Por João Paulo Guerra,
«Há elementos em Itália, designadamente na
Comissão Parlamentar de que faço parte, que nos levam a concluir que em ilhas
atlânticas de Portugal, como de Espanha, elementos mafiosos procedem à lavagem
de dinheiro, nomeadamente através de atividades ligadas ao turismo», disse ao
Diário Económico o deputado Francesco Forgione, membro da Comissão Parlamentar Antimafia
da Assembleia Regional Siciliana. Posto perante a necessidade de tornar mais
precisa esta afirmação, uma vez que existem dois arquipélagos atlânticos de
Portugal, Açores e Madeira, o deputado italiano precisou que não se tratava dos
Açores.
Forgione esteve em Portugal para participar num
seminário sobre droga e lavagem de dinheiro. E os números sobre consumo e
tráfico de drogas em Portugal tiraram-lhe quaisquer dúvidas: «Onde está a
droga, ao nível desses números assustadores, estão sempre grandes organizações
mafiosas.
A passagem por Portugal do ‘capo’ da Mafia da Calábria, a
N’dranghetta, Emilio di Giovine, é outro dado que o deputado siciliano
considera do maior significado. «Um mafioso importante como Di Giovine não
esteve aqui por acaso. Não tenho dúvidas que a sua presença assinala uma
relação de negócios da N’dranghetta em Portugal, o estabelecimento de um
circuito de tráfico que atravessa Portugal e conduz à Europa.

Na entrevista ao Diário Económico, Francesco
Forgione traça o mapa do tesouro das mafias em Itália, na Europa e no Mundo, na
época da globalização da economia e das novíssimas tecnologias de informação.
Hoje [1998], segundo o FMI, os negócios mafiosos representam 2,1 por cento do
PIB mundial.
Primeira página do Diário Económico de 12 de Maio
de 1998, a entrevista segue nas páginas interiores
Deputado da Comissão
Antimafia:
«O euro vai favorecer
a circulação
e investimento de
capitais ilegais»

Em entrevista ao Diário Económico, o deputado da
Assembleia Regional da Sicília Francesco Forgione, eleito pelo Partido da
Refundação Comunista, traça o mapa da Itália, da Europa e do mundo após a
Operação Mãos Limpas. E Portugal, segundo diz, faz parte do mapa do tesouro das
Máfias.
Diário Económico – A Máfia só aparece nas primeiras páginas dos nossos
jornais quando há um crime sangrento, a prisão de um dirigente importante ou o
envolvimento de um nome sonante em processo judicial. No dia-a-dia, o que
significa conviver com o crime organizado?
Francesco Forgione – A Máfia tem duas grandes componentes: uma é a militar, a que chamamos
a Ala Militar da Máfia, e uma grande componente económico-empresarial. A força
da Máfia vem destes dois elementos e ainda do controlo do território,
conseguido através da intimidação. Quando a Máfia não comete crimes isso não
significa que não esteja forte. Pelo contrário. Quando a Mafia não exibe a sua atividade militar,
isso significa que nesse momento concentra a sua atividade sobre o terreno
económico e financeiro. Para nós conviver com a Mafia significa combater
estes dois aspetos. Evitar que a potência militar, os homicídios, a
intimidação, ameacem as instituições e o Estado e, ao mesmo tempo, combater as atividades
e os negócios ilegais da Mafia.
FF - Hoje
verifica-se um processo de internacionalização do crime. Com a abertura dos
mercados, com as novas tecnologias de telecomunicações, podem transferir-se
capitais de um lado para o outro lado do mundo sem qualquer controlo. Estamos
perante um processo de internacionalização do crime e de financiamento da atividade
criminosa. A globalização faz assim correr o risco de favorecer um processo
acelerado de acumulação de capitais de origem criminosa sem qualquer poder de
controlo por parte do Estado e por parte das organizações supranacionais. As
novas formas de telecomunicações tornam menos transparente as transferências de
capitais. E este é um problema importante e grave até porque estão aparecendo
na cena mundial novas organizações criminosas. Penso na Mafia turca, na Mafia
russa e na Mafia chinesa, que encontraram formas de convivência com as
organizações italianas, com o cartel colombiano e sul-americano do tráfico de
droga e com a Mafia americana. Sobretudo nos países de Leste estamos perante um
território que representa uma zona franca para todas as atividades ilegais,
criminosas e económicas. O Leste é um mercado sem regras. É um facto novo. Se
pensarmos no imenso potencial militar do ex-Pacto de Varsóvia e nos lembrarmos
que hoje alguns antigos chefes militares do ex-Pacto de Varsóvia dirigem
organizações criminosas, teremos a medida do gravíssimo problema que
enfrentamos. Esse imenso potencial bélico e nuclear está hoje nas mãos de
organizações criminosas que, através da 'Ndranghetta e da Cosa Nostra, colocam
no mercado esse potencial. No mercado e em cenários de guerra...
DE - Concretamente, onde?
FF - No Sul da
África, no Sul da América e em certos países do Médio Oriente onde se registam
conflitos regionais. A possibilidade de vender esses materiais nucleares
corresponde à possibilidade de os utilizar. A globalização abre os mercados e
favorece um novo circuito económico.
A Europa dos padrinhos

FF - A atividade e
a faturação das atividades criminosas no mundo é quantificada pelo FMI em 2,1%
do Produto Interno Bruto mundial. Na Europa esta cifra duplica. A faturação das
atividades criminosas europeias é de 4,2%. Praticamente é a soma das faturações
das cinco maiores sociedades económicas europeias. Isto quer dizer que uma
massa imensa de capitais ilegais entra anualmente nas economias legais. Isto
condiciona todo o tecido económico. E na Europa eu creio que temos dois
problemas. O primeiro é que os países da UE não chegaram ainda a uma definição
comum daquilo que é o crime organizado. Em Itália existe uma lei específica que
define as associações mafiosas. Creio que poderia ser o modelo para todos os
países europeus. A nível europeu, a primeira coisa a fazer seria definir um
direito mínimo internacional de combate às organizações criminosas, uma
legislação mínima europeia, com uma definição comum.
As atividades da Mafia vão-se todas unificando. A
droga, o tráfico de armas, a usura como nova forma de controlo da economia, a
reciclagem dos resíduos tóxicos e nucleares, o turismo, como forma privilegiada
de lavagem de dinheiro, o tráfico de obras de arte, a par das atividades
tradicionais, como o contrabando, a prostituição e algumas coisas menores. A
tudo isto há que acrescentar todo o sistema de lavagem de dinheiro. Na Europa
não há uma legislação que preveja a transparência económica das empresas e o controlo
das sociedades off-shore. Nos bancos usam-se cada vez mais as contas correntes
transitórias, que se abrem e fecham sem deixar rasto. As transferências de
capitais via fax e tudo o mais que as novas tecnologias permitem tornam
praticamente impossível combater a lavagem de dinheiro.
Os fundos europeus, dado o seu imenso volume,
despertam naturalmente um grande interesse das Mafias que têm formas de
organização e de atuação e ligações que lhes permitem chegar a esses fundos
antes dos seus legítimos destinatários. Seria necessário que a Europa adotasse
nova legislação anti-Mafia e para isso poderia servir de base a legislação
italiana.
DE - E não poderá haver um choque entre a legislação italiana e uma
legislação europeia?
FF - Creio que não
porque na União Europeia cresce a consciência da necessidade de adequar a
legislação. Se pensarmos o que é hoje a Alemanha neste domínio... A Alemanha,
que é o ponto de encontro das organizações criminosas italianas, russas, turcas
e chinesas, procura construir um tecido de legalidade. E a França, com toda a
sua área mediterrânica cheia de investimentos das organizações criminosas
italianas? A França não pode mais tolerar que toda a zona da Costa Azul a Montecarlo
seja um paraíso fiscal onde os mafiosos se estabelecem e a partir de onde
alargam as suas atividades. A França tem-se manifestado francamente preocupada
com tal situação.
DE - Agora, na perspetiva do euro, que irá mudar e em que sentido?
FF - O euro
pressupõe a unidade dos capitais e da sua circulação, o que favorecerá também a
circulação e o investimento dos capitais ilegais. Os países europeus, para além
do Tratado de Schengen e dos acordos policiais, devem adotar instrumentos para
a transparência do controlo de capitais, sabendo que os paraísos fiscais não
são mais as Caraíbas, a Costa Rica, o Panamá. Temos também paraísos fiscais no
coração da Europa. Porque a Suíça, o Liechtenstein, o Luxemburgo, algumas ilhas
espanholas e portuguesas são isso mesmo. E se a União Europeia favorece ao
nível económico o nascimento de áreas da Europa destinadas a serem zonas
francas, esse processo objetivamente favorecerá o investimento de capitais
criminosos.
A Mafia não tem ideologia
FF - Em Itália
falamos de Mafias, no plural. Essencialmente trata-se de quatro Mafias: A Cosa
Nostra, na Sicília, a Camorra, em Nápoles, na Campânia, a 'Ndranghetta, em
Reggio di Calabria, e uma nova Mafia, a Sacra Corona Unita, nascida na
fronteira com a Albânia, que se dedica particularmente ao tráfico de material
nuclear proveniente do ex-Pacto de Varsóvia. É uma Mafia particularmente
perigosa, jovem e muito forte.
DE - Em Itália, e na Sicília mais concretamente, em que ponto está o
combate anti-Mafia, passada a Operação Mãos Limpas?
FF - É uma
situação muito difícil. Graças à magistratura obtivemos muitos resultados,
foram capturados muitos mafiosos, muitos processos estão ainda em curso e
alguns deles muito importantes. Basta pensar no processo de Giullio Andreotti,
sete vezes presidente do Conselho, no processo contra quatro ministros de
governos italianos ou contra o número dois dos serviços secretos italianos. A
justiça chegou aos níveis mais elevados do poder e descobriu as ligações entre
a Mafia e as instituições. A Operação Mãos Limpas pôs em evidência o sistema de
corrupção entre a política, as empresas e as instituições.
Agora, o problema que se debate em Itália é
superar essa situação de emergência e estabelecer uma legislação normal de
combate à Mafia. Mas agora certas forças políticas – eu direi as forças
políticas de Direita - querem propor uma amnistia para os que foram abrangidos
por processos relativos ao financiamento dos partidos. E o debate no âmbito da
reforma constitucional centra-se no modo como a magistratura deve permanecer
como um organismo autónomo, independente do poder político. Sobre isto há um
contraste muito acentuado entre as diversas forças políticas. Aparentemente é
um contraste sobre o problema da justiça. Mas na base estão interesses
materiais e estão alguns processos em curso. Em Julho [1998] inicia-se o
julgamento do processo contra o ex-presidente do Conselho Sílvio Berlusconi. Um
dos dirigentes máximos das empresas de Berlusconi tem um processo em Palermo
por associação mafiosa. Em suma, o debate sobre a justiça está muito ligado a
interesses materiais de forças políticas que constituem uma expressão direta do
sistema de negócios e da economia da corrupção.
No Parlamento italiano há também uma proposta
para acabar com a colaboração dos «arrependidos». Atualmente há cerca de mil
detidos em regime de isolamento. Muitos deles seriam postos em liberdade se tal
proposta viesse a ser aprovada.
DE - O novo quadro político em Itália alterou o poder eleitoral da Mafia?
FF - A Mafia não
tem ideologia. A Mafia só tem como ideologia a riqueza, o lucro, a acumulação
rápida. E procura agora que se defina melhor o cenário político italiano por
forma a encontrar novos interlocutores. Digamos que a Mafia procura os
parceiros políticos que possam tornar-se-lhes úteis. Em palavras, todas as forças políticas são anti-Mafia. Mas alguns
partidos batem-se no Parlamento pela revogação de toda a legislação aprovada
após os assassínios de Falcone e Borsellino. E isto, de facto, representa um
pacto político. Porque se se revogar essa legislação, a Mafia reassume o seu
poder de condicionamento do território, muitos mafiosos sairão em liberdade e,
sobretudo, a magistratura perde o poder e os instrumentos para intervir
autonomamente no combate à Mafia.
Durante a sua estadia em Portugal, Forgione tomou
conhecimento de «números assustadores» sobre o consumo e o tráfico de droga. A
sua experiência leva-o a dizer que «onde está a droga, a esse nível, estão
necessariamente grandes organizações criminosas internacionais».
«Portugal - adianta Forgione - é uma grande porta
de acesso do Atlântico, autónoma, ao tráfico dos cartéis sul-americanos». Para
Forgione, como para a comissão parlamentar anti-Mafia de que faz parte, a
questão está em saber «se as organizações criminosas que operam em Portugal têm
ou não relações com a Mafia chinesa, através de Macau, outro paraíso fiscal,
para além das ligações com as organizações italianas».
Em Portugal foram já referenciadas atividades da
Cosa Nostra, como as 'famílias' de Cinisi e a Santa Maria de Gesú, e mais
recentemente da Mafia de Reggio Calábria, ligadas ao contrabando de cigarros,
ao tráfico de droga, de armas e à lavagem de dinheiro.
A prisão e o julgamento em Portugal, em Julho de
1995, de Emilio di Giovine, 'capo' da Mafia calabresa, é uma pista importante
para Francesco Forgione. «A 'Ndranghetta, atualmente, é mais forte que a Mafia
siciliana. A Cosa Nostra teve muitos arrependidos que colaboraram com a justiça
o que levou à destruição da sua componente militar», diz Forgione. O deputado
siciliano acrescenta que «a Mafia calabresa, por estar estruturada em bases
familiares, tornou mais difícil a colaboração com a justiça. Cada um que
colaborasse com a justiça teria que denunciar o pai ou um irmão. Assim a Mafia
calabresa não teve um processo de crise na sua estrutura, que se baseia na
'omertá', a conspiração do silêncio, e é muito forte».
Para Francesco Forgione, «um 'capofamiglia' tão
importante como Emilio di Giovine não esteve aqui por acaso». E o deputado não
tem dúvidas «que a sua presença no Algarve assinala o estabelecimento de uma
relação de negócios da 'Ndranghetta em Portugal, um circuito de tráfico que
conduz a Itália e à Europa em geral».
O Polvo

Hoje, diz
Francesco Forgione, «um 'capo' da Mafia é um homem elegante, com uma mala
diplomática onde transporta o computador, e todo um sistema sofisticado de
comunicações, ligado à Internet. Seguem-no três homens, armados, prontos a
defender o que o 'capo' transporta na mala: o sistema de negócios, circulação
de capitais, investimentos de um lado ao outro lado do mundo, e de relações com
a política e as instituições económicas e financeiras».
A força da Mafia
radica num país, a Itália, e dentro do país em toda a região do Sul. Os
tentáculos do Polvo estendem-se por todo o mundo. «Sem o controlo de um
território, das atividades económicas, financeiras, comerciais, políticas, não
haveria força contratual a nível internacional e mundial», diz Forgione,
acrescentando que «os pés estão em Itália. Mas o cérebro político e financeiro
viaja pelo mundo inteiro através da Internet».
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Na entrevista ao Diário Económico, o deputado
Francesco Forgione revela que após a Operação Mãos Limpas novos arranjos
políticos estão em preparação visando manter o poder da Mafia ou, melhor
dizendo, das Mafias.
Deputato
Francesco Forgione tem 38 anos [1998], é natural
de Catanzaro e foi jornalista profissional. Atualmente [1998] é deputado à
Assembleia Regional Siciliana, onde faz parte da Comissão Parlamentar Regional
Anti-Mafia. Eleito pelo Partido da Refundação Comunista, Forgione foi membro da
direção nacional do seu partido, e responsável pela Comissão de Luta contra a
Criminalidade.
A opção de Forgione marcou a sua vida numa terra
onde se convive em cada dia com o crime organizado. Vive e desloca-se sob proteção
policial, desde que à porta de sua casa, em Palermo, apareceu um boneco de
palha, com a reprodução da sua cara, enforcado.
Posteriormente a esta entrevista, dada em Lisboa,
em 1998, Francesco Forgione foi reeleito, em 2001 e 2006, deputado da
Assembleia Regional Siciliana. Posteriormente foi eleito para a Câmara de
Deputados do Parlamento Italiano, chegando a Presidente da Comissão de
Inquérito sobre o Fenómeno da Criminalidade Organizada e Similares. Em 2013 foi
candidato ao Senado da República pela Região da Sicília e Ligúria, na lista da Sinistra
Ecologia Libertà mas não foi eleito.
Francesco Forgione publicou:
“Oltre la Cupola - Massoneria, Mafia, Política”, 1994;
“Oltre la Cupola - Massoneria, Mafia, Política”, 1994;
“Amici come prima, storie di mafia
e politica nella seconda repubblica”, 2003;
“Ndrangheta. Boss luoghi e affari della mafia più potente al mondo”, 2008;
“Mafia export. Come 'ndrangheta, cosa nostra e camorra hanno colonizzato
il mondo” 2009;
“Porto franco,
politici, manager e spioni nella Repubblica della 'ndrangheta”, 2012.
Hotéis
negros
John le Carré, escritor inglês de nomeada, conta no seu livro “Our
kind of traitor”, publicado em Portugal pela Dom Quixote com o título “Um traidor
dos nossos”, o caso dos “hotéis negros” «na Turquia, em Creta, em Chipre, na
Madeira». O enredo do livro passa pela lavagem mundial de dinheiro sujo. E o
autor conta como funciona a tramóia dos “hotéis negros”:
«Compra um terreno privilegiado, normalmente à beira-mar (…)
Paga-o em dinheiro, constrói uma estância turística de luxo com um hotel de
cinco estrelas. Talvez vários. Em numerário. Depois põe lá uns cinquenta bangalós
de férias, se houver espaço. Equipa-os com o melhor mobiliário, talheres,
porcelanas e roupa de cama. A partir daí os seus hotéis e bangalós estão
lotados. Só que nunca ninguém os ocupa, percebe? Se alguma agência de viagens
telefonar: lamento, mas não temos vagas. Todos os meses uma carrinha de
segurança vai até ao banco e descarrega todo o dinheiro que foi apurado em
aluguer de quartos, de bangalós, nos restaurantes, nos casinos, nos clubes
noturnos e nos bares. Dentro de um par de anos, os seus empreendimentos estão em
perfeitas condições para serem vendidos com um brilhante registo de vendas.»
Claro que isto é ficção. Carré sisses!
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