TSF, 22 de
Fevereiro de 1994,
nos 20
anos da publicação
de Portugal e o Futuro.
O general Spínola no seu labirinto:
António
de Spínola – Como é do
conhecimento público, servi em Angola nos anos de 1961 a 64 em desempenho de
missões estritamente operacionais. Esses anos de actividade militar foram para
mim uma grande escola política. Foi aí que senti que a nossa guerra do Ultramar
não tinha solução militar. Anos depois, fui nomeado governador e
comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné onde a minha conduta foi pautada
por uma acção política evolutiva. Durante este período [Maio de 1968 – Novembro
de 1973] tomei algumas iniciativas junto do Professor Marcelo Caetano no
sentido de se por em prática uma nova política ultramarina, baseada no êxito
alcançado na Guiné-Bissau, onde a situação atingiu um ponto de tal modo
favorável a uma negociação sem condições para qualquer das partes propícia a
uma permanente presença cultural portuguesa.
O labirinto do general Spínola era uma frase
do historiador Arnold Toynbee: Portugal foi o primeiro império colonial e era
então, na segunda metade do século XX, o último. Mas talvez viesse a ser o
primeiro de uma nova era.
O labirinto do general Spínola: Que futuro
para Portugal? Que integração? Em que espaço? Com quem? Que caminho? A Europa?
A África Austral, passando Portugal a ser um país africano com uma colónia na
Europa? A Espanha? A Aliança Atlântica? Uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira?
António
de Spínola – Estou
convencido der que seria possível edificar, com pleno êxito, uma Comunidade
Lusíada.
Um labirinto a que o general tinha sido
conduzido pela experiência na Guiné: não havia solução militar para a guerra e
o regime teimava em não negociar a paz. O coronel Carlos Fabião, oficial do
Estado-Maior de Spínola na Guiné, testemunhou a entrada do general para o seu
labirinto:
Carlos
Fabião – Ele chegou,
estudou o que se passava, visitou a Guiné toda, andou em todos os sítios, falou
com todos os comandantes, correu alguns comandantes, correu também alguns
chefes civis, instalou-se e fez uma reunião para a qual convocou os comandantes
importantes todos da Guiné. E apresentou este conceito, para mim
revolucionário, que era o seguinte: uma guerra revolucionária nunca estará
ganha e não se ganha militarmente. Só é possível ganhar politicamente.
Portanto, eu não vos vou pedir que ganhem a guerra, porque vocês não têm
capacidade para ganhar a guerra. Quem tem que ganhar a guerra sou eu. A vocês
só vos peço que não me percam a guerra. E que me dêem tempo para que eu possa
ganhar politicamente a guerra.
Spínola definiu a estratégia para a Guiné.
Não podendo ganhar militarmente a guerra era precisa ganhar tempo. Mas se a
vitória militar estava condenada no terreno, a vitória política foi condenada
nos bastidores do poder. Em 26 de Maio de 1972, Marcelo Caet5ano convocou o
general para lhe dizer que do ponto de vista da defesa global do Ultramar era
preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra do que por acordo
negociado, abrindo caminho para outras negociações.
O general ainda estava na fase de se
escandalizar:
António
de Spínola – Pois Vossa
Excelência prefere uma derrota militar na Guiné? – Perguntou o general ao
Presidente do Concelho, segundo o seu próprio testemunho.
No regresso a Bissau, Spínola confidenciou
ao seu ajudante de campo, capitão António Ramos, hoje tenente-coronel, que
Caetano tinha medo:
António
Ramos – Disse-me o general que o professor Marcelo Caetano
teve medo da reacção da ultra-direita se embarcasse naquela aventura. E
portanto não quis avalizá-la.
Toda a estratégia de Spínola na Guiné
acabava de ser derrotada em Lisboa. E os contactos que o general ensaiara, por
intermédio do presidente do Senegal, com facções da guerrilha, nem sequer
chegaram à direcção do PAIGC, nem foram a ser entendidos como negociações, de
acordo com o testemunho de Luís Cabral, ao tempo secretário-geral-adjunto do
PAIGC:
Luís
Cabral – Isso não são
negociações. É um contacto na base do desprezo total pelos nossos sentimentos
de combatentes da liberdade, que não tem em conta os anos de guerra que
tínhamos feito, as conquistas da nossa luta. O PAIGC tem uma direcção, não é representado
por trânsfugas ou dissidentes. E em consequência, uma expressão que passou s
ser muito usada no nosso meio, a partir daquele momento, foi que Spínola teria
que passar a respeitar-nos como inimigos.
Derrotada a estratégia para negociar a paz,
o general intensificou a guerra, procurando conquistar pela força as posições
perdidas no sul da Guiné. Mas foi então que o PAIGC começou a usar misseis
terra-ar. A partir desse momento, já nem era possível ao general pedir aos seus
comandantes no terreno que não lhe perdessem a guerra.
Do lado da guerrilha, era a mira do coronel
Manuel dos Santos, Manecas,
comandante da anti-aérea do PAIGC, que estava apontada ao destino da guerra.
Manuel
dos Santos – Uma
anti-guerrilha moderna não se faz sem helicópteros, sem tropas
heli-transportadas e sem aviões de ataque ao solo. O facto de nós
interditarmos, de certo modo, o espaço aéreo às operações da anti-guerrilha
levou o Exército português a perder completamente a iniciativa no terreno. A
perder completamente a capacidade ofensiva. Ao que parece, o Exército português
não esperava que nós possuíssemos aquelas armas e que as soubéssemos manejar.
Pergunta – E sabiam?
MS – A verdade é que abatemos aviões.
Foi quando os Heróis do Mar perderam a supremacia aérea que o destino da guerra
na Guiné ficou traçado. Os primeiros aviões foram abatidos pelos mísseis
terra-ar Strella em Março de 1973; em
Agosto, o general Spínola regressou a Lisboa, antecipando o fim do mandato.
De visita à Guiné, por essa altura, o chefe
do Estado-Maior General, Costa Gomes, voltou a Lisboa com a sentença sobre a
situação militar:
Costa
Gomes – Estávamos à
beira da derrota militar. A situação na Guiné, naquela altura, era muito grave,
porque o PAIGC atacava no norte e no sul, causando-nos grandes baixas.
Foi a crónica dos efeitos da Guiné. Com a
derrota militar à vista, Spínola não quis reeditar o caso da Índia. E voltou a
Lisboa com a sua solução para a guerra passada a escrito. O original do livro Portugal e Futuro foi batido à máquina
ainda na Guiné.
A publicação do livro estava negociada desde
o Verão de 1973. Em nome da Editora Arcádia, tinham-se deslocado a Bissau, para
negociar com o general, a directora cultural, Natália Correia, e o editor, Paradela de Abreu.
Paradela
de Abreu – O general Spínola nunca disse o que era o livro. Era
um livro. E eu devo dizer-lhe que imaginei tudo, menos que fosse aquele livro,
aquela mensagem. Não fazia a menor ideia. Quando regressámos a Lisboa, o
general Spínola disse que o seu irmão iria entrar em contacto com a editora. E
assim foi. Tive uma reunião formal com o Dr. Francisco Spínola e percebi que
ele estaria a fazer uma espécie de concurso entre várias editoras, queria
negociar bem os direitos. Penso que estariam contactadas seis ou sete editoras.
Eu ofereci-lhe vinte por cento de direitos de autor sobre o preço de capa – o
normal no mercado português são oito, dez por cento -, eu ofereci o dobro, e
com uma garantia bancária do Totta e Açores. Ganhei imediatamente o concurso. Em
Novembro já havia provas tipográficas.
Pergunta –
E tudo isso sem conhecer o livro?
PA –
Nunca li o livro até ao momento de assinar o contrato e estive sempre
convencido que era uma história da guerra da Guiné. Recebi o original, das mãos
do Dr. Francisco Spínola, por troca da entrega da garantia bancária. E só
depois é que eu o li. Li-o nessa noite. E no dia seguinte, chamei um amigo meu
que colaborava comigo na Arcádia, o António Valdemar. Entreguei-lhe o original
do livro do general Spínola para ele ler e disse-lhe assim: António Valdemar,
este livro é a revolução.
O livro do general Spínola era a síntese de
diversos documentos e relatórios do próprio general e de oficiais do seu
Estado-Maior. O primeiro documento era de 1970 e foi a contribuição de Spínola,
encomendada por Marcelo Caetano, para a revisão constitucional de 1971: Algumas
ideias sobre a estruturação política da Nação. Título que segue de perto o do
quinto e último capítulo do Portugal e o
Futuro: Uma Hipótese de Estruturação Política da Nação. Outro documento que
esteve na base do livro foi um Relatório
da Situação datado de 1971 e que corresponde aos três primeiros capítulos
do Portugal e o Futuro. Tratava-se de
trabalhos colectivos que resultavam da soma de contribuições individuais de
oficiais do staff de Spínola, em
particular de Jorge Pereira da Costa, chefe da Repartição de Informações do
Estado-Maior.
Spínola não escreveu Portugal e o Futuro, podia ler-se na primeira página do Diário de
Lisboa de 16 de Janeiro de 1976. O jornal escrevia que, à semelhança de Kennedy
e de Nixon, Spínola recorrera a um escritor fantasma e o DL fornecia todos os dados para que os leitores concluíssem que o
verdadeiro autor do livro era Jorge Pereira da Costa, que trocara já a carreira
militar brilhante por uma fulgurante carreira de gestor. Transcrevendo
passagens de um documento na primeira pessoa, o DL dizia que desde 1969 Pereira da Costa escrevia, a pedido do
general Spínola, respostas a entrevistas, discursos, relatórios e até mesmo
cartas para o primeiro-ministro e o ministro da defesa. Jorge Pereira da Costa
não confirma nem desmente. Contactado, escusou-se a prestar qualquer declaração
dizendo apenas:
Jorge
Pereira da Costa - Esse é um capítulo encerrado da minha
vida.
António Ramos, hoje tenente-coronel, capitão
pára-quedista nos anos 70 e ajudante de campo do general Spínola na Guiné, admite
que o livro tem uma origem colectiva com base no trabalho da equipa de Spínola.
Mas quanto à autoria do livro não tem dúvidas:
António
Ramos – O livro é do
general Spínola. O que poderei dizer é que a génese do livro poderá partir de
uma reflexão colectiva, de depoimentos, de relatórios da situação política e
militar dos vários elementos que constituíam o Estado-Maior do general. Agora
que o livro é dele, estou perfeitamente à vontade, como ajudante de campo dele,
para lhe garantir que era de certeza.
Pergunta – A prática do general Spínola na Guiné
reflecte-se na teoria do livro Portugal e o Futuro?
AR – O livro reflecte a prática. O livro, no
fundo, é um produto da observação, do estudo, da análise da situação do País, à
época, evidentemente, observada de um ângulo que é a Guiné. O livro reflecte o
plano do general para criar na Guiné uma autonomia que poderia vir mesmo a ser independência
federada em Portugal. Tudo isso ficou completamente frustrado quando morreu o
Amílcar Cabral, com quem havia contactos, e que estaria nos planos do general
para primeiro-ministro da Guiné.
Pergunta
–
Quase que está a dizer que a morte de
Amílcar Cabral serviu os interesses daqueles que, em Portugal, queriam sabotar
esse processo de negociações?
AR – Pois eu não tenho dúvidas nenhumas. Nunca
deixei de pensar, e nunca ninguém me provou o contrário, que a morte de Amílcar
Cabral foi um trabalhinho feito, não pela PIDE, que era incompetente demais
para isso, mas a pedido da PIDE, por outro tipo de organização internacional
mais profissional.
O chefe do Governo conhecia as teses que
estavam na base do livro do general. Mas ainda pensou que era possível dar a
volta ao texto. Pensou mesmo nomear Spínola ministro do Ultramar mas arrepiou
caminho, porque o general, no entender do chefe do Governo, via as coisas pela fresta da Guiné. Era preciso abrir
uma janela.
A remodelação do Governo foi em Novembro de
1973, Silva Cunha foi a ministro da Defesa, a contas com uma revolta de
capitães, Baltazar rebelo de Sousa a ministro do Ultramar, a contas com a
iminente queda do Império. Em Janeiro, Spínola foi nomeado vice-chefe do
Estado-Maior-General. Marcelo Caetano pensava matar dois coelhos de uma
cajadada. Mandava Spínola, de visita prolongada para Angola e Moçambique, e a
nomeação talvez deitasse alguma fervura na água da contestação dos capitães.
Spínola passava a depender hierarquicamente
de Costa Gomes. Mas não foi isso que magoou o general. Marcelo Caetano conta no
seu livro Depoimento que Spínola se lhe queixou pelo facto da televisão, a RTP,
ter ignorado o acto da sua tomada de posse. A questão mediática era que o
general escrevera o discurso para o acto de posse a pensar intervir na crise
militar. Conhecia e alimentara na Guiné a contestação dos capitães. Conhecia e
participara em Lisboa nos primeiros actos da contestação dos generais que tinha
Kaúlza de Arriaga como cabeça-de-lista.
Kaúlza der Arriaga – Eu próprio, depois de vir de Moçambique,
entrei em contacto com os capitães. Soube da situação e através de um dos meus
chefes de gabinete entrei em contacto com eles. E disse-lhes: os generais
assumirão as suas responsabilidades, desde que, nas Forças Armadas, se mantenha
a disciplina e o respeito pela hierarquia. E a resposta dos capitães foi: Sim
senhor, agora os senhores generais façam o que têm a fazer. Depois, oe generais
não fizeram aquilo que deviam fazer, porque houve uma cisão, o Spínola, que estava
connosco, desapareceu. E os capitães foram evoluindo para o MFA, que afinal era
descolonizador e era marxizante.
Pergunta
–
Quando o senhor general diz: Os generais
assumirão as suas responsabilidades. Isso não poderá ser entendido como um
pronunciamento, um golpe de Estado?
KA – Claro que, para salvar o País, eu não tinha
escrúpulos nenhuns em promover um golpe de Estado.
Spínola cortou com a conspiração dos
generais. Quando os capitães o alertaram, o general já estava avisado.
Carlos Fabião – O general disse-nos que
estava avisado e que nós tomássemos atenção ao discurso dele quando tomasse
posse como vice-chefe do Estado-Maior General. O Vasco [Lourenço], com aqueles
modos dele, diz-lhe assim: Ó meu general, então eu venho falar-lhe numa
intentona e o meu general diz-me para estar a tenção a um discurso que vai
fazer daqui a uns tempos? Nessa altura já não haverá nada…
Spínola tomou posse do cargo de vice-chefe
do Estado-Maior General das Forças Armadas em 14 de Janeiro de 1974. E no
discurso de posse deixou um recado que tanto poderia ser dirigido aos generais
como aos capitães:
«As
Forças Armadas têm que manter-se coesas, clamas e disciplinadas. A disciplina
constitui o nervo-motor da eficiência de toda a máquina militar».
E foi disciplinadamente que dois dias depois
de tomar posse, Spínola submeteu o texto de Portugal e o Futuro à apreciação do
seu superior hierárquico. Costa Gomes lavrou um despacho a louvar a
oportunidade do livro. Mas remeteu a decisão sobre a publicação para cima. O
ministro da defesa, Silva Cunha, considerou o livro inoportuno e endossou mais
para cima a responsabilidade pela publicação. Marcelo Caetano entendeu que era
tarde demais para impedir a publicação. E o livro do general Spínola recebeu
assim um envergonhado Imprimatur por
parte do poder.
A 22 de Fevereiro de 1974, a bomba de papel
estoirava na primeira página do jornal República
e estava nas livrarias. Na livraria Apolo 70, em Lisboa, em poucas horas
venderam-se dois mil exemplares. Era O Livro
Esperado, como rezava a campanha publicitária traçada pelo director-geral
da Ciesa, Carlos Eurico da Costa. Uma campanha que jogava com o perfil do
general.
Carlos
Eurico da Costa – Era
uma figura muito sóbria mas ao mesmo tempo solene. Era o tom da campanha:
sobriedade e solenidade. Pena foi que o spot de televisão não pudesse ter sido
emitido porque a censura não permitiu.
Pergunta – Qual era o conteúdo dessa mensagem
publicitária?
CEC – Era uma mensagem muito curta, de oito
segundos, mostrava o livro, com a frase O Livro Esperado, os títulos dos cinco
capítulos do livro. Isso bastava para interessar qualquer pessoa interessada em
modificar a situação do País.
Pergunta – Na campanha, jogou também com a imagem
física do general Spínola?
CEC – Uma imagem emblemática, o general, o
monóculo. Tivemos o cuidado de fazer as fotografias como ele não fardado.
Pergunta – A campanha publicitária fez vender cinco
edições de cinquenta mil exemplares, ou será que o livro se vendeu por si?
CEC – A campanha foi relativamente pequena. E foi ultrapassada pelo próprio
sucesso do livro e pela publicidade que as pessoas faziam boca-a-boca. A campanha deu um apoio inicial.
Marcelo Caetano recebera o livro a 18 de
Fevereiro. Lera-o de um fôlego. E ao fechar o livro, tal como diz no seu Depoimento, tinha compreendido que o
golpe de estado militar era inevitável. No entender de Marcelo Caetano, o livro
não constituía uma tese mas um manifesto que dava uma doutrina e emprestava uma
bandeira à revolta dos capitães que, nessa altura, avançava já em passo de
corrida. Até o general Vasco Gonçalves está de acordo com esta leitura de
Marcelo Caetano:
Vasco
Gonçalves – O general
Spínola teve uma acção positiva ao escrever o livro Portugal e o Futuro que foi
uma bandeira para muitos dos meus camaradas aderirem ao Movimento das Forças
Armadas. Havia ali um general a dizer que a guerra só tinha uma solução
política, que era aquilo que a grande maioria sentia.
Pergunta – Os capitães precisavam dessa bandeira?
VG – O livro foi uma bandeira para aqueles mais
hesitantes. Um Vasco Lourenço, um Melo Antunes, um Vítor Alves, essa rapaziada
não preguiçava da bandeira do general Spínola.
Portugal
e o Futuro deu aos capitães uma bandeira e à revolta dos capitães
uma doutrina. Mas não seria essa a intenção do general Spínola. Afinal, o
próprio Marcelo Caetano tinha preconizado a mesma solução política para a
guerra: a autonomia progressiva das colónias, tendo no horizonte a
transformação do Estado unitário num Estado federal. Entre 1973 e 1974, o
general Spínola só fez, assim, a síntese das teses do federalismo.
António
de Spínola – O livro
Portugal e o Futuro representa uma evolução da política ultramarina que acima
de tudo proclamava que a guerra do Ultramar não tinha uma solução militar mas
antes e só uma solução política. Os militares tinham conseguido criar uma
situação de equilíbrio de forças de grande oportunidade para o governo central
desencadear acções a nível externo que possibilitasse uma evolução de acordo
com as melhores tradições políticas portuguesas. Portugal e o Futuro deu essa
oportunidade a Marcelo Caetano, a qual lhe era oferecida pelos próprios
militares que naturalmente a apoiavam, se se enveredasse por uma abertura que
associasse a democracia à consagração de uma Comunidade Lusíada. E porque
Marcelo Caetano também havia apoiado teses federativas, o livro Portugal e o
Futuro reforçaria a sua posição perante as forças mais conservadoras.
Infelizmente, o primeiro-ministro deixou-se dominar pelas forças conservadoras
que, no fundo, lhe eram hostis. E as conversas que tive com ele, graças aos
esforços do professor Veiga Simão, acabaram por não ter consequências na procura
de uma solução positiva.
A solução de Portugal e o Futura era a
criação de uma Comunidade cultural, económica e política, uma solução
federativa cimentada na solidariedade, uma federação de estados com
descentralização com descentralização administrativa.
Fora essa a tese - para além de Marcelo
Caetano em 1962 – dos generais que em 1961 quiseram derrubar Salazar. Foi
também essa a tese, em 1963, do Marechal Craveiro Lopes e de Manuel José Homem
de Mello num livro cujo título, Portugal
o Ultramar e o Futuro, terá antecipado o livro e as próprios teses de
Spínola.
Manuel
José Homem de Mello – Ele
retoma as minhas teses. Eu talvez
tenha vindo um pouco adiante. E o general veio muito atrás. E aquilo que o
general Spínola preconizava, que teria sido possível no início dos anos
sessenta, já não era possível. E a prova disso é que ele menos de um ano depois
está na Presidência da República e já não consegue realizar o livro, é
ultrapassado pelos acontecimentos.
Como os generais da tentativa de golpe de
61, como Marcelo Caetano em 62, como Craveiro Lopes em 63, as teses
federalistas de Spínola vieram a ser ultrapassadas pelos acontecimentos. Em
Fevereiro de 74, em vez de uma bandeira para a revolução, Spínola estendeu a
Marcelo Caetano uma tábua de salvação. Mas o chefe do Governo desconfiou, teve
medo, e acabou por perder a derradeira oportunidade.
António
de Spínola – O
primeiro-ministro, em vez de aproveitar uma oportunidade a seu favor, acabou
por fomentar um sentimento de revolta nas Forças Armadas. O 16 de Março não
tardou e foi reprimido. Mas o 25 de Abril surgiu vitorioso.
E foi assim que um livro, publicado em
Fevereiro de 1974, derrubou em Abril um regime pouco dado a leituras, para além
das páginas obrigatórias dos livros únicos. Como negócio, o livro foi um
sucesso: primeira edição, de 50 mil exemplares, em 22 de Fevereiro; segunda
edição, mais 50 mil, nos primeiros dias de Março; até finais de Setembro saíram
cinco edições, num total de 230 mil exemplares vendidos. Mas a Editora Arcádia
mudara de mãos em 1973, associando-se ao Grupo CUF, por intermédio da
Seguradora Império. E havia valores mais altos, acima dos cifrões do negócio:
entre a segunda e a terceira edições, o editor, Paradela de Abreu, foi
despedido pela Editora.
Paradela
de Abreu – Foi já a
administração nomeada pela Império para dirigir a Arcádia, em carta assinada
pelo Dr. Braúlio Barbosa, que me comunicou o despedimento.
A carta de despedimento do editor de Portugal e o Futuro têm a data de 7 de
Março de 1974, entre a segunda e a terceira edição do retumbante êxito
editorial.
Um outro episódio que marcou Portugal e o Futuro foi a associação
entre dois grupos económicos e familiares, Mellos e Champalimauds, para a
publicação do livro. Por contingências certamente alheias à estratégia dos
grupos, a editora do Grupo CUF imprimiu o livro de Spínola em papel fornecido a
preço de favor pela fábrica da Abelheira, uma empresa do Grupo Champalimaud. António
Champalimaud relatou para a sua biografia que o general Spínola – que
desempenhara diversos cargos não executivos em empresas do grupo - o contactou
no sentido de obter papel, que escasseava no mercado, para a edição do livro. Champalimaud
acedeu.
Não
vi como, ao fornecer o papel a Spínola, pudesse vir a arrepender-me, desabafou
o magnata.
A realidade é que Mellos e Champalimauds,
empresários monopolistas, cunhados e inimigos íntimos, também contribuíram indirectamente
para o derrube do regime.
Quanto a Spínola, querendo ou não derrubar
Marcelo Caetano, escolheu a arma certeira para deitar abaixo um regime que
tanto reprimira o pensamento, os livros e a leitura: arremessou-lhe um livro.
João Paulo Guerra,
TSF, 22 de Fevereiro de 1994
1 comentário:
muito bom! a memória e a História agradecem.
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