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domingo, 26 de julho de 2015

Angola: Do Alvor à «pior guerra do Mundo»


Por João Paulo Guerra, Diário Económico, Janeiro de 2000

Alvor, Janeiro de 1975: Melo Antunes, Rosa Coutinho, Agostinho Neto, Costa Gomes,
Holden Roberto, Jonas Savimbi, Mário Soares, Almeida Santos














A guerra em Angola já foi classificada como «a pior do mundo». Uma imensa tragédia banalizada e que caiu na quase indiferença da opinião pública, ao cabo de 25 anos de conflito, pontuados por acordos de paz que não passaram do papel: Mombaça, Alvor, Nakuru, Lusaka, Nova Iorque, Gbadolite, Bicesse, outra vez Lusaka.

Com perto de quatro milhões de deslocados e refugiados de guerra [cerca de 40% da população, números de 2000], infraestruturas arrasadas e o tecido social e económico desmantelado, Angola ocupava em 1996 o oitavo lugar a contar do fim no relatório sobre Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). E, no entanto, trata-se de um dos mais ricos países africanos, com vastíssimos recursos naturais. Certamente é esse o drama de Angola: a sua imensa riqueza em petróleo e diamantes, mas também em minério de ferro, fosfatos, cobre, ouro, bauxite, urânio, solos férteis, cursos de água, 1.600 km de costa.


País independente desde Novembro de 1975, Angola não teve desde então um único ano de paz. Mas a verdade é que a guerra civil não começou com a independência. Já na época colonial a UNITA combatia o MPLA no Leste do território, como a FNLA combatia o MPLA no Norte. Nos primeiros dias de 1975, os três movimentos subscreveram em Mombaça um acordo manifestando o propósito de cessar todas as hostilidades. Foi essa a condição para que avançassem para o Alvor.


Há 25 anos, no Alvor, Portugal assinou com a FNLA, MPLA e UNITA um acordo que reconhecia os três movimentos como «únicos e legítimos representantes do povo angolano». Nos termos do Acordo, Angola tornar-se-ia independente em 11 de Novembro de 75, após a realização de eleições convocadas pelo Governo de Transição e disputadas «exclusivamente» pelos três partidos armados. Mas as armas prevaleceram sobre o papel assinado no Algarve. O Governo de Transição dissolveu-se entre combates de artilharia nas ruas de Luanda e as eleições não foram convocadas. Ao contrário do que que previa o Acordo do Alvor, os portugueses não proclamaram «solenemente» a independência de Angola. Arriaram a bandeira e recolheram a Lisboa. E em 11 de Novembro de 1975 a independência foi proclamada em Luanda por Agostinho Neto. O MPLA, auxiliado por forças cubanas e equipado pela URSS, conseguira manter o controlo da capital, apesar do assédio da FNLA e de tropas zairenses, pelo Norte, e da UNITA e de tropas sul-africanas, pelo Sul, ambos apoiados pelos EUA.

A internacionalização da guerra foi a transposição para Angola, a quente, da guerra fria. Mas a verdade é que caiu o muro de Berlim, foi desmantelado o apartheid, a Namíbia tornou-se independente, os cubanos sairam de Angola, mudou a administração norte-americana, realizaram-se eleições, mas a guerra em Angola prosseguiu com uma violência directamente proporcional à riqueza e à importância estratégica do país. Desgraçadamente para os angolanos, essa riqueza e essa importância só lhes garantiram, até hoje, o título de viverem no país que tem «a pior» guerra do Mundo.

O empresário que esteve no Alvor e decidiu ser angolano

Em 1975, António Cardoso e Cunha era empresário em Angola e presidente da Associação Comercial da Huíla. Chegara ao território havia dez anos e não esconde que, antes do 25 de Abril, partilhara com outros sectores da «burguesia colonial» um «desconforto crescente» em relação à política ultramarina. Apanhado pela revolução, a emergência dos partidos armados angolanos, a transição para a independência, Cardoso e Cunha decidiu permanecer em Angola. Em Janeiro de 1975 fez parte da delegação dos interesses angolanos que participou na Cimeira do Alvor. E embora admitisse que o Acordo excluía sectores importantes e representativos da sociedade angolana, regressou a Angola com o propósito de assumir a sua nova nacionalidade. Ficou até entender que não era de todo possível desenvolver as suas actividades empresariais no novo país de língua portuguesa.

 Diário EconómicoOs empresários em Angola, na época colonial, os «brancos» digamos assim, alimentavam planos de separação em relação a Portugal?
 Cardoso e Cunha – Quando cheguei e Angola a guerra tinha começado pouco antes. Todas as actividades industriais só eram autorizadas se não concorressem com as actividades metropolitanas. Tinham acabado pouco antes as «cartas de chamada». Isto é, qualquer pessoa que emigrasse para Angola tinha que ter alguém que se responsabilizasse por ela, pelo seu retorno, pelas suas dívidas. Com o início da guerra e a ida dos militares, a «burguesia colonial», que eu distingo da «burguesia colonialista», percebeu que Angola era mais importante do que parecia. E a forma de expressão que encontrou foram as associações empresariais que passaram a ser núcleos de pensamento – não direi independentistas – mas de um certo desconforto relativamente à política colonial. Eram vistas com grande reserva pelas autoridades de Lisboa, tinham «guerras» frequentes com o ministro do Ultramar.
Depois, mesmo de Lisboa chegaram alguns novos lampejos. O general Venâncio Deslandes, que agarrou no programa dos estudos gerais e das universidades, como forma de dar oportunidades às pessoas locais. Depois o ministro Adriano Moreira, um homem do sistema mas que fez coisas que desagradaram a Lisboa. Por fim o engenheiro Santos e Castro, um homem da confiança de Marcelo Caetano, que chegou a Angola, aproximou-se das associações empresariais, entusiasmou-se. Há até boatos, que não consigo confirmar, que estaria envolvido em algum pensamento mais operacional de separação.


DE – E como é que todo esse ambiente reagiu ao 25 de Abril?
 CC – Na altura eu era presidente da Associação Comercial da Huíla. Falei com homólogos meus, reunimo-nos, e acompanhámos toda a série de acontecimentos tumultuosos que se passaram: manifestações, aparecimento de novos partidos, muito oportunismo. O general Costa Gomes foi a Angola serenar os ânimos. Depois foi nomeado governador o general Silvino Silvério Marques, que já lá tinha estado e tomara algumas iniciativas a favor dos africanos que o levaram então a ser considerado, pelos sectores mais reacionários, como um tipo perigosíssimo. E depois foi nomeado o almirante Rosa Coutinho, um homem inteligente e activo que tentou inicialmente ser algo moderado. Convocou as associações económicas para uma reunião e fez-lhes um discurso tranquilizador. Mas depois desenvolveu uma política de valorização dos movimentos de libertação que na altura eram muito pouco visíveis. A situação militar em Angola era relativamente tranquila.
DE – E como é que o poder em Lisboa foi reagindo a essa situação?
CC – O general Spínola sentia-se ultrapassado e convocou para Lisboa uma reunião de representantes de associações empresariais. Quem fez a lista foi o general Firmino Miguel. Mas em Lisboa apanhámos com o 28 de Setembro, a «Maioria Silenciosa», as barricadas e a renúncia de Spínola.

Alvor

DE – Mas os representantes das associações empresariais voltaram a ser convocados, dessa vez para a Cimeira do Alvor…
CC – O almirante Rosa Coutinho, quando se preparava a Cimeira, resolveu também convidar uma delegação de empresários. Falando bem e depressa, tratava-se de assegurar a representação dos brancos. Fomos convocados para o aeroporto de Luanda, onde estivemos um dia inteiro à espera, com a delegação do MPLA. Mas faltavam os chefes da FNLA e da UNITA. No dia seguinte partimos para Lusaka, onde entrou o Savimbi. O Holden Roberto acabou por vir directo para Faro num avião do Mobutu. Provavelmente aquele avião que ainda aí está no aeroporto de Faro.
         DE – E participaram na Cimeira?


CC – Só fomos chamados para a sessão de encerramento, onde participámos numa discussão relativamente acesa sobre a data da independência. Não havia capacidade de tratar de coisas essenciais e então discutia-se o acessório. Foi fixado o dia 11 de Novembro e discutiu-se se era uma data boa ou má tendo em conta a colheita do café, se se perdia ou não a colheita. Como se uma colheita de café estivesse em causa perante as questões que ali estavam em discussão. Angola era a terceira produtora mundial de café, produzia 280 mil toneladas por ano. Agora são 5 mil…
DE – A Cimeira decidiu a composição do Governo de Transição, quadripartido entre Portugal, a FNLA, o MPLA e a UNITA. Esse governo funcionava?
CC – Era uma composição completamente artificial. E quase logo a seguir começaram os incidentes militares entre os movimentos que foram subindo de tom e chegaram aos bombardeamentos com peças de artilharia em plena cidade de Luanda. Depois, com a vitória militar do MPLA em Luanda, os outros partidos foram escorraçados do Governo e o país ficou praticamente comandado pelo MPLA.
DE – Ainda fez parte de um denominada «quarta força», a Frente de Unidade Angolana. Quais eram os objectivos?
CC – A ideia partiu do Fernando Falcão, que era o presidente da Associação Comercial do Lobito e de todos nós a pessoa politicamente mais motivada, um antigo oposicionista conhecido e respeitado. Assumíamos claramente que não éramos contra a criação de uma nação angolana. Mas também queríamos participar, não ficar à margem do processo, não deixar aos movimentos de libertação o monopólio da discussão política. A FUA teve uma vida efémera, atacada por todos os lados, particularmente pelo MPLA.

A Invasão

DE – E, entretanto, como iam os seus negócios, as suas actividades?
CC – Eu continuava em Sá da Bandeira a gerir as minhas actividades. As únicas precauções que tinha tomado era instalar postos de rádio em todas as minhas empresas e filiais. Todas as manhãs, no meu escritório, falava com elas por essa rede privada de comunicações. Um dia, chamo Luanda, Lobito, Benguela e quando chamo as fazendas de gado, na fronteira sul, o homem que me atende respondia-me coisas sem nexo. ‘Senhor engenheiro, aqui está muito vento! As folhas caíram todas!’ Era a invasão sul-africana, um exército que entrou em Angola através da minha fazenda junto ao rio Cunene. Dois dias depois, assisti à entrada da coluna militar em Sá da Bandeira. Eram só brancos, que foram acampar na zona do aeroporto. Tive a noção que aquela já não era uma guerra de Angola, mas algo muito mais amplo.
DE – E quem ficou a governar a cidade?
CC – Depois chegaram as camionetas com as tropas da UNITA e os sul-africanos entregaram-lhes a cidade. Eu tinha tomado a decisão de ficar, de assumir a nacionalidade angolana. E tomei a iniciativa, juntamente com o bispo de Sá da Bandeira, D. Eurico Dias Nogueira, de falar com os novos poderes. Mas não havia qualquer espécie de organização.
De repente, ficámos sem bancos, sem transportes, o porto de Moçâmedes fechou, e eu tinha algumas indústrias que não viviam sem abastecimentos. A curto prazo as coisas iriam parando, umas atrás das outras, ao mesmo tempo que ia perdendo colaboradores. Mas fui aguentando, sem saber muito bem o que ia acontecer.
DE – Aguentando, como?
CC – Por exemplo, a minha fábrica de cerveja só tinha malte para duas semanas e não tinha cápsulas para as garrafas. O governador da UNITA, com quem fui falar, só me disse que a fábrica não podia parar, eu que me desenrascasse. Como não tinha cápsulas, chegou a sugerir que pusesse as pessoas a apanhar caricas e a endireitá-las com um martelo. Mas autorizaram-se a levar vários camiões de café para a África do Sul que troquei por produtos necessários para que a fábrica funcionasse.


DE – Os sul-africanos não levantaram problemas?
CC – A África do Sul nem sequer reconhecia que tinha tropas em Angola. E uma empresa sul-africana a que eu estava associado disse-me a dada altura que era necessária uma autorização do governo. Fui a Joanesburgo, e depois a Pretória, tive uma reunião no Ministério da Defesa, onde fui submetido a um verdadeiro interrogatório. E onde me apercebi que quem comandava de facto a invasão nem sequer eram os sul-africanos, mas os americanos. Foi a ideia com que fiquei. Comandavam a invasão pelo sul, ao mesmo tempo que dirigiam a ofensiva pelo norte, a partir do Zaire.
DE – E ainda estava no sul de Angola quando lá chegaram os cubanos?
CC – Os cubanos, vindos da Lunda, tentaram apanhar os sul-africanos pela rectaguarda, Mas eles perceberam a manobra e deixaram rapidamente Sá da Bandeira. Os cubanos tomaram a cidade e o MPLA assumiu o governo. Foi nessa altura que me capacitei que o que se estava a passar era um problema da guerra fria, e que eu era um mero peão no meio daquilo tudo. Ainda lá me mantive até meados de 76, mas acabei por deixar a casa, com as fotografias em cima dos móveis.
DE – Actualmente [ano 2000] tem negócios em Moçambique e na Guiné-Bissau. Então e Angola?
CC – É Impossível. São muito meus amigos, mas não é possível. A minha vida foi fazer agricultura, fábricas, pescas, e esse tipo de coisas hoje não é possível. A minha última proposta em Angola foi por altura das eleições, em 92. Fui lá e entreguei uma proposta escrita ao presidente José Eduardo dos Santos e ao Savimbi. Um deles ia ser presidente e eu propunha construir uma fundação, de direito angolano, à qual o Estado, que teria gestão paritária, entregava o meu património. Eu geria esse património com uma cláusula nos estatutos: a fundação ficava proibida de transferir qualquer resultado para fora  de Angola. Todo o dinheiro que fizesse teria que ser reinvestido em Angola. Não obtive resposta.
DE – Considera que Angola se tornou ingovernável?
CC – Não há estradas, não há comunicações, não há registo civil, não há notários, não há conservatórias, ninguém sabe a quem pertencem as terras… Vai ser governável. Mas vai levar muito tempo. 

João Paulo Guerra, Diário Económico, Janeiro de 2000

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