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quarta-feira, 6 de julho de 2016

Mário Alberto: Cenas e cenários

Políticos e politólogos, lídePolíticos de carreira ou de ocasião, fautores e fautrizes de opinião e equiparados, jornalistas e afins, toda a gente faz cenários
Cenógrafo de profissão, o melhor na sua arte, Mário Alberto retribui.

Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 15 de Março de 2001
Fotos de João Paulo Dias

Este homem é um Senhor. Em tempos foi operário cerâmico, empregado de escritório, recauchutador, figurante, bailarino excêntrico, músico gestual. Mas na sua profissão, cenógrafo, e na paixão da sua vida, o teatro, este homem é mesmo um grande senhor. Prémio de cenografia da Casa da Imprensa, em 1971, homenageado pelo Festival de Almada, em 90, Prémio de Cenografia da Associação de Críticos em 1994/95, os prémios dizem menos que a obra que ergueu em cinquenta anos de trabalho para dezenas de grandes e pequenas companhias de teatro, em todo o país. Dos grupos universitários ao teatro de revista, passando por grupos independentes e pelo teatro comercial, até trabalhou, uma vez, para o Teatro Nacional.


Para além do teatro fez cenografia para ópera, décors, figurinos e direcção artística para televisão e cinema. Mas é do teatro que mais gosta. «A gente está ali a viver aquilo tudo. O teatro até tem cheiro». Trabalhou com todos os grandes nomes do teatro português, sobre textos de todos os grandes dramaturgos. Regularmente expõe a sua pintura.
Nascido há 75 anos em Sá da Bandeira (Lubango), em Angola, Mário Alberto veio para Portugal aos quatro anos e travou conhecimento com o teatro em Coimbra. «Frequentava a escola industrial e trabalhava numa fábrica de cerâmica quando vi as primeiras peças do TEUC, encenadas por Paulo Quintela e Deniz Jacinto. Apaixonei-me pelo teatro», conta Mário Alberto. E a paixão consumou-se na primeira oportunidade. «Foi quando um barbeiro de Coimbra fundou um grupo infantil. Eu pintava cartazes e tabuletas e, com uma rolha de cortiça queimada, fazia os bigodes aos actores». Quando, ainda na juventude, veio para Lisboa, trazia já experiência das peças de teatro de cordel exibidas pela trupe em Coimbra e arredores.
Em Lisboa, empregou-se a recauchutar pneus no Largo do Andaluz e à noite fazia figuração no Teatro Avenida. Depois passou para empregado de escritório numa companhia de navegação na Rua do Alecrim. Até ao dia em que o director da companhia, por mero acaso, assistiu a um espectáculo de teatro e deparou com o seu dactilógrafo em cima das tábuas do palco. «No dia seguinte chamou-me e disse-me: Tem que escolher: ou esta companhia, que é uma companhia séria, ou os fantoches». Mário Alberto não hesitou. «Fui para os fantoches».
Nessa época, anos 40/50, o teatro tinha má fama e o proveito também não era lá grande coisa. As dificuldades e incertezas da carreira, a par de um espírito boémio e andarilho, levaram Mário Alberto a outras incursões. «Fui bailarino cómico, na Turquia. Dançava com o Humberto Cruz, bailarino mesmo, uma espécie de Pauliteiros, que apresentávamos como dança popular portuguesa». Também passou pela música. «Fui contrabaixista do Velez de Lima e o seu Conjunto de Ritmos Tropicais. Mas como tocava muito mal, deixava as cordas muito largas para não se ouvir o som. E tocava maracas, mas sem nada lá dentro. Era um músico gestual». Também lavou pratos e foi empregado de bar na Holanda e em França. «Há gente que fez o mesmo mas, quando voltou, disse que esteve lá fora a estudar teatro, literatura ou expressão corporal».  
Por entre figurações no teatro e no cinema, Mário Alberto descobriu por essa altura que a sua verdadeira vocação nos fantoches era a cenografia. «Comecei como ajudante dos irmãos Martins, Hernâni e Rui, a lavar pincéis». Por Lisboa, com destino a S. Carlos, passavam então grandes cenógrafos italianos que faziam escola. «Aparelhavam-se os panos e pintavam-se os cenários de pé, com pincéis de cabo alto. Era essa a escola italiana». Eram os tempos dos cenários de papel e pano pintado. Hoje, os jovens formados em cenografia «sabem fazer maquetes mas não as sabem reproduzir. É um trabalho muito duro». Também por esse motivo, «a construção da cenografia é mais volumétrica, à base do desenho de luzes». Mas é a pobreza de recursos que leva grande parte dos grupos independentes a dispensarem o cenário e o cenógrafo. «Os cenógrafos viviam bem quando havia teatro de revista, faziam figurinos, maquetes e executavam os cenários». Mário Alberto pertence à última geração desses cenógrafos. Convidado para fazer a cenografia da próxima revista no Teatro Maria Victória, Mário Alberto convidou por sua vez os parceiros da sua geração artística para ilustrarem no palco as suas concepções de figurinos, maquetes e cenários.
Mário Alberto é o último resistente do Parque Mayer mas não tem saudades da época de ouro da revista, porque esse era o tempo em que a Censura, para além dos textos, também vigiava e cortava os cenários. «Uma vez, tinhamos uma empresa que fornecia adereços de pele para os figurinos e, como permuta, reproduzíamos a fachada da loja no cenário. A empresa era a Estrela ML e a Censura cortou o cenário por considerar que ML era marxismo-leninismo e a estrela fazia parte da emblemática da foice e do martelo».
E a mesma Censura que cortava as notícias sobre os ballet-rose do regime revelava-se puritana em relação ao corpo. «Era frequente, no guarda-roupa, ter que acrescentar uns folhos para alargar o soutien ou tapar o umbigo». De 25 para 26 de Abril de 1974, a revista com cenários e figurinos de Mário Alberto em cena no ABC acrescentou uma «Parra Nova» ao título de «Tudo a Nu». Nesses tempos, Mário Alberto participou na ocupação do Sindicato, na fundação de companhias como o Adóque e A Barraca. «E fui eu quem pintou a faixa de pano para a fachada da primeira sede do PCP. Tenho muito orgulho nisso».

Cenários 
Cidadão particular e livre, conhecido em Lisboa inteira pelo seu humor e irreverência, Mário Alberto desconfia do poder. Os governos em geral são maus e o pior de todos é sempre o último. «Nunca vi o Guterres num espectáculo. Será que ele leu algum livro de poesia? Penso que só deve ter lido o Breviário», diz com ironia. Para o actual primeiro-ministro, Mário Alberto desenharia assim um cenário em tons de roxo e preto, «tipo semana-santa». Em relação à oposição, o cenário não é mais benevolente. Para Durão Barroso, o cenógrafo não vê nada de melhor que «um campo de cebolas» e para Paulo Portas sugere uma barbearia. «O Portas precisa de mudar de penteado. Ou uma crista à punk ou três cabeleiras, como Almeida Garrett, para usar conforme as circunstâncias». Quanto a Carlos Carvalhas colocava-o num «trigal, cheio de papoilas», cenário adequado à «falta de agressividade» do líder comunista. Para Alberto João Jardim, o cenário idealizado por Mário Alberto seria o de «uma ilha a afundar-se e ele, lá no alto, a dizer disparates».
Seguindo uma moda corrente, Mário Alberto considera que na sociedade portuguesa estão formadas diversas parcerias naturais de «Acorrentados». Numa delas juntaria «o padre Melícias, D. Duarte, José Hermano Saraiva e Artur Albarran, acorrentados a Teresa Guilherme». Numa outra reuniria todo o Conselho de Ministros, acorrentado a Lili Caneças no cenário de uma ponte maquinável. «Há uma semana, ainda abriria uma excepção para Ferro Rodrigues. Mas agora que ele quer o Guterres como Presidente da República, também deve ter, como os outros, a ponte que merece».  
Nenhum destes cenários se compara, porém, ao que Mário consideraria o projecto da sua vida. «Pintar o Cristo Rei - o Zorba de Almada, como lhe chamou o O’Neill - às riscas horizontais, ao som do hino da Maria da Fonte, com o Luiz Pacheco, meu velho amigo e grande escritor vivo, vestido de cónego, a benzer o monumento com água do Tejo». Não estamos a falar de um grande disparate, quis saber o jornalista. «Um grande disparate é gastarmos milhões de contos para construir novos campos de futebol, quando os estádios que há estão vazios, num país que não tem dinheiro para escolas e hospitais. Tenho dito».

Ementa 

Mário Alberto aceitou o convite do Diário Económico para almoçar e sugeriu como cenário para o almoço La Brasserie de l’Entrecôte, na Rua do Alecrim, em Lisboa. O prato é único, entrecôte de boi, por estes dias uma opção de risco, e a escolha limita-se ao mal ou bem passado. O molho é óptimo e não esconde a boa qualidade da carne. Para beber, optámos por Quinta das Cerejeiras Reserva, um tinto com história da região de Óbidos. 
A meio do almoço, o Mário perguntou: "Ó João, o convite dá para mandar vir outra garrafuncha?" Resposta: "Ó Mário, por quem é". 
Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 15 de Março de 2001
Fotos de João Paulo Dias


Homenagem da CML ao cenógrafo Mário Alberto; 
Teatro Nacional D. Maria II, 
28 de Janeiro de 2008; atribuição ao cenógrafo Mário Alberto, pelo presidente da Câmara de Lisboa, da Medalha de Mérito Cultural.

Elogio do homenageado Mário Alberto, Por João Paulo Guerra

Mário Alberto. Há palavras para definir e representar este Homem.
Generoso, liberal, franco, apaixonado, sensível, desprendido, independente, verdadeiro, seguro, leal, sincero, autêntico, vernáculo, afectuoso, fraternal, solidário, recíproco, solícito, propenso, especial, particular, colectivo, comovido, comovente, integral, imprescindível. Porreiríssimo.
Inquieto, alvoroçado, travesso, exigente, insatisfeito, satisfeito, tolerante, franco, entusiasta, fervente, convicto, arrebatado, impulsivo, romântico, feliz, fascinante. Malandro.
Prodigioso, mágico, fantasista, inventor, inventivo, imaginativo, fantasiador, sonhador, engenhoso, inovador, criador, gerador, fecundo, sábio, lúcido, trabalhador, admirável, bom, melhor, óptimo, superlativo, absoluto, simples, substancial, sólido. E líquido.
Viajante, andarilho, andante, passageiro, aventureiro, conquistador, diurno, noctívago, sedutor, boémio, conversador, comunicador, vivente, sobrevivente, camarada, Constituinte. Amador.
Militante, praticante, interveniente, cúmplice, cooperante, renovador, resistente, revoltado, insubmisso, rebelde, indomável, guerrilheiro, lutador, libertário, livre, disponível, espontâneo, inconformista, visionário, sonhador, utopista, subversivo, revolucionário. Irreversível.
Irreverente, excessivo, desmedido, exorbitante, transgressor, irrequieto, turbulento, buliçoso, bebedor, comedor, pecador, descarado, provocador, frontal, crítico, agitador, polémico, irónico, sarcástico, satírico, zombeteiro, certeiro, gozador, impertinente, intenso, implacável, demolidor, incorrigível, reincidente, consequente, fulgurante, surpreendente, magnífico, exuberante. Festivo.
Inconfundível. Exclusivo. Excelente. Único. Amigo. Imenso Amigo.

Lisboa, Teatro Nacional, 28 de Janeiro de 2008, atribuição ao cenógrafo Mário Alberto, pelo presidente da Câmara de Lisboa, da Medalha de Mérito Cultural

3 comentários:

José Barros disse...

Não o conheci pessoalmente, mas devia ser, pela entrevista, tudo o que disseste..."substancial, sólido. E líquido."
Grande entrevista como sempre.
Grande Abraço João.

Anónimo disse...

Bem hajas por nos trazeres de volta o Mário Alberto, mesmo se só por breves momentos, grande boémio do Parque Mayer, artista e escritor libertário, político vermelho por dentro e por fora.
Abraço
António Melo

Paulo Afonso Navarro disse...

Conheci muito bem o Mário. Cheguei a colaborar como seu assistente numa peça no São Luís. Foram os momentos mais engaçados da minha vida. Era um ser fascinante, cheio de histórias que nunca mais acabavam e quando estavam prestes a acabar tinham o dom de as reinventar. Temos todos muitas saudades do Ti Mário e sobretudo das pessoa como ele. Parece que de repente se eclipsaram todos...