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segunda-feira, 12 de março de 2018

O general Spínola no seu labirinto

Por João Paulo Guerra
TSF, 22 de Fevereiro de 1994,
 nos  20 anos da publicação 
de Portugal e o Futuro
         
         O general Spínola no seu labirinto:

António de SpínolaComo é do conhecimento público, servi em Angola nos anos de 1961 a 64 em desempenho de missões estritamente operacionais. Esses anos de actividade militar foram para mim uma grande escola política. Foi aí que senti que a nossa guerra do Ultramar não tinha solução militar. Anos depois, fui nomeado governador e comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné onde a minha conduta foi pautada por uma acção política evolutiva. Durante este período [Maio de 1968 – Novembro de 1973] tomei algumas iniciativas junto do Professor Marcelo Caetano no sentido de se por em prática uma nova política ultramarina, baseada no êxito alcançado na Guiné-Bissau, onde a situação atingiu um ponto de tal modo favorável a uma negociação sem condições para qualquer das partes propícia a uma permanente presença cultural portuguesa.

O labirinto do general Spínola era uma frase do historiador Arnold Toynbee: Portugal foi o primeiro império colonial e era então, na segunda metade do século XX, o último. Mas talvez viesse a ser o primeiro de uma nova era.
O labirinto do general Spínola: Que futuro para Portugal? Que integração? Em que espaço? Com quem? Que caminho? A Europa? A África Austral, passando Portugal a ser um país africano com uma colónia na Europa? A Espanha? A Aliança Atlântica? Uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira?

António de SpínolaEstou convencido der que seria possível edificar, com pleno êxito, uma Comunidade Lusíada.


Um labirinto a que o general tinha sido conduzido pela experiência na Guiné: não havia solução militar para a guerra e o regime teimava em não negociar a paz. O coronel Carlos Fabião, oficial do Estado-Maior de Spínola na Guiné, testemunhou a entrada do general para o seu labirinto:

Carlos FabiãoEle chegou, estudou o que se passava, visitou a Guiné toda, andou em todos os sítios, falou com todos os comandantes, correu alguns comandantes, correu também alguns chefes civis, instalou-se e fez uma reunião para a qual convocou os comandantes importantes todos da Guiné. E apresentou este conceito, para mim revolucionário, que era o seguinte: uma guerra revolucionária nunca estará ganha e não se ganha militarmente. Só é possível ganhar politicamente. Portanto, eu não vos vou pedir que ganhem a guerra, porque vocês não têm capacidade para ganhar a guerra. Quem tem que ganhar a guerra sou eu. A vocês só vos peço que não me percam a guerra. E que me dêem tempo para que eu possa ganhar politicamente a guerra.

Spínola definiu a estratégia para a Guiné. Não podendo ganhar militarmente a guerra era precisa ganhar tempo. Mas se a vitória militar estava condenada no terreno, a vitória política foi condenada nos bastidores do poder. Em 26 de Maio de 1972, Marcelo Caet5ano convocou o general para lhe dizer que do ponto de vista da defesa global do Ultramar era preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra do que por acordo negociado, abrindo caminho para outras negociações.
O general ainda estava na fase de se escandalizar:

António de SpínolaPois Vossa Excelência prefere uma derrota militar na Guiné? – Perguntou o general ao Presidente do Concelho, segundo o seu próprio testemunho.

No regresso a Bissau, Spínola confidenciou ao seu ajudante de campo, capitão António Ramos, hoje tenente-coronel, que Caetano tinha medo:

António Ramos – Disse-me o general que o professor Marcelo Caetano teve medo da reacção da ultra-direita se embarcasse naquela aventura. E portanto não quis avalizá-la.

Toda a estratégia de Spínola na Guiné acabava de ser derrotada em Lisboa. E os contactos que o general ensaiara, por intermédio do presidente do Senegal, com facções da guerrilha, nem sequer chegaram à direcção do PAIGC, nem foram a ser entendidos como negociações, de acordo com o testemunho de Luís Cabral, ao tempo secretário-geral-adjunto do PAIGC:

Luís CabralIsso não são negociações. É um contacto na base do desprezo total pelos nossos sentimentos de combatentes da liberdade, que não tem em conta os anos de guerra que tínhamos feito, as conquistas da nossa luta. O PAIGC tem uma direcção, não é representado por trânsfugas ou dissidentes. E em consequência, uma expressão que passou s ser muito usada no nosso meio, a partir daquele momento, foi que Spínola teria que passar a respeitar-nos como inimigos.

Derrotada a estratégia para negociar a paz, o general intensificou a guerra, procurando conquistar pela força as posições perdidas no sul da Guiné. Mas foi então que o PAIGC começou a usar misseis terra-ar. A partir desse momento, já nem era possível ao general pedir aos seus comandantes no terreno que não lhe perdessem a guerra.
Do lado da guerrilha, era a mira do coronel Manuel dos Santos, Manecas, comandante da anti-aérea do PAIGC, que estava apontada ao destino da guerra.

Manuel dos SantosUma anti-guerrilha moderna não se faz sem helicópteros, sem tropas heli-transportadas e sem aviões de ataque ao solo. O facto de nós interditarmos, de certo modo, o espaço aéreo às operações da anti-guerrilha levou o Exército português a perder completamente a iniciativa no terreno. A perder completamente a capacidade ofensiva. Ao que parece, o Exército português não esperava que nós possuíssemos aquelas armas e que as soubéssemos manejar.
Pergunta – E sabiam?
MSA verdade é que abatemos aviões.

Foi quando os Heróis do Mar perderam a supremacia aérea que o destino da guerra na Guiné ficou traçado. Os primeiros aviões foram abatidos pelos mísseis terra-ar Strella em Março de 1973; em Agosto, o general Spínola regressou a Lisboa, antecipando o fim do mandato.
De visita à Guiné, por essa altura, o chefe do Estado-Maior General, Costa Gomes, voltou a Lisboa com a sentença sobre a situação militar:

Costa GomesEstávamos à beira da derrota militar. A situação na Guiné, naquela altura, era muito grave, porque o PAIGC atacava no norte e no sul, causando-nos grandes baixas.  

Foi a crónica dos efeitos da Guiné. Com a derrota militar à vista, Spínola não quis reeditar o caso da Índia. E voltou a Lisboa com a sua solução para a guerra passada a escrito. O original do livro Portugal e Futuro foi batido à máquina ainda na Guiné.
A publicação do livro estava negociada desde o Verão de 1973. Em nome da Editora Arcádia, tinham-se deslocado a Bissau, para negociar com o general, a directora cultural, Natália Correia, e o editor, Paradela de Abreu.

Paradela de Abreu – O general Spínola nunca disse o que era o livro. Era um livro. E eu devo dizer-lhe que imaginei tudo, menos que fosse aquele livro, aquela mensagem. Não fazia a menor ideia. Quando regressámos a Lisboa, o general Spínola disse que o seu irmão iria entrar em contacto com a editora. E assim foi. Tive uma reunião formal com o Dr. Francisco Spínola e percebi que ele estaria a fazer uma espécie de concurso entre várias editoras, queria negociar bem os direitos. Penso que estariam contactadas seis ou sete editoras. Eu ofereci-lhe vinte por cento de direitos de autor sobre o preço de capa – o normal no mercado português são oito, dez por cento -, eu ofereci o dobro, e com uma garantia bancária do Totta e Açores. Ganhei imediatamente o concurso. Em Novembro já havia provas tipográficas.
Pergunta – E tudo isso sem conhecer o livro?

PA – Nunca li o livro até ao momento de assinar o contrato e estive sempre convencido que era uma história da guerra da Guiné. Recebi o original, das mãos do Dr. Francisco Spínola, por troca da entrega da garantia bancária. E só depois é que eu o li. Li-o nessa noite. E no dia seguinte, chamei um amigo meu que colaborava comigo na Arcádia, o António Valdemar. Entreguei-lhe o original do livro do general Spínola para ele ler e disse-lhe assim: António Valdemar, este livro é a revolução.

O livro do general Spínola era a síntese de diversos documentos e relatórios do próprio general e de oficiais do seu Estado-Maior. O primeiro documento era de 1970 e foi a contribuição de Spínola, encomendada por Marcelo Caetano, para a revisão constitucional de 1971: Algumas ideias sobre a estruturação política da Nação. Título que segue de perto o do quinto e último capítulo do Portugal e o Futuro: Uma Hipótese de Estruturação Política da Nação. Outro documento que esteve na base do livro foi um Relatório da Situação datado de 1971 e que corresponde aos três primeiros capítulos do Portugal e o Futuro. Tratava-se de trabalhos colectivos que resultavam da soma de contribuições individuais de oficiais do staff de Spínola, em particular de Jorge Pereira da Costa, chefe da Repartição de Informações do Estado-Maior.
Spínola não escreveu Portugal e o Futuro, podia ler-se na primeira página do Diário de Lisboa de 16 de Janeiro de 1976. O jornal escrevia que, à semelhança de Kennedy e de Nixon, Spínola recorrera a um escritor fantasma e o DL fornecia todos os dados para que os leitores concluíssem que o verdadeiro autor do livro era Jorge Pereira da Costa, que trocara já a carreira militar brilhante por uma fulgurante carreira de gestor. Transcrevendo passagens de um documento na primeira pessoa, o DL dizia que desde 1969 Pereira da Costa escrevia, a pedido do general Spínola, respostas a entrevistas, discursos, relatórios e até mesmo cartas para o primeiro-ministro e o ministro da defesa. Jorge Pereira da Costa não confirma nem desmente. Contactado, escusou-se a prestar qualquer declaração dizendo apenas:

Jorge Pereira da Costa - Esse é um capítulo encerrado da minha vida.

António Ramos, hoje tenente-coronel, capitão pára-quedista nos anos 70 e ajudante de campo do general Spínola na Guiné, admite que o livro tem uma origem colectiva com base no trabalho da equipa de Spínola. Mas quanto à autoria do livro não tem dúvidas:

António RamosO livro é do general Spínola. O que poderei dizer é que a génese do livro poderá partir de uma reflexão colectiva, de depoimentos, de relatórios da situação política e militar dos vários elementos que constituíam o Estado-Maior do general. Agora que o livro é dele, estou perfeitamente à vontade, como ajudante de campo dele, para lhe garantir que era de certeza.
PerguntaA prática do general Spínola na Guiné reflecte-se na teoria do livro Portugal e o Futuro?
AR O livro reflecte a prática. O livro, no fundo, é um produto da observação, do estudo, da análise da situação do País, à época, evidentemente, observada de um ângulo que é a Guiné. O livro reflecte o plano do general para criar na Guiné uma autonomia que poderia vir mesmo a ser independência federada em Portugal. Tudo isso ficou completamente frustrado quando morreu o Amílcar Cabral, com quem havia contactos, e que estaria nos planos do general para primeiro-ministro da Guiné.
Pergunta Quase que está a dizer que a morte de Amílcar Cabral serviu os interesses daqueles que, em Portugal, queriam sabotar esse processo de negociações?
ARPois eu não tenho dúvidas nenhumas. Nunca deixei de pensar, e nunca ninguém me provou o contrário, que a morte de Amílcar Cabral foi um trabalhinho feito, não pela PIDE, que era incompetente demais para isso, mas a pedido da PIDE, por outro tipo de organização internacional mais profissional.

O chefe do Governo conhecia as teses que estavam na base do livro do general. Mas ainda pensou que era possível dar a volta ao texto. Pensou mesmo nomear Spínola ministro do Ultramar mas arrepiou caminho, porque o general, no entender do chefe do Governo, via as coisas pela fresta da Guiné. Era preciso abrir uma janela.

A remodelação do Governo foi em Novembro de 1973, Silva Cunha foi a ministro da Defesa, a contas com uma revolta de capitães, Baltazar rebelo de Sousa a ministro do Ultramar, a contas com a iminente queda do Império. Em Janeiro, Spínola foi nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General. Marcelo Caetano pensava matar dois coelhos de uma cajadada. Mandava Spínola, de visita prolongada para Angola e Moçambique, e a nomeação talvez deitasse alguma fervura na água da contestação dos capitães.
Spínola passava a depender hierarquicamente de Costa Gomes. Mas não foi isso que magoou o general. Marcelo Caetano conta no seu livro Depoimento que Spínola se lhe queixou pelo facto da televisão, a RTP, ter ignorado o acto da sua tomada de posse. A questão mediática era que o general escrevera o discurso para o acto de posse a pensar intervir na crise militar. Conhecia e alimentara na Guiné a contestação dos capitães. Conhecia e participara em Lisboa nos primeiros actos da contestação dos generais que tinha Kaúlza de Arriaga como cabeça-de-lista.

 Kaúlza der ArriagaEu próprio, depois de vir de Moçambique, entrei em contacto com os capitães. Soube da situação e através de um dos meus chefes de gabinete entrei em contacto com eles. E disse-lhes: os generais assumirão as suas responsabilidades, desde que, nas Forças Armadas, se mantenha a disciplina e o respeito pela hierarquia. E a resposta dos capitães foi: Sim senhor, agora os senhores generais façam o que têm a fazer. Depois, oe generais não fizeram aquilo que deviam fazer, porque houve uma cisão, o Spínola, que estava connosco, desapareceu. E os capitães foram evoluindo para o MFA, que afinal era descolonizador e era marxizante.
Pergunta Quando o senhor general diz: Os generais assumirão as suas responsabilidades. Isso não poderá ser entendido como um pronunciamento, um golpe de Estado?
KAClaro que, para salvar o País, eu não tinha escrúpulos nenhuns em promover um golpe de Estado.

Spínola cortou com a conspiração dos generais. Quando os capitães o alertaram, o general já estava avisado.

Carlos Fabião – O general disse-nos que estava avisado e que nós tomássemos atenção ao discurso dele quando tomasse posse como vice-chefe do Estado-Maior General. O Vasco [Lourenço], com aqueles modos dele, diz-lhe assim: Ó meu general, então eu venho falar-lhe numa intentona e o meu general diz-me para estar a tenção a um discurso que vai fazer daqui a uns tempos? Nessa altura já não haverá nada…

Spínola tomou posse do cargo de vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas em 14 de Janeiro de 1974. E no discurso de posse deixou um recado que tanto poderia ser dirigido aos generais como aos capitães:
«As Forças Armadas têm que manter-se coesas, clamas e disciplinadas. A disciplina constitui o nervo-motor da eficiência de toda a máquina militar».   
E foi disciplinadamente que dois dias depois de tomar posse, Spínola submeteu o texto de Portugal e o Futuro à apreciação do seu superior hierárquico. Costa Gomes lavrou um despacho a louvar a oportunidade do livro. Mas remeteu a decisão sobre a publicação para cima. O ministro da defesa, Silva Cunha, considerou o livro inoportuno e endossou mais para cima a responsabilidade pela publicação. Marcelo Caetano entendeu que era tarde demais para impedir a publicação. E o livro do general Spínola recebeu assim um envergonhado Imprimatur por parte do poder. 
A 22 de Fevereiro de 1974, a bomba de papel estoirava na primeira página do jornal República e estava nas livrarias. Na livraria Apolo 70, em Lisboa, em poucas horas venderam-se dois mil exemplares. Era O Livro Esperado, como rezava a campanha publicitária traçada pelo director-geral da Ciesa, Carlos Eurico da Costa. Uma campanha que jogava com o perfil do general.

Carlos Eurico da CostaEra uma figura muito sóbria mas ao mesmo tempo solene. Era o tom da campanha: sobriedade e solenidade. Pena foi que o spot de televisão não pudesse ter sido emitido porque a censura não permitiu.
PerguntaQual era o conteúdo dessa mensagem publicitária?
CECEra uma mensagem muito curta, de oito segundos, mostrava o livro, com a frase O Livro Esperado, os títulos dos cinco capítulos do livro. Isso bastava para interessar qualquer pessoa interessada em modificar a situação do País.
PerguntaNa campanha, jogou também com a imagem física do general Spínola?
CECUma imagem emblemática, o general, o monóculo. Tivemos o cuidado de fazer as fotografias como ele não fardado.
PerguntaA campanha publicitária fez vender cinco edições de cinquenta mil exemplares, ou será que o livro se vendeu por si?
 CECA campanha foi relativamente pequena. E foi ultrapassada pelo próprio sucesso do livro e pela publicidade que as pessoas faziam boca-a-boca.  A campanha deu um apoio inicial.

Marcelo Caetano recebera o livro a 18 de Fevereiro. Lera-o de um fôlego. E ao fechar o livro, tal como diz no seu Depoimento, tinha compreendido que o golpe de estado militar era inevitável. No entender de Marcelo Caetano, o livro não constituía uma tese mas um manifesto que dava uma doutrina e emprestava uma bandeira à revolta dos capitães que, nessa altura, avançava já em passo de corrida. Até o general Vasco Gonçalves está de acordo com esta leitura de Marcelo Caetano:

Vasco GonçalvesO general Spínola teve uma acção positiva ao escrever o livro Portugal e o Futuro que foi uma bandeira para muitos dos meus camaradas aderirem ao Movimento das Forças Armadas. Havia ali um general a dizer que a guerra só tinha uma solução política, que era aquilo que a grande maioria sentia. 
PerguntaOs capitães precisavam dessa bandeira?
VG O livro foi uma bandeira para aqueles mais hesitantes. Um Vasco Lourenço, um Melo Antunes, um Vítor Alves, essa rapaziada não preguiçava da bandeira do general Spínola.

Portugal e o Futuro deu aos capitães uma bandeira e à revolta dos capitães uma doutrina. Mas não seria essa a intenção do general Spínola. Afinal, o próprio Marcelo Caetano tinha preconizado a mesma solução política para a guerra: a autonomia progressiva das colónias, tendo no horizonte a transformação do Estado unitário num Estado federal. Entre 1973 e 1974, o general Spínola só fez, assim, a síntese das teses do federalismo.

António de SpínolaO livro Portugal e o Futuro representa uma evolução da política ultramarina que acima de tudo proclamava que a guerra do Ultramar não tinha uma solução militar mas antes e só uma solução política. Os militares tinham conseguido criar uma situação de equilíbrio de forças de grande oportunidade para o governo central desencadear acções a nível externo que possibilitasse uma evolução de acordo com as melhores tradições políticas portuguesas. Portugal e o Futuro deu essa oportunidade a Marcelo Caetano, a qual lhe era oferecida pelos próprios militares que naturalmente a apoiavam, se se enveredasse por uma abertura que associasse a democracia à consagração de uma Comunidade Lusíada. E porque Marcelo Caetano também havia apoiado teses federativas, o livro Portugal e o Futuro reforçaria a sua posição perante as forças mais conservadoras. Infelizmente, o primeiro-ministro deixou-se dominar pelas forças conservadoras que, no fundo, lhe eram hostis. E as conversas que tive com ele, graças aos esforços do professor Veiga Simão, acabaram por não ter consequências na procura de uma solução positiva.  

A solução de Portugal e o Futura era a criação de uma Comunidade cultural, económica e política, uma solução federativa cimentada na solidariedade, uma federação de estados com descentralização com descentralização administrativa.
Fora essa a tese - para além de Marcelo Caetano em 1962 – dos generais que em 1961 quiseram derrubar Salazar. Foi também essa a tese, em 1963, do Marechal Craveiro Lopes e de Manuel José Homem de Mello num livro cujo título, Portugal o Ultramar e o Futuro, terá antecipado o livro e as próprios teses de Spínola.

Manuel José Homem de MelloEle retoma as minhas teses. Eu talvez tenha vindo um pouco adiante. E o general veio muito atrás. E aquilo que o general Spínola preconizava, que teria sido possível no início dos anos sessenta, já não era possível. E a prova disso é que ele menos de um ano depois está na Presidência da República e já não consegue realizar o livro, é ultrapassado pelos acontecimentos.

Como os generais da tentativa de golpe de 61, como Marcelo Caetano em 62, como Craveiro Lopes em 63, as teses federalistas de Spínola vieram a ser ultrapassadas pelos acontecimentos. Em Fevereiro de 74, em vez de uma bandeira para a revolução, Spínola estendeu a Marcelo Caetano uma tábua de salvação. Mas o chefe do Governo desconfiou, teve medo, e acabou por perder a derradeira oportunidade.

António de Spínola O primeiro-ministro, em vez de aproveitar uma oportunidade a seu favor, acabou por fomentar um sentimento de revolta nas Forças Armadas. O 16 de Março não tardou e foi reprimido. Mas o 25 de Abril surgiu vitorioso.

E foi assim que um livro, publicado em Fevereiro de 1974, derrubou em Abril um regime pouco dado a leituras, para além das páginas obrigatórias dos livros únicos. Como negócio, o livro foi um sucesso: primeira edição, de 50 mil exemplares, em 22 de Fevereiro; segunda edição, mais 50 mil, nos primeiros dias de Março; até finais de Setembro saíram cinco edições, num total de 230 mil exemplares vendidos. Mas a Editora Arcádia mudara de mãos em 1973, associando-se ao Grupo CUF, por intermédio da Seguradora Império. E havia valores mais altos, acima dos cifrões do negócio: entre a segunda e a terceira edições, o editor, Paradela de Abreu, foi despedido pela Editora.

Paradela de AbreuFoi já a administração nomeada pela Império para dirigir a Arcádia, em carta assinada pelo Dr. Braúlio Barbosa, que me comunicou o despedimento.   

A carta de despedimento do editor de Portugal e o Futuro têm a data de 7 de Março de 1974, entre a segunda e a terceira edição do retumbante êxito editorial.
Um outro episódio que marcou Portugal e o Futuro foi a associação entre dois grupos económicos e familiares, Mellos e Champalimauds, para a publicação do livro. Por contingências certamente alheias à estratégia dos grupos, a editora do Grupo CUF imprimiu o livro de Spínola em papel fornecido a preço de favor pela fábrica da Abelheira, uma empresa do Grupo Champalimaud. António Champalimaud relatou para a sua biografia que o general Spínola – que desempenhara diversos cargos não executivos em empresas do grupo - o contactou no sentido de obter papel, que escasseava no mercado, para a edição do livro. Champalimaud acedeu.

Não vi como, ao fornecer o papel a Spínola, pudesse vir a arrepender-me, desabafou o magnata.

A realidade é que Mellos e Champalimauds, empresários monopolistas, cunhados e inimigos íntimos, também contribuíram indirectamente para o derrube do regime.
Quanto a Spínola, querendo ou não derrubar Marcelo Caetano, escolheu a arma certeira para deitar abaixo um regime que tanto reprimira o pensamento, os livros e a leitura: arremessou-lhe um livro.

 João Paulo Guerra
TSF, 22 de Fevereiro de 1994

1 comentário:

Rui Henrique Santos disse...

muito bom! a memória e a História agradecem.