26 de Fevereiro de 1981
A
recente realização de quatro importantes exposições integradas nas comemorações
do bicentenário da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) veio
permitir o acesso a parte do riquíssimo património artístico e cultural da
Escola. Oportunidade única, já que nem mesmo para efeitos pedagógicos a ESBAP
tem condições para organizar a mostra do acervo de que é depositária.
As colecções da ESBAP, nomeadamente de desenho e
gravura da Renascença italiana, são das mais completas e ricas da Europa. Um
património de valor incalculável, ou pelo menos incalculado, uma vez que, como
revelou a “o diário” o presidente do Conselho Directivo, professor Júlio
Resende, «nunca houve condições para fazer na sua totalidade o inventário do
património». A ESBAP comemorou agora 200 anos, mas só por volta de 1950 se fez
um primeiro e muito incompleto inventário.
Entretanto, milhares de obras de arte – da gravura ao
desenho, da pintura à escultura – jazem no sótão do edifício de São Lázaro,
arredadas da sua função cultural e social, ameaçadas de deterioração e
destruição, mal precavidas contra a humidade ou o perigo de um incêndio.
«A Escola tem a consciência de que é responsável por um
património valiosíssimo e sente mágoa por este espólio não estar em condições
totalmente a coberto de prejuízos – afirmou-nos o pintor Júlio Resende. E o
presidente do Conselho Directivo da ESBAP acrescentou: «Muito nos incomoda
também ter este património fechado, quando estas colecções, pelo seu alto interesse,
deveriam estar abertas ao público».
«Não temos meios nem estruturas», afirma por seu lado o
professor José Coelho dos Santos, membro do Conselho Directivo e encarregado do
curso de História de Arte, em resposta à questão da ESBAP não tomar a iniciativa
de proceder ao inventário do espólio artístico e à sua divulgação.
Na falta de uma resolução para o problema, a ESBAP tem
procurado compensações de solução. Alimentou-se o projecto de acrescentar um
novo espaço, a construir nos jardins, o que permitiria o aceso às colecções sem
perturbar o funcionamento da Escola; pensou-se num terreno situado em frente da
Escola, anexo à Biblioteca Municipal; encarou-se a realização de exposições
temporárias, periódicas, com carácter temático. Mas «a falta de meios e
de estruturas» também se faz sentir para todas estas saídas. Para realizar as
exposições do bicentenário, a ESBAP teve que ocupar um espaço onde funcionam
habitualmente aulas do curso de arquitectura.
Quando da sua recente visita ao Porto e após uma breve
passagem pela ESBAP, o secretário de Estado da Cultura, interrogado por “o
diário”, aventou a hipótese da transferência de parte das colecções da Escola,
particularmente dos desenhos italianos do século XVI, para o Museu Soares dos
Reis. Mas a Escola tem um entendimento bem diverso, pois preza prioritariamente
a função didáctica e pedagógica das suas colecções, o que implica o acesso
imediato dos alunos.

Da
Vinci no banco
Aqui há anos, um perito inglês que estudou parte do espólio
artístico da ESBAP, atribuiu um dos desenhos do inestimável património a
Leonardo Da Vinci. Está depositado num banco do Porto e foi exposto
recentemente com outros desenhos italianos atribuídos a Miguel Ângelo, Raphael,
Veronese, Vasari, Tiepolo, Andrea del Sartho.
No catálogo de uma anterior exposição de desenhos italianos
explicava-se como tão valioso património se tornou propriedade da Escola. Rezam
velhos documentos que, não raras vezes, um ou outro “pensionista” – assim se
designava então todo aquele que, pelo seu mérito, adquirira o direito a
frequentar oficinas de mestres estrangeiros – terminados os seus estudos e de
regresso á Pátria trazia na bagagem desenhos que «adquirira ao
desbarato», pelas paragens onde andara. Sendo que ao tempo e para uma melhor
formação todos os caminhos conduziam a Roma centenas e centenas de artistas e
estudantes de todo o mundo. Desenhos andavam de mão em mão, comprados e recomprados,
vendidos e revendidos. «E assim se foi amontoando um património de valores
didáctico e intrínseco, este por ora incalculável», podia ler-se no catálogo.
Mas, para além dos desenhos e gravuras da Renascença
italiana, muitas outras obras integram o espólio da ESBAP. Basta dizer que
pertencem à Escola todas as obras que, ao longo de muitas gerações,
constituíram as provas dos concursos para professores. As exposições do
bicentenário mostraram assim obras de Soares dos Reis, Henrique Posão, Augusto
Gomes, Júlio Resende, Jorge Pinheiro, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e muitos
outros.
Em
relação a muitas obras arrecadadas é difícil atribuir-lhes autoria. Muitas
outras apresentam-se já danificadas, irrecuperáveis, algumas delas. Gerações
inteiras passam pela Escola sem conhecer o seu património artístico.
A
ESBAP bate-se por uma solução que sirva pedagógica e didacticamente a Escola e
que, simultaneamente, lhe permita cumprir a sua função social. A ideia de
património implica necessariamente a sua divulgação. Amontoadas num velho
sótão, subtraídas à sua função social e cultural, as colecções da ESBAP só serão
património no sentido restrito da propriedade, porque fonte viva de estudo e de
beleza, é que não são.
João Paulo Guerra, o diário, 26 de Fevereiro de 1981
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