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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Siza Vieira: «O SAAL mexeu com o Plano Director e por isso tornou-se perigoso»

Bairro da Bouça, SAAL, Porto
Álvaro Siza Vieira 
entrevistado por João Paulo Guerra,
o diário, 13 de Abril de 1981

         Álvaro Siza Vieira, português, arquitecto, 48 anos de idade [em 1981], é considerado lá fora como «um dos dez arquitectos mundiais da sua geração capazes de transformar a arquitectura numa forma de expressão autêntica», como «um homem acima da moda», cuja obra «não se situa em nenhuma das correntes contemporâneas».
         «Os arquitectos não inventam coisa alguma. Transformam de acordo com as circunstâncias», diz, à conversa com “o diário”, este homem socialmente preocupado e politicamente empenhado na transformação da cidade e que considera a intervenção popular como a base justa e sólida dessa transformação.


         Para Siza Vieira, o 25 de Abril teve e tem um significado social e político e repercussões de enorme importância mesmo no plano da realização profissional. Tratou-se, por um lado, da oportunidade de «trabalhar na cidade». Por outro lado, o desenvolvimento impetuoso, na cidade do Porto, da intervenção das organizações de moradores tornou possível «projectar e realizar através da discussão colectiva».
Malagueira, Évora
            Siza Vieira: «Desde 1976, os trabalhos nas zonas degradadas da cidade do Porto estão praticamente interrompidos. Mas ficou esse hábito, esse método de discutir os projectos».
         - o diário – Um hábito ou um método?
         - Siza Vieira – Um método. Claro que antes também discutíamos com o cliente que encomendava uma obra. O que se passou de novo foi isto ser posto à disposição das populações.
         A intervenção dos moradores nas zonas degradadas para a transformação da cidade do Porto centrou-se em três reivindicações essenciais: a exigência da abolição dos regulamentos fascistas dos bairros camarários, a melhoria das condições de vida e, sobretudo, diz Álvaro Siza Vieira, «a exigência de permanecer no sítio onde viviam».
         Mas «o sítio onde viviam», o antigo centro citadino, é a zona das ilhas, a mais degradada da cidade. As primeiras reivindicações disseram respeito à realização de obras nas casas e à instalação de equipamentos. Depois, «as pessoas pronunciaram-se sobre a sua maneira de viver, indo até ao plano do gosto, isto é, reivindicando qualidade».
         É isto, para Álvaro Siza Vieira, o essencial do direito à habitação: «o direito à cidade, a intervir na transformação da cidade».
         Às organizações de moradores e à sua intervenção na cidade do Porto esteve ligado, desde o seu arranque, o projecto SAAL. Siza, que trabalhou intensamente nesse projecto de transformação da vida colectiva, apresentou o SAAL em diversos países da Europa. Em Itália, por exemplo, onde todas «as escolas de arquitectura organizaram exposições das realizações do SAAL e promoveram debates com a participação de arquitectos portugueses. «O interesse maior – diz-nos – estava na experiência de participação das populações nos protectos».
Pavilhão de Portugal, Expo 98, Lisboa
         O SAAL teve no Porto uma vida curta. «Mexeu com o Plano Director e por isso tornou-se perigoso», esclarece. Em Lisboa, alguns projectos tiveram seguimento. No sul, há programas que estão a ser desenvolvidos. Álvaro Siza tem trabalhado nos últimos anos com a Câmara de Évora. Conhece de perto, por dento, essa «experiência riquíssima de poder local democrático», de procura pela autarquia de «todas as formas de acesso á casa». Em Évora, onde trabalha no projecto da Malagueira, de construção de 1.200 fogos na zona Oeste da cidade, diz haver a oportunidade, apesar de todas as dificuldades, de projectar e realizar «a habitação social da qual não estejam alheias as preocupações de qualidade».

         A casa portuguesa
         Da habitação social ficou uma imagem que o fascismo tentou impor como modelo para todo o país, propagandeada nas canções ligeiras e associada às virtudes da modéstia, do recato, da pobreza lavadinha.
         - o diário – O que era a casa portuguesa, com certeza?
         - Siza Vieira – Era a casa pequenina, modesta, contida, porta pequenina, telhadinhos, janelinhas, tudo próprio de quem não vai para a rua fazer manifestações.
         Para Siza Vieira há, também na arquitectura, «um código que serve os regimes e que projecta a sua ideologia». A «casa portuguesa» resultou de uma tendência regionalista, utilizada num sentido obscurantista. Estava para o fascismo português, como as grandes praças e alamedas estavam para os desfiles e paradas militares do nazismo alemão.
À casa portuguesa, contestando-a, contrapôs Siza Vieira, em 1958, com o projecto do restaurante e casa de chá Boa Nova, em Leça da Palmeira, uma tentativa de encontrar uma arquitectura adequada à realidade e aos problemas portugueses.
- o diário – As casas dos emigrantes no norte são a «casa portuguesa» de hoje?
- Siza Vieira – Aí o que me impressiona não é tanto a linguagem arquitectónica mas o uso indevido do espaço, a construção selvagem em terrenos de cultura, fora de quaisquer cuidados de planeamento.
Edifício da água, Huaian, China
- o diário – E a defesa do património? Fala-se muito. Até há cartazes oficiais e e tudo…
- Álvaro Siza – A defesa do património, como o regionalismo ou mesmo a participação, são impulsos criativos que podem no entanto ser recuperados e transformados em conformismo. A defesa do património não pode ser estática. Não se trata de conservar o passado, mas de compreender e respeitar a linguagem de outras épocas, correspondendo às necessidades, às exigências da nossa época.
Isto porque, por um lado, Álvaro Siza Vieira considera que um monumento se relaciona com o ambiente que o rodeia e, por outro, «é essencial recuperar as condições de habitação dos cidadãos», respondendo «com qualidade, à qualidade das zonas históricas».
É de Álvaro Siza, arquitecto, o projecto para um edifício de escritórios na Avenida da Ponte, Porto, 1969: grandes paredes de vidro, espelhadas, refletindo e dando continuidade aos monumentos circundantes.

Um novo Plano Director
A herança do fascismo manteve-se, em larga medida, na realidade das cidades, como da cidade do Porto. A realidade municipal volta hoje a ser marcada pelas práticas da especulação, pela acentuação da divisão social da cidade. O desprezo, por parte do executivo camarário, em relação à participação activa dos moradores é a fonte da estagnação e do agravamento das muitas precárias condições de vida da população.
Siza Vieira, Porto, Abril 1981
Segundo Álvaro Siza Vieira, está em elaboração um novo Plano Director da Cidade do Porto, destinado a substituir o de 1962. Mas, antes do mais, os planos podem ficar-se apenas pelo papel, ou permitirem tudo, até o desrespeito por si próprios, desde que não estejam muito ligados ao quotidiano da população.
O que é, seguramente, o caso.
- Siza Vieira – Não há qualquer participação na elaboração do novo Plano Director. A Câmara Municipal dispunha de uma base justa, sólida e criativa para a transformação da cidade, na força organizada da população. Ignorando essa base real, viva, fica logo a suspeição em relação aos resultados.
- o diário – Parece que voltámos ao ponto de partida?
- Álvaro Siza Vieira – Voltamos sempre.

João Paulo Guerra, o diário, 13 de Abril de 1981

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