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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O Regresso das Caravelas

3ª edição, Oficina do Livro, 2009
1ª edição, Dom Quixote, 1996

















2ª edição, Círculo de Leitores, 2000


Apresentação, 
por Ernesto Melo Antunes

O livro do João Paulo Guerra foi concebido como um painel, de cores vivas e bastante contrastantes, constituído por opiniões e depoimentos de vários protagonistas, intervenientes ou meros observadores do problema colonial ou do processo de descolonização. Aparentemente – e eu sublinho, aparentemente – o autor não exprime a sua opinião. Deste ponto de vista é, digamos, um livro neutral. E eu pergunto se será isto o que corresponde à famosa objectividade em História. Este livro, com todos os depoimentos cruzados que tem, é um bom ponto de partida para a compreensão do complexo processo da descolonização.
      O autor entendeu convidar-me, logo a mim, para apresentar o livro. Este já não é seguramente um gesto neutral. O risco era grande - e o autor certamente sabia-o - que eu entendesse a apresentação do livro não como um resumo das várias posições que nele aparecem, mas sim como uma ocasião que me era dada para desenvolver aspectos da minha visão comprometida da História. Sim, porque neste caso concreto, que é o da história da descolonização portuguesa, eu tenho uma visão comprometida, contra outras visões, também elas certamente comprometidas. Mas aqui é o livro que conta, é ele que é importante. O comentador introduz apenas uma perspectiva que vem, na melhor das hipóteses, animar o debate político ou, do meu ponto de vista, o debate político-cultural em torno deste tema.

Quero começar por destacar que a perspectiva que presidiu à questão da descolonização, no espírito dos militares que neste processo acabaram por ter um papel destacado – eu fui um desses militares – foi a convicção profunda que, com a revolução do 25 de Abril, tinha chegado o momento histórico inevitável e necessário de ruptura com o sistema colonial e, em consequência, do salto qualitativo para as independências. Contrariamente a quase todas as ideias feitas – que preferem sublinhar aspectos confusos e contraditórios de um processo que foi em si mesmo complexo, perdendo-se em aspectos acessórios ou circunstanciais - houve um pensamento estratégico que, embora combatido em muitas frentes, acabou por prevalecer. Esse pensamento estratégico foi o de que o reconhecimento à auto-determinação e independência dos povos submetidos à dominação colonial era a pedra angular do processo da descolonização.

Recordar-se-ão alguns dos que acompanharam de perto as chamadas peripécias do processo revolucionário português nos primeiros meses, a seguir ao 25 de Abril, que, em torno da questão das negociações com vista à independência de Moçambique, se levantaram polémicas e acusações gravíssimas em relação àqueles que defendiam justamente esse ponto de vista: o de que o 25 de Abril teria que ter como corolário necessário a ruptura com o colonialismo, reconhecendo sem tergiversações o direito à auto-determinação e à independência. Este pensamento estratégico teve que se afirmar abrindo caminho por entre um conjunto de posições de todos aqueles que consideravam «precipitado» o reconhecimento dos princípios da auto-determinação e da independência. Foi difícil fazer passar essa ideia e a batalha política que se travou só se concluiu com a publicação da lei 7/74, de Julho desse ano.

Curiosamente, vale aqui recordar que cerca de 20 anos depois se pôs em causa o carácter genuíno do aparecimento desta Lei. Do meu ponto de vista, não é por acaso. Refiro-me a uma declaração do Dr. Almeida Santos ao autor deste livro, dizendo-se chocado com o aparecimento desta Lei, que consagrava claramente o direito à auto-determinação e à independência, e acrescentando que o próprio general Spínola não teria tido conhecimento da publicação dessa Lei. Muitas coisas estranhas se passaram naqueles primeiros meses a seguir ao 25 de Abril, em plena revolução. Mas o mais estranho seria que uma Lei que serviu de mote a uma comunicação do general Spínola ao país não fosse do seu conhecimento. Isto explica uma outra maneira de fazer História. Eu digo que tenho uma visão comprometida da história, mas isso implica honestidade intelectual para ajuizar os factos, e não adequá-los, a posteriori, aos nossos interesses e justificações particulares.

A publicação desta Lei foi de facto um marco fundamental em todo o processo da descolonização. O que se passava até então era que a visão que nós tínhamos – nós, um certo grupo de militares com uma visão estratégica – entrava claramente em conflito com a visão do Presidente da República. O general Spínola tinha publicado um livro, «Portugal e o Futuro», que teve a importância que se sabe, como mobilizador de forças importantes na sociedade portuguesa e no meio militar para desencadear o 25 de Abril. É obviamente um mérito que não se lhe pode negar. Mas tinha, do meu ponto de vista, uma visão anacrónica da questão colonial, ao pensar que ainda era possível a constituição de uma federação de países de expressão portuguesa, quando já tinham passado treze anos de guerra, quando já se tinham aberto tantas feridas, tantos ressentimentos, tantos ódios, e quando era já perfeitamente desajustado e inadequado admitir um desenvolvimento autónomo das antigas colónias com um forte vínculo a Portugal sob uma forma federativa.

Mas havia outras visões, e já não me refiro às da ultra-direita, de certos sectores nacionalistas, que obviamente quereriam - mas nessa altura não tinham força bastante para o impor - manter a todo o custo uma situação colonial, embora encapotada sob formas mais ou menos subtis de neocolonialismo. Como havia outras posições, de sectores conservadores, de um certo tipo de cultura política, que se traduzem por questões deste género: Bom, mas as coisas poderiam ter sido feitas de outra maneira, ou não podiam? Mas a nossa ligação com África poderia ter ficado melhor adquirida, ou não? Mas os nossos interesses poderiam ter sido melhor defendidos, ou não podiam?

      E havia ainda outras vozes, vindas de sectores da esquerda que hoje é relativamente simples distinguir – mas naquela altura não era tão fácil. Refiro-me aos que reclamavam, antes de mais nada, o fim da guerra. E depois se veria. O fim da guerra já e depois vamos conversar, vamos negociar. Para dar um exemplo, e para chamar as coisas pelos nomes, foi aquilo que levou o Dr. Mário Soares em Lusaka, no princípio de Junho de 74, a iniciar as negociações com a Frelimo abraçando Samora Machel, num gesto de reconciliação, de amizade, de quase cumplicidade. Tudo parecia fácil, até porque o Dr. Mário Soares tinha defendido na clandestinidade o direito dos povos das colónias à auto-determinação e à independência. No espírito de Mário Soares, o objectivo imediato era o cessar-fogo, e depois se discutiriam as modalidades concretas de que se iria revestir o direito à auto-determinação. Surpresa grande foi para ele, e para muitos outros, o facto de Samora Machel e a Frelimo terem resistido a essa proposta. A posição dos movimentos de libertação, que pareceu a alguns de intransigência, era a de que não poderia haver cessar-fogo sem que houvesse da nossa parte - isto é, da parte dos responsáveis pela nova situação política vivida em Portugal, que se reclamavam do derrube do fascismo e de uma nova atitude perante a questão colonial – o reconhecimento prévio de que todos os contactos teriam que ser feitos em nome desse princípio pelo qual tinham lutado durante tantos anos de armas na mão.
Foto de Alfredo Cunha cedida para a capa da 1ª edição

Houve muitas surpresas, tanto à direita, como ao centro, como à esquerda. Certos responsáveis da época dificilmente entenderam a posição que alguns de nós assumíamos, perfeitamente conscientes daquilo que estava em jogo. Alguns de nós fomos mesmo acusados de traição, por defendermos uma doutrina que coincidia com a dos movimentos de libertação. Não era por acaso que coincidia. Era porque estávamos do mesmo lado da História. E isto é bom que fique dito de uma vez por todas. Não me envergonho de o dizer e de acrescentar mesmo que esse é um dos aspectos que mais honra a revolução do 25 de Abril.

Porque a revolução do 25 de Abril foi feita contra um sistema global de poder a que então – quando havia a liberdade radical das palavras, entre outras – se chamava o colonial-fascismo. Hoje as pessoas têm que ter mais cuidados semânticos mas, independentemente desses cuidados, a verdade é que no 25 de Abril houve claramente uma posição de luta global contra esse sistema de poder. E eu penso que não é possível entender a história recente deste país dissociando os dois termos desse conceito que é profundamente unitário. Haveria por um lado o fascismo, ou a ditadura, ou o fascismo à portuguesa, como outros dizem, e por outro lado o colonialismo. Não. Era o mesmo sistema de poder e de opressão.

O que quero salientar é que considero muito ligeiras e muito redutoras as opiniões dos que dizem que os militares fizeram o 25 de Abril simplesmente para acabar com a guerra. Não há dúvida nenhuma que a guerra colonial teve uma importância decisiva e determinante na formação da consciência política dos militares. Mas arrisco-me, e por muitas razões, a dizer que no espírito da esmagadora maioria do núcleo duro dos militares que conspirou e que agiu no 25 de Abril havia já uma ideia nítida do que estava em jogo. Se sublinho este aspecto é porque se tem glosado demasiado este tema em muitos meios políticos, culturais, mesmo jornalísticos: que os militares andaram a navegar sem saber muito bem em que se tinham metido. Esta ligeireza traduz-se na incompreensão que se manifesta em meios políticos civis em relação às posições que os militares tomaram quanto a certas questões da política interna portuguesa, como relativamente à questão colonial. A questão é que se os militares fossem tão desprovidos de consciência como nesses meios civis se diz, então o que teriam feito era darem meia dúzia de bordoadas em quem de direito no 25 de Abril e depois entregavam de bandeja o poder aos políticos civis que, como se viu, e como se continuou a ver durante muitos anos depois, tinham uma enorme capacidade para conduzir os destinos do país sem grandes solavancos…

Outro ponto que gostaria de deixar claro é que nunca ninguém, entre os militares responsáveis e também contra muitas ideias feitas, defendeu que a descolonização portuguesa foi uma descolonização exemplar. Não há aliás descolonizações bem feitas, pela boa e simples razão de que não há colonizações boas. Gostaria que me apresentassem alguma descolonização que não tivesse tido consequências mais ou menos dramáticas. E a origem desse dramatismo está fundamentalmente na própria essência do colonialismo. É o colonialismo, antes de mais nada, a própria fonte do drama colonial e das descolonizações. Claude Levy-Strauss dizia que a colonização foi o pecado maior do Ocidente. Foi. E por isso mesmo é que a história das colonizações é uma tragédia para os povos que as suportavam como para os próprios povos que as exerciam. Será difícil hoje, quando há uma cultura política em que há uma certa tendência para reescrever a História, perceber-se o verdadeiro significado desse «fardo do homem branco», como alguém dizia. E é um fardo que devemos saber suportar, não para andarmos vergados ao peso da má consciência pelos séculos fora mas, se isso for possível, para que constitua também um elemento de apreciação que as jovens gerações têm que fazer sobre o modo como se têm de relacionar com os povos com os quais os seus países entraram em contacto há séculos e que escravizaram durante séculos.

A colonização portuguesa foi tão má como as outras. O que não significa que não haja margem de manobra para o diálogo com os povos que foram submetidos ao colonialismo e que esse diálogo não deva ser prosseguido. Neste sentido, é capaz de ter razão Veiga Simão, embora por diferentes motivos, quando diz no livro que nos reúne aqui que a descolonização foi a maior tragédia que aconteceu a Portugal depois de Alcácer Quibir. É capaz de ter razão, não exactamente pelas razões que ele pensa, mas provavelmente pelos motivos que eu invoco.

Não tivemos a veleidade de alcançar um processo exemplar de descolonização. O que pretendemos foi que fossem exemplares, tanto quanto possível, as relações futuras entre Portugal e as antigas colónias. Porque fechado o ciclo do império nós sabíamos perfeitamente que não era possível curar de repente todas as feridas, todos os ressentimentos. Mas durante muitos anos isso não aconteceu. O diálogo entre Portugal e as antigas colónias foi uma cacofonia completa. E de quem são as responsabilidades? Não quero fazer julgamentos precipitados. Poder-se-ia perguntar se foram os acordos que foram mal negociados? É uma pista a explorar e que eu gostaria de ver discutida um dia. Em primeiro lugar, porque muitos daqueles que hoje põem em causa os acordos, na altura não tiveram uma única palavra para se oporem nem à letra nem ao espírito dos acordos. Em segundo lugar, porque eles foram de facto discutidos com a maior boa-fé e com a ideia de que eram exequíveis. Do meu ponto de vista, os acordos foram aqueles que deveriam ser feitos.

Isto levar-nos-ia a discutir a opinião daqueles que dizem que a descolonização foi a possível, conceito a que confesso que sou alérgico, porque o considero uma forma simplista de desculpabilização da nossa parte. Nós seguimos uma determinada via, não por ingenuidade ou por pensarmos que era a via mais fácil, mas porque correspondia a um pensamento estratégico. Por isso, não foi aquilo que foi possível fazer. Foi aquilo que devia ser feito.

É claro que a descolonização teve consequências negativas em muitos aspectos e o principal foi a retirada precipitada de centenas de milhar de pessoas, sobretudo de Angola e de Moçambique, a que se chamaram retornados, deixando esses países numa situação calamitosa de falta de quadros. Penso que o que vou dizer não será particularmente popular em certos meios progressistas das antigas colónias. Mas, neste caso, penso que a principal responsabilidade coube aos movimentos de libertação. Porque contrariamente à letra e ao espírito dos acordos gerou-se um clima de total repúdio da permanência dos portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança, de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado. E nós em Portugal não podíamos fazer outra coisa senão assegurar o regresso nas melhores condições possíveis.

Conversando com responsáveis dos movimentos de libertação muitos anos depois, recolhi depoimentos que me revelaram que eles próprios tinham sido ultrapassados pelas bases. Isto é, muitos deles, naquele período difícil, nos contactos com as bases guerrilheiras, sentiram de tal forma o radicalismo das posições dessas bases que não tiveram outro remédio senão radicalizar também o seu discurso político relativamente ao antigo ocupante colonial. E que essa seria a razão fundamental da atmosfera que se gerou. Não me custa a admitir que isso tivesse acontecido por uma razão muito simples. É que aqui em Portugal, se bem se lembram, a radicalização do discurso político, de todos os partidos políticos, à esquerda, ao centro e à direita, foi também devido á necessidade dos dirigentes não serem ultrapassados pelas bases.

            No caso da descolonização, um outro factor se juntou também, e por fim, às condições e circunstâncias de todo o processo. Foi o facto das colónias, e particularmente Angola e Moçambique, constituírem a partir de certa altura peões no jogo das duas grandes potências, um campo de confrontação indirecta da União Soviética e dos Estados Unidos para alargarem as suas esferas de influência. Havia grandes interesses geo-estratégicos em jogo. No caso da África Austral, os movimentos de libertação começaram a sua luta com apoios claros, tanto políticos, como militares, financeiros e outros, por parte dos regimes comunistas e nomeadamente da União Soviética. Os Estados Unidos, que queriam contrariar essa influência, nunca souberam encontrar o antídoto eficaz. Tiveram sempre uma enorme dificuldade em compreender os fenómenos sociais, históricos, culturais que estavam na base dos movimentos de libertação. Daí que, muito naturalmente, houvesse um choque de interesses entre as grandes potências que, naquela fase, acabou por ser favorável à União Soviética.

Portugal tentou fazer compreender aos ocidentais, em particular aos Estados Unidos, que uma atitude de hostilização dos novos países independentes, pelo facto de adoptarem modelos marxistas, só ía aprofundar ainda mais o fosso entre países do Terceiro Mundo, cujos apoios estavam do lado comunista, e o Ocidente. E que essa não era a melhor forma de lhes abrir perspectivas de modo a fazerem conscientemente as suas escolhas de modelos de desenvolvimento. Mas infelizmente, na altura, os Estados Unidos não foram sensíveis a esse tipo de argumentação. Daí as consequências que todos nós conhecemos. Durante muitos anos, enquanto não se deu a derrocada do sistema comunista, esses países viveram sujeitos às orientações da ortodoxia dos regimes comunistas. Daí também as situações de confronto e de guerra. Nesse mundo bipolar, a maior parte das confrontações entre as duas grandes potências verificou-se indirectamente, nomeadamente em Angola e Moçambique, por interpostos cadáveres.

Vou terminar, pois já vai longa esta apresentação. Tentei ser tão breve, tão simples, tão sóbrio quanto possível, tendo também em conta que eu, como muitos daqueles que me acompanharam em todo este processo, tivemos de facto uma humilde participação nos acontecimentos e temos disso uma perfeita consciência. Percebemos que não podemos apresentarmo-nos hoje como protagonistas maiores do que aquilo que fomos na época em que se viveram os acontecimentos.
Ernesto Melo Antunes, apresentação da 1ª edição (1996), 
prefácio da 3ª edição (2009)



Li sem uma pausa a “Descolonização Portuguesa”, que lhe agradeço.
Empolgante, para mim, pelo retrato que dá dos generais-falcões lusitanos como Câmara Pina (pág. 41, 1ª edição), Kaúlza (para quem a derrota “é apenas uma vitória traída” (sic!), Galvão de Melo (inventor da expressão “patriotas amadores”).
Mais do que o drama da Descolonização, o que confrange é a mediocridade de um Spínola a insistir, p. ex., na “comunidade lusíada” (pág. 70, 1ª edição) e certos apontamentos de surpresa como as jogadas de Jardim (Jorge) com a Frelimo e o laço que unia Botelho Moniz à CIA.
Enfim, um documento que vale a pena reler e sublinhar.
José Cardoso Pires, 28 Fevereiro 1996


O Regresso das Caravelas foi inicialmente uma série de reportagens de rádio, transmitidas pela TSF em Abril de 1994.
Na versão original para a rádio, O Regresso das Caravelas ganhou todos os prémios de reportagem relativos ao ano de 1994:
Prémio Nacional de Reportagem, do Clube de Jornalistas do Porto,
Prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas,
Prémio de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa.


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