da GNR, aguardava
o general. A caravana de Humberto Delgado foi desviada pela PIDE, para a zona
oriental da cidade, e escoltada por motociclistas da polícia, enquanto a Guarda
perseguia e espancava os apoiantes do general pelo Terreiro do Paço, Rossio,
Restauradores e ruas da baixa. Cenas de violência que voltaram a verificar-se
dias mais tarde, após o comício de Humberto Delgado no Liceu Camões.
Mas a imagem de um general, fardado e condecorado, ao qual as próprias
forças repressivas batiam a continência antes de carregarem sobre os seus
adeptos, convenceu milhares de portugueses de que a mudança era possível e
aquele era o momento. Mário Soares é de opinião que o general poderia mesmo, no
dia do regresso a Lisboa após a jornada do Porto, ter apeado Salazar do poder.
«Se ele se tem posto à cabeça daquela manifestação e tem rumado a S. Bento,
derrubava o Salazar. Não havia força humana que impedisse a multidão de entrar em
S. Bento, o Salazar demitia-se. Foi assim que caiu o ditador Marcos, nas
Filipinas, muitos anos mais tarde».
Tomás diz que se absteve
O candidato do regime apresentou-se publicamente no dia 20 de Maio,
declarando que não seria, a partir da eleição, «o chefe de uns tantos, mas de
todos, mesmo daqueles que o não hajam designado». A conferência de imprensa
revelou, de resto, no curtíssimo período de perguntas e respostas, um homem
menos tolerante para com os adversários que a sua declaração deixaria admitir e
em conflito insanável com a retórica.
«- Pergunta: A que atribui V. Exª os acontecimentos verificados nas ruas?
«- Resposta: A responsabilidade dos acontecimentos é geralmente de quem
os provoca. E a forma como eles se verificaram dá a impressão de que estavam
preparados de antemão.
«- Pergunta: Como justifica V. Exª o facto de, ao ser convidado para se
candidatar, ter começado por escusar-se por não se julgar com as qualidades
necessárias?
«- Resposta: Quem não é tolo não se julga com todas as qualidades
necessárias para desempenhar um alto cargo».
A campanha de Américo Tomás foi discreta, à medida do próprio candidato e
de uma corrida eleitoral com vencedor anunciado. Nas suas memórias, («Últimas
Décadas de Portugal» - Volume III, página 12 e seguintes), o almirante sublinha
que a campanha eleitoral, por motivo do temperamento e formação pró-americana
de Humberto Delgado, foi marcada por «exageros e tropelias», «não só cada vez
maiores, mas até contagiosos». Mas Tomás conclui, escrevendo na terceira pessoa
do singular, que «não se deixou contagiar o candidato proposto pela Comissão
Central da União Nacional, limitando-se na sua actuação à elaboração de algumas
saudações e das respostas às que ia recebendo».
Américo Tomás declarou que se absteve no acto eleitoral de 8 de Junho de
1958. «O candidato da União Nacional - escreve no seu estilo peculiar -
absteve-se de votar, apesar das pressões nele exercidas em sentido contrário,
mediante tenaz argumentação: é que entendeu, por uma questão de princípio, que
não devendo votar no seu opositor, não devia votar em si mesmo, e dessa sua
determinação, ninguém o conseguiu demover».
Tomás foi declarado
vencedor. Mas Marcelo Caetano escreveu anos mais tarde que aquela foi uma
vitória com sabor a derrota. A Censura encarregou-se aliás de moderar a euforia
dos escribas do regime. E na primeira oportunidade, Salazar mudou a lei
eleitoral.
Quando os comunistas bradaram «Ó céus!»
O general Humberto Delgado, em 1958, terá sido o primeiro «sapo-vivo» que
o PCP teve que engolir em matéria de candidaturas à Presidência da República.
Perante a vaga de fundo que a campanha do general levantou no país, e face às
sucessivas desistências dos candidatos Cunha Leal e Arlindo Vicente e à
indisponibilidade de Manuel João da Palma Carlos, o PCP acabou por aderir à
candidatura. Mas, em Abril de 1958, menos de um mês antes da abertura da
campanha, ainda os comunistas consideravam que o general «foi sempre um adepto
e defensor do regime fascista de Salazar e até hoje não há um só facto que
mostre que ele mudou de ideias». O documento é datado de 6 de Abril de 1958 e
assinado pela Comissão Política do Comité Central do Partido Comunista
Português.
Quarenta
anos mais tarde, Octávio Pato considera ainda que as reservas do PCP ao nome do
general eram «completamente legítimas». Em declarações ao «Diário Económico»,
Pato reafirmou que a figura de Delgado «não tinha qualquer crédito nas forças
democráticas» e «as próprias pessoas que promoviam a candidatura também não
mereciam confiança». Por
essa altura, o PCP apoiava ainda a candidatura do engenheiro Francisco Cunha
Leal, anunciada pela Direcção da Organização Regional do Sul do partido, em 20
de Março: «A oposição tem um candidato».
«Não
andávamos à procura de um candidato comunista», diz hoje Octávio Pato aludindo
ao anticomunismo de Cunha Leal, mas de alguém que merecesse «apoio consensual
de forças muito diversificadas da oposição, um candidato que reunisse o apoio
das forças democráticas».
Cunha
Leal, um ferrenho anti-comunista, aceitara o apoio do PCP mas requeria que
outras forças, em particular o Directório Democrato-Social, se lhe juntassem.
Os comunistas procuraram que a candidatura fosse um facto consumado que
arrastasse o apoio de outras formações, embora o leque de apoiantes contasse já
com personalidades como Tito de Morais, Câmara Reis, Aquilino Ribeiro e Vasco
da Gama Fernandes. O lançamento do nome de Humberto Delgado baralhou todas as
pistas. Cunha Leal veio a desistir, alegando motivos de saúde. Os comunistas
procuraram ainda lançar a candidatura de Manuel João da Palma Carlos mas,
perante a recusa do advogado, transferiram então o seu apoio para Arlindo
Vicente. Uma terceira escolha. «Palma Carlos era um comunista - revela Octávio
Pato - o que limitava a abrangência de apoios. O que não era o caso de Arlindo
Vicente, que reunia o consenso das forças democráticas de esquerda».
Em 2
de Maio, as conclusões de uma reunião do Comité Central proclamavam que «os
princípios e objectivos que informam a candidatura do Sr. Dr. Arlindo Vicente
são os que correspondem às aspirações das mais largas camadas da população,
desde a classe operária à burguesia nacional. (...) Por isso o Partido
manifesta a sua concordância com esta candidatura». A táctica era flexível e ia
respondendo às circunstâncias.
Cunhal critica o PCP
Com Álvaro Cunhal na cadeia, o PCP era então dirigido, entre outros, por
Américo de Sousa, Dias Lourenço, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Pires Jorge, Júlio
Fogaça, Octávio Pato e Sérgio Vilarigues. Após a fuga de Peniche, em Janeiro de
60, Cunhal iria rotular a orientação destes seus camaradas com o carimbo de
«desvio de direita».
Octávio Pato, um dos alvos das críticas de Cunhal divulgadas como
«auto-crítica do PCP», atribui tal «desvio» à «influência do XX Congresso do
PCUS» (1956), que levou o V Congresso do PCP (1957) a transferir para a ordem
interna as teses de Moscovo sobre «a possibilidade da solução pacífica dos
problemas mundiais, transportando para os problemas nacionais a possibilidade
de uma via pacífica para o derrubamento do fascismo». Pato não se sente
pessoalmente atingido pela crítica de «desvio de direita»: «Analisámos,
criticámos e corrigimos», diz.
O que Cunhal criticou na orientação do partido vinha com efeito da linha
estratégica adoptada no V Congresso, em 14 de Setembro de 57, e constava
então de um documento assinado
nominalmente, contra todos os hábitos conspirativos, pelos dirigentes citados
em nome do Comité Central do PCP, com data de 19 de Maio de 1958. Pato e os
seus camaradas declaravam que «será possível através das actuais eleições
presidenciais, conquistar liberdades até hoje não alcançadas, inclusivamente
uma vitória eleitoral». E na perspectiva da «vitória eleitoral», os dirigentes
comunistas apressaram-se a declarar que não deixariam de «apoiar
condicionalmente um Governo de homens honrados que, substituindo a camarilha
salazarista no poder, se proponha restabelecer as liberdades fundamentais».
Ainda hoje, a direcção do PCP considera que foi justo lançar a candidatura
de Arlindo Vicente e negociar depois a desistência com Humberto Delgado. Assim,
diz Octávio Pato, «não ficámos a reboque da burguesia liberal».
Colocado perante o inevitável, o PCP procurou adaptar-se, engolindo o
«sapo vivo». Mas quando o nome do general começara a ser falado como possível
candidato, os comunistas tinham uma opinião definida e definitiva sobre
Humberto Delgado. Em Novembro de 1957, em documento publicado em separata ao
«Avante» desse mês sob o título «Pela escolha imediata de um candidato à
Presidência da República», o nome do general despertava nos comunistas um
inesperado brado de indignação: «Ó céus!».
Arrastados pelo fulgor da campanha de Delgado, os comunistas vieram a
acreditar na vitória eleitoral e colaram-se à candidatura nessa perspectiva.
Octávio Pato diz hoje, no entanto, que «a direcção do partido nunca acreditou
na hipótese do fascismo aceitar uma derrota eleitoral». Mas admite que «alguns
camaradas acreditaram». Após fugir da cadeia
de Peniche, Álvaro Cunhal zurziu os seus camaradas que dirigiram interinamente
o PCP. «Atravessámos uma situação pré-insurrecional sem nos apercebermos
disso», escreveu o líder comunista, criticando o partido por difundir a ideia
de que a questão fundamental era a eleição de Delgado e não o derrube do
regime. Como criticou, de igual modo, o apoio do PCP a acções militares inspiradas pelo general, como a fracassada Revolta da Sé (Março de
1959), classificando-as como «conspirações putschistas pequeno-burguesas».
Para
Cunhal, em suma, o que faltou ao PCP em 1958 foi ele próprio.
João Paulo Guerra, em Diário Económico, Maio de 1998, nos 40 anos da campanha do general Humberto Delgado
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