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quarta-feira, 15 de junho de 2016

Belíssimo, trágico romance ... Patamar raro de qualidade

Belíssimo - trágico romance...

Miguel Real

    "Tínhamos gostado bastante da ficção anterior de João Paulo Guerra, Romance de uma Conspiração (2010), sobretudo da sua notável capacidade, enquanto narrador, para articular o individual com o colectivo, aliás, igualmente visível na adaptação dramatúrgica de Clarabóia, de José Saramago. Isto é, em vincular situações sociais singulares com o sentido geral da História atribuído na narrativa. É justamente o que de novo acontece em Corações Irritáveis (designação oitocentista dada à actual doença “perturbação pós-stress traumático de guerra”).

    Fusão de romance policial (inspectora Diamantina de Jesus investiga uma sucessão estranha de suicídios de antigos militares) com romance de guerra, Corações Irritáveis descreve realisticamente tanto a vivência infernal de situações de combate e morte, retidas traumaticamente na memória profunda e analisadas pela psiquiatra Sofia Ramada, quanto as suas consequências comportamentais perturbadoras, desconcertando a vida rotineira dos antigos militares, ora civis.

    Um conjunto deles, num ritual sacrificial, decide desesperadamente, devido aos distúrbios mentais sofridos, encenar o seu suicídio em Portugal, reproduzindo, tanto quanto possível, os momentos traumáticos vividos no Ultramar. De inesperado, o “contágio” da doença de Henrique a Adélia, professora, sua companheira, que colabora na encenação. De certo modo, no romance, os rituais suicidas actuais expiam, 30 anos depois os aleijões e as perversões, voluntários ou involuntários, cometidas colectivamente pelo português em teatro de guerra. É, historicamente falando, um romance profundamente catártico.

Belíssimo - trágico romance a necessitar de ser lido por todos os portugueses que tiveram contacto com a Guerra Colonial, sobretudo por aqueles que a viveram".

    Miguel Real, Jornal de Letras, 26 de Outubro de 2016


Patamar raro de qualidade

António Loja Neves

     Ao findar a guerra colonial não se verificou a imediata edição de relatos testemunhais ou ficcionais, tanto quanto se supunha a sua existência, guardados ao abrigo da censura. Como se houvesse que cumprir um período de nojo ou se se optasse por um tempo de reflexão. Aos poucos desanuviou-se a pressão de acontecimentos radicais da experiência-limite. Os espaços preencheram-se finalmente e hoje pode até falar-se de algum cansaço, tantos são os títulos. Mas esta ficção de João Paulo Guerra (J.P.G.) atinge patamar raro de qualidade e de propósitos na rua reflexão transversal. Sempre sob o signo da guerra colonial, que o autor conhece bem e bem escalpelizou. Trata-se de aturado trabalho de pesquisa, com escrita apurada, densa, belíssima, que prodigaliza a viagem pelos mistérios de liças estancadas em 1974 mas que para muitos dos envolvidos e suas famílias não consegue ganhar fim. A trama cria substância e desenvolve-se na análise dos percursos e das procuras de cada um, confrontando-nos com uma sequência de casos extremos, perfis dos que regressaram e que o mais acertado seria terem lá ficado na guerra, sepultados, do que andarem a adiar esse inadiável, já que as mentes e as vidas ficaram paradas para sempre. Deles reza apenas o pesadelo e a memória ininterrupta a remoer o vivido na fase sem transição que mobiliza mesmo os que ‘não foram a África’. J.P.G. engendrou imaginativa teia para fugir da guerra comezinha sem deixar de a descrever: primeiro, com magnífica tramoia policial na senda dos melhores clássicos, como um Chandler; depois as trágicas recordações dos combates, dilacerantes quando nos tolhem em ferimentos irrecuperáveis e nos matam camaradas de infortúnio, colocando-nos à prova de fissuras da carne e da mente; finalmente, os corredores hospitalares onde se finge que vamos curar as indizíveis dores da alma que compõem o regresso com a “perturbação pós-stresse traumático de guerra”. 

    Com uma mais que habilidosa escrita num português seco, escrupuloso e rico, que não facilita perante o pendor policial e não se subjuga diante do espectro dos combates dos que dele serão eternos prisioneiros. Esta narrativa ‘triangular’ interjustifica-se, liberta o discurso isolado na memorialística colectiva desta experiência africana, dando novo fôlego à fatura da literatura colonial de guerra. Afirma uma personagem: “Conheces o inferno? Eu fui até lá, e a questão é que não consigo sair.” Afinal, quem os encaminhou para o inferno e os transformou em mortos-vivos? Quem são os assassinos da série de crimes que a inspectora Diamantina Jesus tenta deslindar?

António Loja Neves / Expresso revista / 16/17 Julho 2016

 


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