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terça-feira, 5 de maio de 2015

Figurantes, protagonistas e testemunhas da descolonização


Entrevistas de João Paulo Guerra, TSF, O Regresso das Caravelas, Abril de 1994

Adriano Moreira
Em Abril de 1961, um mês após o início da guerra, esmagada a resistência dos chefes militares, Salazar mandou avançar ao som marcial do Angola é Nossa. Contra as razões dos generais, Salazar precisava da vitória das armas. E um certo reformismo colonial, protagonizado então pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira, só durou enquanto duraram as dúvidas sobre as possibilidades e as vantagens entre ganhar a guerra ou fazer reformas. E o ministro acabou por ser demitido, antes de completar dois anos à frente do Ministério, a pretexto de um conflito com o governador-geral de Angola:


«Isso foi apenas um pequeno elemento do processo - considera o professor Adriano Moreira -. Não é um detalhe importante. Importante foi realmente a mudança de atitude e de percepção dos que, até esse momento, apoiavam o reformismo e que, a partir desse momento, entenderam talvez o que pode formular-se desta maneira: quem ganha a guerra não faz reformas. E nesse momento, estabeleceu-se a convicção de que o conflito estava ganho.
- «O que tentou realizar, como ministro do Ultramar, foi uma política reformista?
A. M. - «Puramente reformista, sim, sem nenhuma ambição revolucionária. Mas um reformismo que tinha que ser acelerado, porque não eram apenas critérios valorativos, de direitos, de conceitos de dignidade humana, que estavam em causa. Era também uma avaliação da conjuntura mundial.
- «E essa política reformista era possível, em 1961-62?
A. M. - «Eu não sou muito atreito a teorias de justificação. Os factos são os factos, as pessoas devem assumir a responsabilidade e eu, nesse processo, assumo as intenções, assumo aquilo que fiz e assumo a responsabilidade pelo que não fiz e até pelo que não soube fazer. Porque acho que nestas matérias as responsabilidades são objectivas. É por isso que eu prefiro referir apenas um conceito geral, a que posso dizer que aderia. E o meu conceito geral era este: África só tem um futuro razoável, aceitável, humano, se as populações europeias puderem ficar. Isto para mim era uma evidência. E essa evidência parece não ter sido aceite».

Kaulza de Arriaga
A tentativa de golpe militar e de inversão da política ultramarina, em 1961, morreu às mãos do próprio Salazar, que demitiu os conspiradores e mandou avançar para Angola, "rapidamente e em força". Para derrotar a conspiração, Salazar só precisou então do apoio militar dos paraquedistas, postos à disposição do governo pelo subsecretário de Estado da Aeronáutica, coronel Kaúlza Oliveira de Arriaga:
               "Esses elementos das Forças Armadas - conta hoje o general Kaúlza de Arriaga - que achavam que se devia dar uma autodeterminação, ou até mesmo a independência, a Angola em 1961, eram poucos mas pertenciam à alta hierarquia das Forças Armadas. E eram impulsionados pelos americanos, pela administração Kennedy, um homem anti-português no que respeitava ao Ultramar. Os americanos impulsionavam o general Botelho Moniz, que tinha ligações com a CIA. Disse-mo ele a mim, que tinha ligações com a CIA através do adido naval da Embaixada americana em Lisboa, o comandante Fitzpatrick, que era um homem da CIA. E então, impulsionados pelos americanos, umas tantas pessoas, sobretudo o general Botelho Moniz e o Costa Gomes, achavam que se devia dar imediatamente a autodeterminação ou a independência a Angola".
     Fiel seguidor da política ultramarina de Salazar - em defesa da qual ajudou a conter o golpe de 1961 - Kaúlza de Arriaga esteve de acordo com a política colonial que levou à anexação do Estado da Índia.   Morreram na India 67 militares da guarnição portuguesa; cerca de 3.500 foram feitos prisioneiros.
     Kaúlza de Arriaga, então secretário de Estado da Aeronáutica, estava de acordo com a guia de marcha para a morte assinada em Lisboa por Salazar:
               "Havia a possibilidade de uma invasão - recorda o general Kaúlza de Arriaga - e nós só tínhamos uma coisa a fazer: era morrermos com honra, batermo-nos e morrermos com honra. E não se deu isso. As forças que lá estavam renderam-se miseravelmente."
Pergunta: Mas as tropas portuguesas estavam em condições de se baterem contra o poderoso exército indiano?
               "Houve culpas nossas na forma como as coisas se passaram - considera hoje Kaúlza de Arriaga -. Porque era evidente que se a União Indiana resolvesse fazer a invasão, como acabou por fazer, não havia possibilidades de resistir. O que havia era que dar a essas forças a possibilidade de se poderem bater. Eu disse em Conselho de Ministros que as forças não estavam em condições de se bater, não estavam equipadas com material que funcionasse. Nada funcionava na India.
               "Há até um célebre caso, com sabor anedótico, que mostra  como as forças portuguesas na India estavam a ser tratadas. Eu era secretário de Estado da Aeronáutica e pedem-me que transporte rapidamente para a India munições para as 'bazookas'. Preparei os aviões, tudo aquilo foi preparado. Vieram uns caixotes do Exército, enormes, pensava eu e pensava toda a gente que eram as munições de 'bazooka'. E foram para a India. Quando chegaram a Goa, os militares de lá precipitaram-se para os aviões, para tirar de lá as munições das 'bazookas'. Qual não foi o seu espanto quando abriram os caixotes e, em vez das munições das 'bazookas', estavam lá... chouriços. Chouriços!"

           Almeida Santos
             Em 1962, Marcelo Caetano num parecer sobre a questão colonial, propôs algo de semelhante à teoria que veio a ser perfilhada, 12 anos mais tarde, pelo general Spínola: a substituição de um Estado unitário por um Estado federal. Salazar nem sequer respondeu ao parecer de Caetano. E aquele que viria, seis anos mais tarde, a ser o sucessor de Salazar, virou-se então para os lados da oposição, em busca de apoios para uma solução federativa. Almeida Santos, advogado em Lourenço Marques, que viria a ser o ministro da descolonização, foi um dos seus interlocutores:
               "Eu tive acesso a esse parecer - recorda hoje Almeida Santos - e mais tarde, quando ele saiu de reitor da Universidade de Lisboa e estava numa espécie de oposição ao regime, tive vários contactos com ele, troquei impressões com ele sobre isso. Na altura, eu próprio defendia uma solução federativa, embora convicto de que os laços federativos eram para cortar. Era uma espécie de fazer um parto sem dor, um processo desinflamatório. Marcelo Caetano fez, em palavras, a apologia dessa solução, em conversas comigo. Fez juízos bastante depreciativos, na altura, sobre os responsáveis políticos do regime que estavam à frente da política colonial. Mais tarde, quando foi primeiro-ministro, esqueceu-se disso tudo e veio até a nomear alguns desses indivíduos para cargos de responsabilidade em relação ao Ultramar.
               "Pergunta - Esqueceu-se? Ou não teve meios, nem forças, para aplicar esse projecto?
               "A. S. - Foi um esquecimento táctico. Não lhe fugiu da memória. É verdade que ele encontrou da parte da direita militar uma impossibilidade de aceitação daquelas ideias. Simplesmente, ele quando visitou o Ultramar [Abril de 1969] e veio de lá depois de ter recebido recepções bastante afectuosas, porque se esperava dele alguma mudança, se ele tem batido com a porta e tem decidido fazer eleições, ninguém o impediria de fazê-las. E talvez na altura as ganhasse, porque nessa altura tinha-se a esperança que ele fizesse a abertura. Por outro lado, esqueceu-se de uma coisa que é sempre o último recurso, quando se não concorda em consciência com o futuro da evolução das coisas: pede-se a demissão. E tinha ficado um herói nacional. Assim, não ficou."
             À revelia dos generais da guerra, houve quem negociasse, por exemplo com a FRELIMO. Em Setembro de 1973, o engenheiro Jorge Jardim firmou um acordo, em Lusaka, com o presidente da Zambia, Kenneth Kaunda, e com a Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO. Almeida Santos acompanhou e estimulou a negociação:
               "Eu tive a felicidade de ir tendo notícias desse acordo - conta Almeida Santos - e até de o estimular, como calcula.
                "Pergunta - Mas o Acordo de Lusaka foi negociado com o presidente Kaunda ou com a FRELIMO?
                 "A. S. - Negociado com a FRELIMO. O presidente Kaunda serviu apenas de hospedeiro e de intermediário.
                 "Pergunta - Com a direcção da FRELIMO? Com Samora Machel?
                 "A. S. - Com Samora Machel, claro que sim. Era impossível fazer-se o que quer que fosse, nessa altura, sem o beneplácito de Samora Machel que, nessa altura, tinha uma posição muitissimo mais razoável, porque a deterioração da situação no terreno e nas Forças Armadas, a seguir ao 25 de Abril, é que lhe deu um reforço de exigências e de agressividade, mesmo militar. Teria sido bom que Marcelo Caetano tivesse aceitado esse acordo [Caetano rejeitou o acordo firmado por Jardim em 17 de Abril de 74]. Eu penso que a descolonização de Moçambique teria servido de paradigma para outras descolonizações de outros territórios e teria sido a saída para soluções políticas em vez de bravatas militares."

            Vasco Gonçalves
                Spínola pôs os seus pontos nos is do Programa dos capitães. O então coronel Vasco Gonçalves, um dos autores do Programa original, diz que Spínola impôs alterações:
               "Pois impôs - confirma o general Vasco Gonçalves -. Eu até andei nessas discussões e nessas alterações. Sobretudo na parte colonial, nós éramos mais afirmativos quanto à autodeterminação e à independência. E ele não gostava de certas palavras, como a palavra fascista. E partidos políticos, quis que lhes chamássemos associações políticas. Mas eu pensava que o fundamental era reunir a malta para derrubar o governo e que essas alterações, ao fim e ao cabo, não eram assim tão importantes como isso. E que depois, o próprio desenrolar dos acontecimentos iria obrigar a tomar posições. Por exemplo, a descolonização seria inevitável.
               "Pergunta - Nesse confronto, qual era o poder do general Spínola?
               "V. G. - O general Spínola tinha poder. Tinha apoios dentro do MFA, até por ser o autor daquele livro, o "Portugal e o Futuro", que foi uma bandeira para alguns camaradas. Aquela rapaziada como um Vasco Lourenço, um Dinis de Almeida, um Maia, não precisava de bandeira nenhuma. Mas para muitos ele foi uma bandeira. Portanto, o general Spínola tinha apoios dentro do MFA e tinha, depois, um poder institucional por ser presidente da Junta.
A guerra não terminou por decreto e, entre 25 de Abril de 1974 e o termo dos combates, ainda morreram nos três teatros de guerra 530 militares portugueses, 159 dos quais em resultado directo de acções de combate. Não foi para isso que os militares fizeram o 25 de Abril. Para o general Vasco Gonçalves, não só por razões humanitárias, o 25 de Abril deveria ter significado o cessar-fogo nas colónias:
               "Nós devíamos ter feito, no próprio dia 25 de Abril - diz Vasco Gonçalves -, o cessar-fogo imediato, unilateral. Se o tivéssemos feito, a descolonização teria corrido melhor. Se nós tivéssemos dito, naquele momento: Da nossa parte, cessam as operações. Porque nós tínhamos poder para isso, tínhamos força suficiente para actuarmos se eles continuassem as operações. Se nós temos declarado o cessar-fogo imediato, tínhamos outro moral para exigir às nossas tropas que combatessem se os tipos não aceitassem esse nosso cessar-fogo unilateral. Assim, não tivemos."
Descolonização sem força no terreno e à pressão. O general Vasco Gonçalves recorda-se, pelo menos, de um episódio de pressão sobre o Governo Provisório:
               "Uma vez - relata Vasco Gonçalves - veio cá o actual brigadeiro Pires Veloso, em representação do MFA de Moçambique, dizer-nos: “Ou vocês fazem o cessar-fogo imediatamente ou então fazemos nós lá o cessar-fogo, unilateral."

            Carlos Fabião
           Não havia solução militar para a guerra e o regime recusava-se a negociar a paz. Era esse o labirinto do general Spínola. O coronel Carlos Fabião, oficial do Estado-Maior de Spínola na Guiné, testemunhou a entrada do general para o seu labirinto:
               "Ele chegou à Guiné - recorda Carlos Fabião -, estudou o que se passava, visitou a Guiné toda, falou com todos os comandantes, correu com alguns deles, correu com alguns chefes civis também, instalou-se e fez uma reunião para a qual convocou os comandantes militares mais importantes da Guiné. E apresentou este conceito, para mim revolucionário: Uma guerra subversiva nunca está ganha nem nunca se ganha militarmente. Só é possível ganhar politicamente. Portanto, eu não vou pedir que ganhem a guerra, porque vocês não têm capacidade para ganhar a guerra. Quem tem que ganhar a guerra sou eu. A vocês só vos peço que não me percam a guerra e que me dêem tempo para eu conseguir ganhar politicamente a guerra."
            No seu estertor, o regime apadrinhou a realização de um Congresso dois Combatentes, para juntar adeptos da guerra. Mas os combatentes das matas de Angola, da Guiné e de Moçambique, não só não responderam à chamada do Congresso, como se organizaram para contestar a iniciativa dos combatentes da rectaguarda. Da comissão que promoveu a contestação ao Congresso faziam parte, entre outros, Firmino Miguel, Ramalho Eanes, Carlos Fabião:
               "Em fins de 72, princípios de 73 - recorda Carlos Fabião - o general Spínola começou a receber cartas de várias pessoas, com quem não teria grande convivência, como o general Câmara Pina, que lhe falavam da necessidade de um 'retorno à bandeira'. Pusemo-nos em campo, a ver o que significaria esse 'retorno à bandeira' e chegámos à conclusão que essa gente pretenderia um retorno ao que eles chamavam 'a pureza do 28 de Maio'. Ora qualquer endurecimento da situação interna tornaria mais difícil resolver o problema ultramarino. E resolvemos então, na Guiné, impedir a realização ou, pelo menos, a exploração do Congresso dos Combatentes, e que o melhor era que os oficiais do Quadro Permanente se manifestassem em bloco, ou em grande quantidade, contra a realização do Congresso. Recolhemos umas 400 e tal assinaturas e divulgámos um documento, assinado pelo Marcelino da Mata e o Rebordão de Brito, um natural da Guiné e outro de Cabo Verde, e que eram os militares, um do Exército, outro da Martinha, mais condecorados. Como pode imaginar, quando nós, oficiais do Quadro Permanente, nós combatentes, aparecemos a dizer que não aderíamos ao Congresso e que não reconhecíamos idoneidade aos organizadores, aquilo foi um nado-morto. O general Kaúlza ainda mandou um telegrama de felicitações e de incitamento ao Congresso, mas nenhum dos outros generais das frentes de combate tomou posição. E aquilo acabou por ser presidido por um general na reserva e não teve representattividade nenhuma.
               "Pergunta - Foi acidental o facto dessa contestação ter nascido na Guiné?
               "C. F. - Os oficiais que estavam na Guiné tinham capacidade de conspirar à vontade, sabendo que não havia perseguições contra eles, porque tinham a grande capa do governador a tapá-los. Para além da disposição, havia possibilidades de se poder conspirar com relativa segurança e até com determinado apoio para estas questões.
               "Pergunta - E isso porque o general Spínola era tolerante ou também ele conspirava?
               "C. F. - O general era tolerante e conspirava."
Constituído o Movimento dos Capitães, o general Kaúlza de Arriaga ainda chegou a recolher votos numa reunião para liderar o Movimento, embora a grande distância dos votos obtidos por Spínola ou Costa Gomes. E nas paredes de Lisboa, por essa altura, apareceu pintada, em profusão, a letra K. Mas a maioria dos oficiais contestatários não se guiava pelas estrelas do general K. Em Dezembro de 1973, durante uma aula no Instituto de Altos Estudos Militares, o tenente-coronel Carlos Fabião alertou os futuros majores para a conspiração dos generais:
               "Disse simplesmente - recorda Carlos Fabião - que os generais Kaúlza, Silvério Marques, Troni e Luz Cunha estavam a preparar um golpe de Estado que passava pela neutralização dos generais Costa Gomes e António de Spínola. E disse também que estava a dar a informação, mas para não se especular com ela. Claro que, logo no primeiro intervalo, eles sairam da sala e foram contar a toda a gente."
Carlos Fabião ainda voltou à Guiné para liderar a transição do regime colonial para o reconhecimento da independência. E não ficou com dúvidas: de ambos os lados da guerra, a aspiração era de paz:  
               "O que eu assisti na Guiné na altura em que se avançava para a paz - recorda Carlos Fabião - foi algo que condena veementemente toda a guerra. É difícil de compreender mas eu vi que, ao fim de dez anos de guerra duríssima, os indivíduos de ambos os lados, quando se encontravam, se abraçavam e conversavam como amigos. Um dia, antes ainda de qualquer acordo, uma patrulha do PAIGC chegou à porta de um quartel onde eu estava, no Sul da Guiné, pediu para entrar e a sentinela disse-lhes: Oh camaradas, vocês entram mas deixam as armas à porta? Entraram, foram à cantina, pediram cerveja e tabaco, pagaram, saíram, pegaram nas armas e voltaram para o mato."
E foi assim o adeus às armas na Guiné-Bissau. Portugal acabou por reconhecer a independência da Guiné, em 10 de Setembro de 1974. Foi o 87º país a fazê-lo.

Lemos Pires
Com a poderosíssima Indonésia na outra metade da ilha de Timor, o poder de Portugal dispunha de uma força militar simbólica de recrutamento local enquadrada por oficiais portugueses e reforçada por duas companhias de caçadores e uma de Polícia Militar. Os pedidos para o reforço da guarnição não obtiveram grande resposta, nesses tempos em que a opinião das ruas era quem mais ordenava e, neste caso, ordenava que não embarcasse «nem mais // um só // soldado para as colónias».
Um destacamento da Força Aérea, em Março de 1975, dois pelotões de pára-quedistas, em Junho, uma corveta, em Outubro, foi o que se conseguiu arranjar em Lisboa, onde por esse tempo toda a gente contava espingardas. Mesmo assim, o governador e comandante militar português, tenente-coronel Lemos Pires, ainda ponderou o emprego da força:
«Contra todas as expectativas - recordava o brigadeiro Lemos Pires -, quem quebrou a paz foi a UDT. Toda a gente admitia que viesse a ser a FRETILIN. Mas não, foi a UDT. Ponderei a decisão de actuar militarmente, mas isso levantaria um problema objectivo, que era ver o governo militar português aliado com a FRETILIN contra a UDT. E isso seria inaceitável por parte da Indonésia em termos de conjuntura regional. A intervenção militar não iria trazer a solução política. Só a negociação.
- «E negociar era possível?
L. P. - «Não digo que seria impossível. Mas era muito difícil por causa do quadro que o 25 de Abril tinha criado em Timor: um quadro de surpresa e de imaturidade, por parte dos timorenses, e de desconfiança, por parte dos países da área, fundamentalmente por parte da Indonésia.
- «E a invasão, não estava no horizonte?
L. P. - «Praticamente desde que começou a haver disputa política em Timor.
- «E havia timorenses a favor dessa intervenção?
L. P. - «Havia timorenses que desejavam uma intervenção, fosse de quem fosse, até da Indonésia, para pôr cobro ao caos político em Timor.
- «E a Indonésia instigou, de algum modo, a confrontação entre timorenses?
L. P. - «Não tenho dúvidas nenhumas que a Indonésia não foi isenta em relação ao processo e que montou uma máquina com objectivos de criar a desestabilização em Timor.
- «A fronteira ideológica e estratégica Leste - Oeste passava pela ilha de Timor?
L. P. - «O 25 de Abril em Portugal coincidiu com a queda do Vietname e um aumento da influência comunista na Ásia, o que tornou muito sensíveis os países do Pacífico e alguns países ocidentais com interesses na área, como os Estados Unidos. Eu aceito perfeitamente que a Indonésia ou a Austrália ficassem preocupadas com a descolonização de Timor e com a possibilidade daquele ponto diminuto que era Timor se transformar num ponto de influência comunista a alastrar na Ásia. Já com o que não posso estar de acordo é com a forma de interferência da Indonésia. 
Portugal perdeu o tempo de intervir militarmente e também o tempo de negociar em Timor. E quando as tropas de Jacarta passaram a fronteira, já as tropas portuguesas tinham tocado a retirar para a ilha de Ataúro.

Rosa Coutinho
           Em 25 de Abril, António de Spínola, era a face da revolução triunfante, presidente de uma Junta militar da qual faziam parte os generais Costa Gomes, Jaime Silvério Marques, Diogo Neto e Galvão de Melo, e os almirantes Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho. Foi a Junta de Salvação Nacional que se apresentou, já na madrugada de 26 de Abril, como o poder triunfante da revolução, proclamando ao país o Programa do Movimento das Forças Armadas. Rosa Coutinho diz, no entanto, que alguns dos generais da Junta assinaram o programa de cruz:
               "O general Costa Gomes e o general Spínola tinham lido o Programa - recorda Rosa Coutinho -. Eu e o almirante Pinheiro de Azevedo tínhamos lido o Programa. Os outros três não tinham.
               "Pergunta - E o Programa apresentado pela Junta era o Programa do Movimento?
               "R. C. - O Programa do Movimento foi modificado. E foi a razão porque a apresentação do Programa demorou mais tempo do que estava previsto. As pessoas ficaram à espera que a Junta aparecesse na televisão, mas a Junta demorou umas horas. A primeira proposta de alteração do general Spínola foi que o Programa não fosse comunicado publicamente e ficasse como um gentlemen's agreement entre os militares que tinham feito a revolução. Mas aí o MFA não cedeu e o Programa teve que ser lido. E depois o Programa foi modificado em alguns pontos."
Petróleo e um fósforo, foram os ingredientes lançados para a descolonização de Angola. A Junta Governativa presidida por Rosa Coutinho negociou, um a um, acordos de cessar-fogo em Angola, não conseguindo ultrapassar as velhas rivalidades que impediam a FNLA, o MPLA e a UNITA de se sentarem à mesma mesa:
               "Juntá-los à mesa, praticamente não consegui - diz Rosa Coutinho -. Consegui foi assinar acordos de cessar-fogo com todos.
               "Pergunta - Com a UNITA já estava assinado...
               "R. C. - Com a UNITA já tinha sido assinado no tempo do general Silvino Silvério Marques. A UNITA estava pronta. Aliás, a UNITA dependia do Exército português.
               "Pergunta - Velhos conhecimentos, do tempo do general Costa Gomes como comandante militar em Angola, no tempo da guerra...
               "R. C. - O estabelecimento da UNITA em Angola foi favorecido pelo general Costa Gomes que, como chefe militar não militarista, travou e frustrou o avanço do MPLA no Leste, criando-lhe 'tampões', essencialmente constituídos pela UNITA, pelos 'Catangueses', que eram os mercenários mais baratos que o Exército português utilizou, pelos 'Fieis', pelos 'Leais' e pelos 'Flechas'.
               "Pergunta - Voltando a 1974: assinou então acordos com os movimentos...
                "R. C. - Foram assinados acordos, permiti-lhes que abrissem delegações em Luanda, subsidiei-os por igual e, a seguir, convoquei aquilo que veio a ser a Conferência do Alvor, que marca o limite da minha actuação em Angola."
Particularmente em Angola, mas também nas outras ex-colónias portuguesas, a importação do modelo político trouxe consigo os senhores da patente, os "camaradas", distantes, altivos e burocráticos. O almirante Rosa Coutinho, que depois de ter presidido à Junta Governativa de Angola, em 1974, dirige uma empresa de cooperação técnica e comercial, não ficou bem impressionado:
               "Os soviéticos nunca perceberam nada de África - reconhece Rosa Coutinho -. Um dos seus maiores erros foi meterem-se em África, com uma auto-suficiência que não era justificada, porque não sabiam nada de África.
               "Pergunta - E os cubanos?
               "R. C. - Os cubanos também não sabiam, mas tinham uma capacidade de adaptação muito maior. A sua mentalidade e a sua maneira de ser estavam mais próximas.
               "Pergunta - Era o Terceiro Mundo?
               "R. C. - Era o Terceiro Mundo. Mas não é que não tenham feito asneiras também."

              Alfredo Maragrido
               Para homens que sonharam a descolonização, sob qualquer que fosse a modalidade, guiando-se pelos princípios internacionalmente consagrados e aceites do direito dos povos à autodeterminação e à independência, os resultados da descolonização portuguesa são hoje de algum modo pungentes e frustrantes.
                    Alfredo Margarido, professor de História de África em Paris, considera mesmo que não houve descolonização:
                    «Conviria talvez dizer: não houve descolonização portuguesa – começa por dizer Alfredo Margarido -. Descolonizações são processos de negociação, como fizeram os franceses, os ingleses, os belgas, os espanhóis. Nós, devido aos efeitos de uma ideologia e da teimosia do professor Salazar, da influência negativa das famosas teses do luso-tropicalismo, postas a circular em 1954, acabámos por recusar toda e qualquer solução negociada. O resultado foi que tivemos uma guerra estúpida, de 1961 a 1974, treze anos de guerra, treze anos de paragem do país. Porque a guerra colonial é uma paragem. Mesmo se houve progressos e modificações internas, elas não foram o que seria de esperar se não tivesse havido o peso da guerra. E então, os portugueses foram obrigados a fazer estas contas simples, que acabaram por ser resolvidas pelos militares: O preço a pagar era superior aos benefícios obtidos pela guerra. Essa contabilidade significa que os portugueses foram obrigados a abandonar a guerra. E fizeram esta coisa simples: abandonaram também as colónias. Não houve descolonização.»
                    Com a guerra colonial e a descolonização a par da guerra fria, houve um Leste / Oeste no Import / Export das ideologias e dos modelos políticos. Nos países africanos saídos da descolonização portuguesa, o modelo seguido foi o dos partidos únicos, vanguardistas, com mais ou menos variantes e mais ou menos confusões ideológicas.
                  «Por exemplo, foi o caso dos angolanos, que eu conheço melhor - acrescenta Alfredo Margarido -. Os angolanos viveram com três ou quatro modelos constantes: o modelo argelino, porque uma parte do aparelho político esteve exilado na Argélia e aprendeu na Argélia todas as regras do partido único, centralizador, unitário e imperativo; o modelo cubano, salvo que lhes faltava o Fidel Castro; o modelo chinês, visto que Mao Tsé Tung exerceu uma certa influência; e, finalmente, o modelo soviético. Essa confusão levou à exacerbação terrível, que ainda não desapareceu, do partido único, que continua a marcar todas as opções do MPLA e que marca, ainda pior, todas as opções da UNITA.
              - «Poderá dizer-se que Angola tem, assim, dois partidos únicos?
              A. M. - «Dois partidos únicos. Um que é ainda assim um partido, porque tem um aparelho mínimo orgânico, outro, um partido único ditatorial de uma pessoa. É o Amin Dada revisto e mal preparado. Uma tragédia para os angolanos»
                 Heranças do colonialismo como também do anti-colonialismo: nas ex-colónias portuguesas, os blocos Leste e Oeste cobraram a factura do apoio aos movimentos emancipalistas, com a exportação de ideologias e de modelos políticos.

                A descolonização fez-se sob o fogo intenso de outras guerras. Foi um parto com dor. Mas para a história ficaram novos países que se tratam por tu em português.

Entrevistas de João Paulo Guerra, 
TSF, O Regresso das Caravelas, Abril de 1994 
O Programa O Regresso das Caravelas venceu todos os prémios de reportagem atribuídos em Portugal relativos ao ano de 1994: Prémio Nacional de Reportagem Repórter X, do Clube de Jornalistas do Porto; Prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas; e Prémio de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa. 
Foto de Alfredo Cunha cedida para a primeira edição
 de O Regresso das Caravelas








O conjunto de seis episódios de "O Regresso das Caravelas", transmitido pela TSF em Abril de 1994, baseou-se num conjunto de entrevistas a Adriano Moreira, Alfredo Margarido, Almeida Santos, António Cardoso e Cunha, António de Spínola, António Ramalho Eanes,  António Ramos, António Rosa Coutinho, Carlos Fabião, Carlos Galvão de Melo, Costa Borges, padre Domingos Ferrão, Ernesto Melo Antunes, Fernando Salgueiro Maia, Francisco da Costa Gomes, Jonas Savimbi, John Pinock Eduardo, José Veiga Simão, Kaulza de Arriaga, Lemos Pires, Lúcio Lara, Luís Cabral, Manuel Monge, Manuel José Homem de Mello, coronel Manuel dos Santos "Manecas", D. Manuel Vieira Pinto, Marcelino dos Santos, Mário Soares, Paulo Pires, Pezarat Correia, Vasco Gonçalves, Vítor Ramalho, Waldemar Paradela de Abreu. 
O conjunto de programas foi posteriormente passado a livro e publicado por Edições D. Quixote (1996), Circulo de Leitores (2000) e Oficina do Livro (2009), com edições sucessivamente revistas e aumentadas. 

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