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O país designa-se Côte d'Ivoire e a Constituição proíbe a tradução do nome |
Costa
do Marfim, pelo nosso enviado João Paulo Guerra
O
Diário, 23 Dezembro 1989
Um
crocodilo devora uma galinha em dois tempos rápidos: abocanha-a, tritura-a e
acabou-se a galinha. Ao terceiro tempo há apenas o bolo alimentar do crocodilo,
um paté de penas, carne, ossos, vísceras, amassado em cabidela.
O
número da refeição dos crocodilos, servido a meio da tarde, faz parte do cartaz
turístico de Yamoussoukro, capital administrativa da Costa do Marfim. A ementa
consta de galinhas vivas e o espectáculo consiste na luta desigual entre uma
dúzia de galinhas tontas e dezenas de vorazes e possantes sáurios. O número
termina em apoteose de cacarejos aflitos, esguichos de sangue e voltear de
penas. Os visitantes de Yamoussoukro veem e ouvem o espectáculo e depois,
eventualmente com pena das galinhas, vão recolher-se na Basílica de Nossa
Senhora da Paz, que se ergue na savana e capricha por ter uns centímetros mais
que a Basílica de S. Pedro.
O
espectáculo começa com a prestação do tratador dos crocodilos a cacarejar à
beira do canal que rodeia o perímetro do Palácio Presidencial em Yamoussoukro.
O tratador é um indivíduo alto e esquálido, andrajoso, desgrenhado e sinistro
que, por um qualquer estranho fenómeno de mimetismo, imita na perfeição o
cacarejar das galinhas e tem mãos e gestos tão fatais e decisivos como as
fauces dos crocodilos. Agarra meia dúzia de galinhas em cada mão, de cada vez,
e dali as galinhas já não saem, a não ser para o fosso dos crocodilos.
Os
crocodilos ouvem o cacarejar do tratador, lá no fundo das águas lodosas do
canal, e sobem pelas margens levantados sobre as patas curtas, arqueadas e
possantes. Depois, baixam a suspensão, assentam o bojo no chão, abrem as
bocarras e esperam pelo número que se segue no programa. O tratador aguarda que
todos os visitantes ocupem lugares de onde possam dominar a cena e começa então
a lançar as galinhas, duas ou três de cada vez, para fazer render o espectáculo.
As
galinhas são mais rápidas e ágeis que os crocodilos e voam. Baixinho, mas voam.
Porém, não têm saída. A emoção do espectáculo consiste em saber quanto tempo uma
galinha consegue escapar a um crocodilo, para ir acabar abocanhada por outro. O
crocodilo mastiga a presa por duas vezes. Com frequência, na primeira vez deixa
de fora da bocarra a cabeça, ou as patas, ou uma asa, ao mesmo tempo que o
sangue da vítima espirra em todas as direcções. O som que se segue ao do
definitivo cacarejo da galinha é de tonalidades cavas: a trituração dos ossos é
abafada pela mastigação de carnes macias e penas fofas.
É
um espectáculo cruel. Mas isso é do ponto de vista das galinhas e das almas
sensíveis. Ora, como se sabe, o ponto de vista dominante é o dos
crocodilos e afins, mesmo num país moderado e pró-ocidental, de inspiração
cristã, como é a Costa do Marfim. O espectáculo é exibido à entrada ou à saída
da área presidencial de Yamoussoukro.
Crocodilos sagrados

desempenham em Yamoussoukro, onde constituem a primeira linha da segurança presidencial. Com tão temíveis e discretos vigilantes, povoando o canal que cerca o vastíssimo perímetro da residência e do palácio, não há opositor, manifestante ou sindicalista que se aproxime.
A
residência presidencial e o palácio dos convidados estão localizados no
interior de um imenso parque murado, onde as construções se recortam num
cenário de jardins franceses. Versailles
a trinta e tal graus de temperatura, entre a região da savana e a da floresta
tropical.
Para
além da zona dos palácios, Yamoussoukro ostenta as sedes da Fundação Boigny e
do Partido de Boigny, o Partido Democrático da Costa do Marfim, escolas
superiores de obras públicas, de formação pedagógica, de ensino técnico e de
agronomia, hotéis, uma mesquita e a Basílica. Avenidas largas e arranha-céus
marcam uma cidade sem alma, numa área ajardinada e assética de 4.000 hectares.
A população vive arredada em bairros suburbanos, fora da vista dos visitantes.
Em
1962, dois anos após a independência, no local havia uma aldeia. Chamou-se,
sucessivamente, Kami, N’Gokro e Yamousso. N’Gkro vinha de Kouassi N’Ggo, filho
de N’Dri, chefe ilustre dos baoulés, e Yamousso era o nome da sobrinha de
N’Ggo, sendo o sufixo kro a designação de cidade. Yamousso, a sobrinha
de N’Ggo, foi a tia-avó de Félix Houphouet. O nome da tia-avó do presidente e o
sufixo kro deram nome à capital do país. No seu primeiro governo, Félix
Houphouët-Boigny mudou a capital de Abidjan para a aldeia onde nasceu. E ali
está a cidade, sumptuosa, magnífica e inesperada. Mas África tem outros e mais
vastos horizontes.
A Basílica arranha-céus
A
Basílica de Nossa senhora da Paz é o ex-libris da cidade, erguida para Deus por
Félix Houphouët-Boigny. Deus e Boigny são, aliás, as figuras centrais de um dos
vitrais de 28 metros da Basílica: Deus e, logo a seguir, Boigny. Um pouco mais
atrás, no cortejo de anjos e arcanjos, está o senhor Cesareo, engenheiro
francês, director das obras da Basílica e super-ministro na hierarquia da Costa
do Marfim.
A
Basílica começou a ser construída em 1985 e o Papa presidiu à colocação da
primeira pedra. A construção ocupou dois mil técnicos e operários e um número
considerável de empresas francesas que executaram o projecto do arquitecto
libanês Pierre Fakouri: 8.000 metros de vitrais fabricados em Bordéus, 128
colunas de 21 metros de altura por 2 metros e 20 centímetros de diâmetro, uma
nave central de 190 por 150 metros, um complexo nas traseiras que compreende
aposentos papais, uma estação para a Rádio Vaticano, uma escola, um orfanato,
um asilo para pobres e outro para cegos.
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Postal da Basílica |
O
presidente Boigny tranquilizou a população, num discurso de estado, garantindo
que os 200 milhões de dólares que custou a construção da Basílica vieram de
fundos privados, seus e de outros membros da família Boigny, para a glória de
Deus. Mas Deus, por vezes, é ingrato. E assim, o seu embaixador na Terra, João
Paulo II, não incluiu a Costa do Marfim na visita papal a África durante a qual
se esperava que inaugurasse a Basílica.
Em
Yamoussoukro diz-se que o Vaticano encara a Basílica como um presente
envenenado, com os seus custos anuais de manutenção de 750 mil dólares e que só
um milagre poderia realizar o sonho de Boigny de fazer de Yamoussoukro um
centro internacional de peregrinações.
Félix
Houphouët entrou para a vida pública aos cinco anos de idade como chefe dos
baoulés, quando morreu a rainha Yamoousso, sua tia-avó, e o respectivo sucessor
direito, primo de Félix, foi assassinado. Dada a tenra idade do segundo
sucessor, o viúvo da rainha ficou como regente. Teriam passado 79 anos que, juntando
aos cinco que Félix tinha à data da sucessão, daria a soma de 84 anos. Mas essa
é simplesmente a «idade oficial» do Presidente, segundo se diz na Costa do
Marfim, onde se admite que Boigny tenha mais cinco ou seis anos.
Com 84 anos de idade oficial, Félix
Houphouët-Boigny tem os seguintes cargos: Presidente da República, chefe de
Estado, símbolo da unidade nacional, garante da continuidade do Estado e da independência
nacional, detentor exclusivo do poder executivo, presidente do Conselho de Ministros,
chefe das Forças Armadas e da administração; detém o poder de nomear e demitir
os funcionários civis e militares do Estado, tem a iniciativa legislativa, promulga
as leis e assegura a sua execução, detém ainda a iniciativa de revisão da
Constituição, garante a independência do poder judicial, negoceia e ratifica os
tratados internacionais, é presidente do partido único e perfila-se como
eventual sucessor de si próprio. Mas a questão da sucessão é assunto para mudar
de conversa neste país que inclui os funerais dos chefes políticos e tradicionais
no seu cartaz de espectáculos.
See you latter, alligator
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Boigny e boigny (boigny significa carneiro em língua baoulé, exemplar de ouro maciço à porta do Palácio) |
A
situação económica, num país que viveu o «milagre do cacau», é um foco de
instabilidade. A quebra dos preços internacionais do cacau na última década
trouxe consigo os empréstimos e as receitas de austeridade do FMI. Para
satisfazer a classe média, Boigny começou a subsidiar os produtores de cacau e
a recorrer, de forma crescente, à mão-de-obra barata de quatro milhões de
nacionais dos países vizinhos.
Entretanto,
a dívida externa disparou para 14 mil milhões de dólares [1989]. Empresas
francesas – omnipresentes na antiga colónia – compraram ao desbarato a produção
de cacau do ano passado. Boigny tem no entanto outros amigos, para além do FMI:
grandes empresas francesas e a Nestlé, o poder mais consolidado no país, logo
abaixo de Deus e de Boigny.
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O repórter estava lá |
Em
Outubro passado [1989], Félix Houphouët Boigny promoveu as chamadas Jornadas de
Diálogo, cinco dias de desabafo contra a corrupção, a burocracia, a degradação
da economia. Como consequência das Jornadas, Boigny reduziu o Conselho de 39
para 29 ministros. A Constituição fala em partidos, no plural, assegurando que
«exercem a sua actividade livremente». Mas quando se fala com qualquer
interlocutor sobre eventuais opositores ou dissidentes, ou mesmo sobre simples
candidatos a um cargo, a resposta invariável é que quem sabe desses assuntos
são os serviços secretos. Se a conversa se adianta, há então quem sugira que os
crocodilos também saberão alguma coisa sobre dissidentes, opositores,
candidatos e sindicalistas.
No
ano em que Abidjan perdeu o estatuto de capital, ocorreu ali a maior vaga de
lutas populares contra a corrupção e o imobilismo jamais registada no país. É
em Abidjan que reside ainda a alma do país, é ali que corre o rio humano da
vida entre as margens da baixa e do Plateau. Em Abidjan a vida real continua e
caminha inexoravelmente para o dobrar de uma época. Mas à cautela, na Cabane de Bambou, um grande bar popular
de Abidjan, o disc-jockey despede-se ao fim da noite, pondo a rodar um velho
tema de Bill Haley: See you latter alligator.
Na noite de Abidjan, após um jantar no Tout Va Bien ou em La Paillot – djoungblé akoué regado com champanhe de ananás – o programa segue, por exemplo, no Kotou ou no Klin Kpli, clubes que prometem uma noite com galinhas de sobra para todos os crocodilos.
Félix Houphouet Boigny faleceu em 1993 no exercício do sétimo mandato com Presidente da Costa do Marfim. Foi sepultado um mês após o falecimento.
Esta reportagem não respeitou a lei costamarfinense que proíbe traduzir o nome do país.
Reportagem de João Paulo Guerra, O Diário, 23 Dezembro 1989,
à margem da reportagem da visita do Presidente Mário Soares à Costa do Marfim.
à margem da reportagem da visita do Presidente Mário Soares à Costa do Marfim.
1 comentário:
Prezado JPG
Muito bom.
Cumprimentos
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