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quinta-feira, 21 de abril de 2016

CRIME ECONÓMICO: Ministério Público abre 13 inquéritos por dia

Corrupção, branqueamento, fraudes, crimes fiscais e infracções informáticas

O combate à corrupção passou a ocupar parte substancial do discurso político. E a quem se interrogue de onde terá partido a ideia, a resposta está em notícias, em sinais exteriores de inexplicável riqueza e também em estatísticas e relatórios. De Janeiro de 2005 ao final de Outubro de 2006, o Ministério Público abriu mais de oito mil inquéritos relativos a indícios de fraudes, corrupção, branqueamento de capitais, crimes fiscais e infracções de tecnologia informática. A média é de 13 inquéritos por dia, incluindo fins-de-semana, feriados e dias santos. No relatório de segurança interna de 2005 há uma referência, com origem nos Serviços de Informações da República, segundo a qual a criminalidade económica e financeira se «consolidou» em Portugal.


Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 13 Novembro 2006


A criminalidade económica e financeira só é visível em sinais exteriores de inexplicável riqueza. Mas este ano, até ao dia 27 de Outubro, segundo dados do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), o Ministério Público abriu 3105 inquéritos relativos a indícios de fraudes, corrupção, branqueamento de capitais, crimes fiscais e infracções de tecnologia informática. A estes dados haverá que acrescentar 7342 inquéritos abertos no ano passado. (ver quadro). A Polícia Judiciária, por seu lado e segundo dados divulgados pela Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (DCICCEF), está a investigar 570 inquéritos relativos a indícios de corrupção, a maior parte dos quais na Administração Local (ver quadro).
Estes dados, que pecam necessariamente por defeito em relação à realidade subterrânea da economia, traduzem o florescimento da criminalidade económica e financeira, potenciada, na opinião da procuradora Maria José Morgado, pela «dimensão internacional, o uso / aproveitamento das estruturas de negócios legais e o uso de tecnologias de informação». Mas traduzem igualmente, segundo a procuradora, a «crescente dificuldade de contra-resposta judiciária», o que dá a este tipo de criminalidade «vantagens superiores aos riscos». As estatísticas revelam, com efeito, que apenas um quarto dos casos registados por indícios de corrupção têm chegado a tribunal para julgamento.
No entender da procuradora, a questão fulcral da criminalidade económica e financeira situa-se actualmente na «montagem financeira para lavar proventos», eventualmente oriundos de actividades legais como também da fuga ao fisco, da corrupção ou de outra actividade criminosa. Citando cálculos de especialistas, Maria José Morgado refere que os fundos movimentados pela economia subterrânea poderão envolver cerca de 9 por cento do PIB.

«Labirinto legislativo»
Dos inquéritos em investigação na PJ, mais de 42 por cento dizem respeito a indícios de corrupção na Administração Local. Este parece ser o campo por excelência da promiscuidade entre partidos e dirigentes políticos, urbanismo, negócios imobiliários e campanhas eleitorais. Em Agosto de 2005, o vice-presidente da Câmara do Porto, Paulo Morais, declarou que o urbanismo é, em grande número de câmaras, «a forma mais encapotada e sub-reptícia de transferir bens públicos para a mão de privados». Paulo Morais não entrou na lista seguinte para a Câmara do Porto, diversos foram os autarcas e dirigentes políticos que o desafiaram a identificar os corruptos e o Governo anunciou que ia determinar uma averiguação por parte da Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT).
Paulo Morais
Já lá vai mais de um ano e Paulo Morais não tem conhecimento de qualquer averiguação por parte do IGAT. Ouvido pelo Ministério Público, na sequência das denúncias que fez, o ex-vice-presidente da Câmara do Porto disse ao Diário Económico que, tanto quanto «julga saber», «os processos estão a ser devidamente estudados pelos senhores procuradores responsáveis», com um atraso que resulta «da desorganização crónica da justiça e, sobretudo, do labirinto legislativo dominante» na área do urbanismo. «Em Portugal temos um triste tradição: quando temos um problema, inventa-se uma regra ou uma lei. E passamos a ter dois problemas», comenta o ex-vereador da Câmara do Porto.
Paulo Morais entende que esse «labirinto legislativo» não é inocente. «Determinados grupos que dominam o sistema» conseguem «fazer tudo o que lhes apetece no meio desta confusão legislativa», diz o ex-autarca. E acrescenta que «há jurisconsultos, advogados e especialistas nisso mesmo: ajudar os governos e o Parlamento a fazer a lei e posteriormente ajudar os promotores privados a encontrar as lacunas na lei que eles próprios ajudaram a fazer».
A procuradora Maria José Morgado, ex-directora-adjunta da PJ com o pelouro do combate à criminalidade económica e financeira, entende que ao nível da legislação, «com esforço», tem «havido adaptações», mas «o sistema continua excessivamente poroso». Em declarações ao Diário Económico, Maria José Morgado considerou que haverá que actualizar a legislação sobre crimes económicos, alguma da qual já vem desde 1984, faltando no plano legislativo «um estatuto de clemência para quem pretenda colaborar com a Justiça» e um sistema de «efectivo controlo de declaração de rendimentos e património dos responsáveis políticos».
Parte deste tipo de alterações tem sido defendido pelo deputado socialista João Cravinho, designadamente num pacote legislativo anti-corrupção que o seu partido tem tido alguma relutância em aceitar. Defendendo que «os crimes de corrupção resultam sempre de oportunidades e incentivos criados plea administração», o deputado considera que a legislação «tem lacunas, falhas e soluções menos felizes», como é o caso da distinção entre corrupção para acto ilícito ou lícito, com diferença muito considerável das respectivas penas. Para além das suas próprias propostas, que visam em grande a prevenção, gestão e minimização dos riscos de corrupção, João Cravinho considera que estão em curso, designadamente no âmbito da revisão do Código Penal, alterações de grande alcance. É o caso de tornar as entidades colectivas, designadamente as empresas, passíveis de sanções como por exemplo a exclusão de concursos públicos, bem como a criminalização do enriquecimento ilícito.


Obstáculos
O director de programas mundiais do Banco Mundial, Daniel Kaufman, defendeu em Setembro do ano passado que o desenvolvimento português tem vindo a ser travado pela corrupção e que, controlando a corrupção, Portugal podia estar ao nível de desenvolvimento da Finlândia, o país europeu com maior nível de confiança nas instituições. Mas a corrupção e demais criminalidade económica e financeira, ao que tudo indica, tem andado fora de controlo.
Em Maio passado, o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), organismo do Conselho da Europa, publicou o relatório de avaliação de uma visita a Portugal. O documento era diplomático mas não deixava de incluir um conjunto de 10 recomendações, por cuja aplicação as autoridades portuguesas terão que responder até Novembro de 2007.
As recomendações, preenchendo os pontos fracos localizados da legislação e nos instrumentos orgânicos do combate à corrupção, visavam a necessidade de aumentar os meios materiais, financeiros e humanos envolvidos na investigação, rever as disposições e a prática quanto à confiscação dos produtos da corrupção e tráfico de influências – princípio admitido pela lei mas jamais aplicado em Portugal –, tornar efectivo o acesso aos documentos oficiais, aplicar um conjunto de princípios tendentes a avaliar e prevenir os riscos de corrupção, adoptar códigos de conduta, de incompatibilidades e de interdição profissional, de registo e controlo efectivo dos interesses e património dos titulares de cargos públicos.
Conhecendo o sistema por dentro, a procuradora Maria José Morgado tece críticas bem mais contundentes ao modelo e à eficácia do combate à corrupção em Portugal que, segundo pensa, tem «tropeçado em três principais obstáculos: falta de investigação criminológica sobre as manifestações da corrupção, zonas onde se concentra, factores criminógenos dentro dos serviços e do Estado, falta de planos de prevenção ao nível político e administrativo, falta de um plano integrado de investigação criminal». A tudo isto acresce, no entender da procuradora, «a morosidade excessiva dos processos pendentes», o que «tem conduzido à impunidade». Ora, como também «nunca se verifica o confisco das vantagens do crime», não existe, segundo Maria José Morgado, «um risco efectivo para as práticas corruptivas ou a elas associadas».
Maria José Morgado
Como conclusão, a respeito dos obstáculos ao combate à corrupção no plano institucional, a ex-directora-adjunta da PJ considera que «a única forma de quebrar o ciclo maldito do ‘muito-ruído-zero-resultados’ seria a adopção de um plano nacional de luta contra a corrupção, a seguir pelo MP e PJ, com definição de objectivos». A nível orgânico, a procuradora pensa que «os métodos existentes estão desfasados das exigências reais», sem especialização do MP, até para corresponder à embrionária especialização policial». E dá o exemplo da intervenção policial em Marbella, em Abril passado, através de uma secção especializada da Guardia Civil com 200 agentes e um departamento especializado em corrupção municipal da Fiscalia Anti-Corruption.
No que quase todos concordam, e o Grupo de Estados Contra a Corrupção também, é com a necessidade de avaliar e prevenir os riscos de corrupção. É nesse sentido que aponta, no que tem de mais inovador, o pacote legislativo proposto pelo deputado João Cravinho.

Entidades para áreas de risco
«Do ponto de vista do combate à corrupção, são maiores os ganhos do lado da prevenção que da repressão». É neste ponto de vista que assentam algumas das propostas de João Cravinho. Para gerir e minimizar o risco, haverá que identificar as áreas mais vulneráveis como, por exemplo, as das aquisições. Identificadas essas áreas, cada entidade com expressão no meio onde se pode desenvolver a corrupção passará a ter o seu plano de prevenção e os seus relatórios de execução desse plano – a todo o momento auditados, avaliados, revistos – e responsabilizando quem houver que responsabilizar.
A fiscalização, que nos termos constitucionais caberá ao Parlamento, seria exercida através de uma entidade, não propriamente um tribunal ou uma polícia, com o poder de receber toda a informação necessária, por meio de relatórios de execução dos planos de prevenção, auditorias, avaliações, sobre áreas e actividades de risco agravado, como serão os casos do urbanismo, obras públicas, aquisição de armamento, ou telecomunicações.
Os resultados da fiscalização seriam transmitidos ao Parlamento e publicitados junto da opinião pública. O sistema exigiria um permanente estado de alerta, através não só dos órgãos legislativos e executivos mas também da opinião pública. Todo e qualquer cidadão tem direito de acesso a qualquer documento – desde que não esteja classificado e ressalvando a privacidade, o sigilo profissional e comercial – e a desobediência a tal preceito, a denegação da informação, deverá ser criminalizada.
E à pergunta sobre se a elaboração de planos de prevenção nas área de risco da corrupção e a actividade fiscalizadora não acrescentariam apenas mais um patamar na burocracia, o deputado socialista tem respondido com uma comparação bem singela: é como a lei que tornou obrigatórios os planos de segurança nas obras. A procuradora Maria José Morgado reconhece «mérito» na proposta de João Cravinho, desde que a prevenção dos riscos não caia na ingenuidade de descurar a repressão dos casos mais graves.
João Cravinho
Diminuir os riscos de fraude, corrupção e desvios de fundos é um dos efeitos visados pelo controlo financeiro exercido pelo Tribunal de Contas (TC), no âmbito das suas funções constitucionais de zelar pela boa aplicação dos dinheiros públicos.
«A corrupção é uma actividade de natureza criminosa cujo julgamento cabe à jurisdição comum», recorda o presidente do TC. Mas Guilherme Oliveira Martins acrescenta que «o TC não só previne essas situações mas também cria as condições para que através do julgamento da responsabilidade financeira se abra caminho, em primeira linha, ao combate activo à corrupção». 
Os instrumentos de que o TC dispõe permitem detectar situações de risco. Ao assinar em Junho passado um protocolo de cooperação com a Autoridade da Concorrência (AdC), designadamente no âmbito da prevenção e repressão da fraude e da ilegalidade no uso de dinheiros públicos, o presidente do TC sublinhou que a intervenção em áreas como a defesa da concorrência ou a prevenção dos trabalhos a mais pode na prática «conduzir à detecção de situações integráveis na figura da corrupção».
O TC é um tribunal financeiro, ao passo que a AdC, na investigação de delitos económicos, está equiparada a uma polícia, que actua com mandato de um juiz. Mas na fase de decisão, a AdC limita-se a aplicar uma lei contra-ordacional. Ao contrário de muitos outros países, as práticas e comportamentos contra o mercado e a concorrência não constituem crime em Portugal.

Opinião Pública
A criminalidade económica e financeira, designadamente a corrupção, não se limita a casos de polícia. Mas é esse, de um modo geral, o espelho da Nação dado pela imprensa, onde o país da economia subterrânea vem à superfície todos os dias em sucessivos «casos». O ex-autarca Paulo Morais considera que «só através de uma enorme pressão da opinião pública se poderá actuar ao nível da corrupção nas autarquias». Mas entende também que alguma «comunicação social se transformou no principal sustentáculo do sistema», ao transformar «temas marginais» em «centrais». «A censura não faria melhor», comenta Paulo Morais, considerando que «as verdadeiras negociatas vão assim frutificando, enquanto a população anda distraída».
Luís de Sousa, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), preocupa-se que «a concentração dos ‘media’ bloqueie a investigação jornalística ou a oriente num determinado sentido», adiantando que o acréscimo de recursos que deriva da concentração nem sempre «se traduz por mais e melhor investigação». Diz o investigador que «o problema está na agenda», acrescentando que uma investigação jornalística mal conduzida pode apenas «alimentar o descrédito na justiça».
Luís de Sousa
O investigador do CIES considera que «falta massa crítica nesta área», não apenas da parte dos ‘media’ mas sobretudo quanto ao envolvimento da sociedade civil. Luís de Sousa defende um envolvimento «orgânico» da sociedade civil, na modalidade de Organização Não Governamental, que mobilize a atenção dos cidadãos, pressione o legislador, fomente o debate fora do Parlamento, onde a discussão se faz em circuito fechado. A iniciativa de uma plataforma anticorrupção, como a que está a ser dinamizada pelo deputado João Cravinho, corresponde de algum modo à ideia de Luís de Sousa. Tratar-se-ia de um associação cívica que efectuasse estudos nesta área, propusesse medidas e pudesse mesmo constituir-se assistente em processos judiciais concretos.
A favor deste tipo de preocupações e iniciativas parece estar o discurso político que recentemente adoptou a causa do combate à corrupção. Desde que o discurso não seja uma simples moda. Comenta a propósito a procuradora Maria José Morgado que «o pior das modas é a banalização dos fenómenos nocivos».

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