Corrupção,
branqueamento, fraudes, crimes fiscais e infracções informáticas
O combate à corrupção passou a
ocupar parte substancial do discurso político. E a quem se interrogue de onde
terá partido a ideia, a resposta está em notícias, em sinais exteriores de
inexplicável riqueza e também em estatísticas e relatórios. De Janeiro de 2005
ao final de Outubro de 2006, o Ministério Público abriu mais de oito mil
inquéritos relativos a indícios de fraudes, corrupção, branqueamento de
capitais, crimes fiscais e infracções de tecnologia informática. A média é de 13
inquéritos por dia, incluindo fins-de-semana, feriados e dias santos. No
relatório de segurança interna de 2005 há uma referência, com origem nos Serviços
de Informações da República, segundo a qual a criminalidade económica e
financeira se «consolidou» em Portugal.
Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 13 Novembro 2006
A
criminalidade económica e financeira só é visível em sinais exteriores de
inexplicável riqueza. Mas este ano, até ao dia 27 de Outubro, segundo dados do
Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), o Ministério
Público abriu 3105 inquéritos relativos a indícios de fraudes, corrupção,
branqueamento de capitais, crimes fiscais e infracções de tecnologia
informática. A estes dados haverá que acrescentar 7342 inquéritos abertos no
ano passado. (ver quadro). A Polícia Judiciária, por seu lado e segundo dados
divulgados pela Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade
Económica e Financeira (DCICCEF), está a investigar 570 inquéritos relativos a
indícios de corrupção, a maior parte dos quais na Administração Local (ver
quadro).
Estes dados,
que pecam necessariamente por defeito em relação à realidade subterrânea da
economia, traduzem o florescimento da criminalidade económica e financeira,
potenciada, na opinião da procuradora Maria José Morgado, pela «dimensão
internacional, o uso / aproveitamento das estruturas de negócios legais e o uso
de tecnologias de informação». Mas traduzem igualmente, segundo a procuradora,
a «crescente dificuldade de contra-resposta judiciária», o que dá a este tipo
de criminalidade «vantagens superiores aos riscos». As estatísticas revelam,
com efeito, que apenas um quarto dos casos registados por indícios de corrupção
têm chegado a tribunal para julgamento.
No entender da
procuradora, a questão fulcral da criminalidade económica e financeira situa-se
actualmente na «montagem financeira para lavar proventos», eventualmente
oriundos de actividades legais como também da fuga ao fisco, da corrupção ou de
outra actividade criminosa. Citando cálculos de especialistas, Maria José
Morgado refere que os fundos movimentados pela economia subterrânea poderão
envolver cerca de 9 por cento do PIB.
«Labirinto legislativo»
Dos inquéritos
em investigação na PJ, mais de 42 por cento dizem respeito a indícios de
corrupção na Administração Local. Este parece ser o campo por excelência da
promiscuidade entre partidos e dirigentes políticos, urbanismo, negócios
imobiliários e campanhas eleitorais. Em Agosto de 2005, o vice-presidente da
Câmara do Porto, Paulo Morais ,
declarou que o urbanismo é, em grande número de câmaras, «a forma mais
encapotada e sub-reptícia de transferir bens públicos para a mão de privados». Paulo Morais não entrou na lista seguinte para a
Câmara do Porto, diversos foram os autarcas e dirigentes políticos que o
desafiaram a identificar os corruptos e o Governo anunciou que ia determinar
uma averiguação por parte da Inspecção-Geral da Administração do Território
(IGAT).
Paulo Morais |
Já lá vai mais
de um ano e Paulo Morais não tem conhecimento de qualquer averiguação por parte
do IGAT. Ouvido pelo Ministério Público, na sequência das denúncias que fez, o
ex-vice-presidente da Câmara do Porto disse ao Diário Económico que, tanto
quanto «julga saber», «os processos estão a ser devidamente estudados pelos
senhores procuradores responsáveis», com um atraso que resulta «da
desorganização crónica da justiça e, sobretudo, do labirinto legislativo
dominante» na área do urbanismo. «Em Portugal temos um triste tradição: quando
temos um problema, inventa-se uma regra ou uma lei. E passamos a ter dois
problemas», comenta o ex-vereador da Câmara do Porto.
Paulo Morais
entende que esse «labirinto legislativo» não é inocente. «Determinados grupos
que dominam o sistema» conseguem «fazer tudo o que lhes apetece no meio desta
confusão legislativa», diz o ex-autarca. E acrescenta que «há jurisconsultos,
advogados e especialistas nisso mesmo: ajudar os governos e o Parlamento a
fazer a lei e posteriormente ajudar os promotores privados a encontrar as
lacunas na lei que eles próprios ajudaram a fazer».
A procuradora
Maria José Morgado, ex-directora-adjunta da PJ com o pelouro do combate à
criminalidade económica e financeira, entende que ao nível da legislação, «com
esforço», tem «havido adaptações», mas «o sistema continua excessivamente
poroso». Em declarações ao Diário Económico, Maria José Morgado considerou que
haverá que actualizar a legislação sobre crimes económicos, alguma da qual já
vem desde 1984, faltando no plano legislativo «um estatuto de clemência para
quem pretenda colaborar com a Justiça» e um sistema de «efectivo controlo de
declaração de rendimentos e património dos responsáveis políticos».
Parte deste
tipo de alterações tem sido defendido pelo deputado socialista João Cravinho,
designadamente num pacote legislativo anti-corrupção que o seu partido tem tido
alguma relutância em aceitar. Defendendo que «os crimes de corrupção resultam
sempre de oportunidades e incentivos criados plea administração», o deputado
considera que a legislação «tem lacunas, falhas e soluções menos felizes», como
é o caso da distinção entre corrupção para acto ilícito ou lícito, com
diferença muito considerável das respectivas penas. Para além das suas próprias
propostas, que visam em grande a prevenção, gestão e minimização dos riscos de corrupção,
João Cravinho considera que estão em curso, designadamente no âmbito da revisão
do Código Penal, alterações de grande alcance. É o caso de tornar as entidades
colectivas, designadamente as empresas, passíveis de sanções como por exemplo a
exclusão de concursos públicos, bem como a criminalização do enriquecimento
ilícito.
Obstáculos
O director de programas mundiais do Banco
Mundial, Daniel Kaufman, defendeu em Setembro do ano passado que o
desenvolvimento português tem vindo a ser travado pela corrupção e que,
controlando a corrupção, Portugal podia estar ao nível de desenvolvimento da
Finlândia, o país europeu com maior nível de confiança nas instituições. Mas a
corrupção e demais criminalidade económica e financeira, ao que tudo indica,
tem andado fora de controlo.
Em Maio
passado, o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), organismo do Conselho
da Europa, publicou o relatório de avaliação de uma visita a Portugal. O
documento era diplomático mas não deixava de incluir um conjunto de 10
recomendações, por cuja aplicação as autoridades portuguesas terão que
responder até Novembro de 2007.
As
recomendações, preenchendo os pontos fracos localizados da legislação e nos
instrumentos orgânicos do combate à corrupção, visavam a necessidade de
aumentar os meios materiais, financeiros e humanos envolvidos na investigação,
rever as disposições e a prática quanto à confiscação dos produtos da corrupção
e tráfico de influências – princípio admitido pela lei mas jamais aplicado em
Portugal –, tornar efectivo o acesso aos documentos oficiais, aplicar um
conjunto de princípios tendentes a avaliar e prevenir os riscos de corrupção,
adoptar códigos de conduta, de incompatibilidades e de interdição profissional,
de registo e controlo efectivo dos interesses e património dos titulares de
cargos públicos.
Conhecendo o
sistema por dentro, a procuradora Maria José Morgado tece críticas bem mais
contundentes ao modelo e à eficácia do combate à corrupção em Portugal que,
segundo pensa, tem «tropeçado em três principais obstáculos: falta de
investigação criminológica sobre as manifestações da corrupção, zonas onde se
concentra, factores criminógenos dentro dos serviços e do Estado, falta de
planos de prevenção ao nível político e administrativo, falta de um plano
integrado de investigação criminal». A tudo isto acresce, no entender da
procuradora, «a morosidade excessiva dos processos pendentes», o que «tem
conduzido à impunidade». Ora, como também «nunca se verifica o confisco das
vantagens do crime», não existe, segundo Maria José Morgado, «um risco efectivo
para as práticas corruptivas ou a elas associadas».
Maria José Morgado |
No que quase
todos concordam, e o Grupo de Estados Contra a Corrupção também, é com a necessidade
de avaliar e prevenir os riscos de corrupção. É nesse sentido que aponta, no
que tem de mais inovador, o pacote legislativo proposto pelo deputado João
Cravinho.
Entidades para áreas de risco
«Do ponto de
vista do combate à corrupção, são maiores os ganhos do lado da prevenção que da
repressão». É neste ponto de vista que assentam algumas das propostas de João
Cravinho. Para gerir e minimizar o risco, haverá que identificar as áreas mais
vulneráveis como, por exemplo, as das aquisições. Identificadas essas áreas,
cada entidade com expressão no meio onde se pode desenvolver a corrupção
passará a ter o seu plano de prevenção e os seus relatórios de execução desse
plano – a todo o momento auditados, avaliados, revistos – e responsabilizando quem
houver que responsabilizar.
A
fiscalização, que nos termos constitucionais caberá ao Parlamento, seria
exercida através de uma entidade, não propriamente um tribunal ou uma polícia,
com o poder de receber toda a informação necessária, por meio de relatórios de
execução dos planos de prevenção, auditorias, avaliações, sobre áreas e
actividades de risco agravado, como serão os casos do urbanismo, obras
públicas, aquisição de armamento, ou telecomunicações.
Os resultados
da fiscalização seriam transmitidos ao Parlamento e publicitados junto da
opinião pública. O sistema exigiria um permanente estado de alerta, através não
só dos órgãos legislativos e executivos mas também da opinião pública. Todo e
qualquer cidadão tem direito de acesso a qualquer documento – desde que não
esteja classificado e ressalvando a privacidade, o sigilo profissional e
comercial – e a desobediência a tal preceito, a denegação da informação, deverá
ser criminalizada.
E à pergunta
sobre se a elaboração de planos de prevenção nas área de risco da corrupção e a
actividade fiscalizadora não acrescentariam apenas mais um patamar na
burocracia, o deputado socialista tem respondido com uma comparação bem
singela: é como a lei que tornou obrigatórios os planos de segurança nas obras.
A procuradora Maria José Morgado reconhece «mérito» na proposta de João
Cravinho, desde que a prevenção dos riscos não caia na ingenuidade de descurar
a repressão dos casos mais graves.
João Cravinho |
Diminuir os
riscos de fraude, corrupção e desvios de fundos é um dos efeitos visados pelo
controlo financeiro exercido pelo Tribunal de Contas (TC), no âmbito das suas
funções constitucionais de zelar pela boa aplicação dos dinheiros públicos.
«A corrupção é
uma actividade de natureza criminosa cujo julgamento cabe à jurisdição comum»,
recorda o presidente do TC. Mas Guilherme Oliveira Martins acrescenta que «o TC
não só previne essas situações mas também cria as condições para que através do
julgamento da responsabilidade financeira se abra caminho, em primeira linha,
ao combate activo à corrupção».
Os
instrumentos de que o TC dispõe permitem detectar situações de risco. Ao
assinar em Junho passado um protocolo de cooperação com a Autoridade da
Concorrência (AdC), designadamente no âmbito da prevenção e repressão da fraude
e da ilegalidade no uso de dinheiros públicos, o presidente do TC sublinhou que
a intervenção em áreas como a defesa da concorrência ou a prevenção dos
trabalhos a mais pode na prática «conduzir à detecção de situações integráveis
na figura da corrupção».
O TC é um
tribunal financeiro, ao passo que a AdC, na investigação de delitos económicos,
está equiparada a uma polícia, que actua com mandato de um juiz. Mas na fase de
decisão, a AdC limita-se a aplicar uma lei contra-ordacional. Ao contrário de
muitos outros países, as práticas e comportamentos contra o mercado e a
concorrência não constituem crime em Portugal.
Opinião Pública
A
criminalidade económica e financeira, designadamente a corrupção, não se limita
a casos de polícia. Mas é esse, de um modo geral, o espelho da Nação dado pela
imprensa, onde o país da economia subterrânea vem à superfície todos os dias em
sucessivos «casos». O ex-autarca Paulo Morais
considera que «só através de uma enorme pressão da opinião pública se poderá
actuar ao nível da corrupção nas autarquias». Mas entende também que alguma
«comunicação social se transformou no principal sustentáculo do sistema», ao
transformar «temas marginais» em «centrais». «A censura não faria melhor»,
comenta Paulo Morais , considerando
que «as verdadeiras negociatas vão assim frutificando, enquanto a população
anda distraída».
Luís de Sousa,
investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES),
preocupa-se que «a concentração dos ‘media’ bloqueie a investigação
jornalística ou a oriente num determinado sentido», adiantando que o acréscimo
de recursos que deriva da concentração nem sempre «se traduz por mais e melhor
investigação». Diz o investigador que «o problema está na agenda»,
acrescentando que uma investigação jornalística mal conduzida pode apenas
«alimentar o descrédito na justiça».
Luís de Sousa |
O investigador
do CIES considera que «falta massa crítica nesta área», não apenas da parte dos
‘media’ mas sobretudo quanto ao envolvimento da sociedade civil. Luís de Sousa
defende um envolvimento «orgânico» da sociedade civil, na modalidade de
Organização Não Governamental, que mobilize a atenção dos cidadãos, pressione o
legislador, fomente o debate fora do Parlamento, onde a discussão se faz em
circuito fechado. A iniciativa de uma plataforma anticorrupção, como a que está
a ser dinamizada pelo deputado João Cravinho, corresponde de algum modo à ideia
de Luís de Sousa. Tratar-se-ia de um associação cívica que efectuasse estudos
nesta área, propusesse medidas e pudesse mesmo constituir-se assistente em
processos judiciais concretos.
A favor deste
tipo de preocupações e iniciativas parece estar o discurso político que
recentemente adoptou a causa do combate à corrupção. Desde que o discurso não
seja uma simples moda. Comenta a propósito a procuradora Maria José Morgado que
«o pior das modas é a banalização dos fenómenos nocivos».
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