O regime anterior fundava-se na censura e na repressão. A
democracia restituiu aos portugueses o direito à informação e as liberdades de
expressão e de imprensa
Por João Paulo Guerra, Diário Económico, Abril 1999
Esta história tem 25 anos:
passou-se a 25 de Abril de 1974, em Lisboa, no Terreiro do Paço. Um jornalista
já veterano, trabalhando para uma agência de notícias, dirigiu-se a um jovem
capitão e perguntou-lhe se podia citar as suas palavras sobre os objectivos da
acção armada em curso naquela manhã. O capitão respondeu-lhe, textualmente: «É
também para que você possa escrever livremente que estamos aqui. A partir de
hoje você é um homem livre».
Antes de ir à sua vida e às
emocionantes notícias daquele dia, o jornalista fixou o nome do oficial gravado
numa tarjeta sobre o peito da farda de combate: Maia. Soube depois que se
tratava de Fernando José Salgueiro Maia, 29 anos, capitão de Cavalaria com
comissões de serviço em Moçambique e na Guiné, o homem que naquela manhã deu a
cara e estava disposto a dar a vida pela liberdade. Era um dos jovens capitães
cansados de uma guerra que ceifava vidas e que ceifava, de igual modo, as
liberdades.
Três anos antes, em 1971, sob
pressão da opinião pública nacional e internacional e da iniciativa de alguns
dos deputados da chamada «Ala Liberal», o regime adoptara uma Lei de Imprensa
que, teoricamente, abolia a Censura. Mas o regime não dava ponto sem nó. Antes
de adoptar a lei de Imprensa, o regime tinha revisto a Constituição. E na
revisão incluíra um parágrafo sibilino: «Ocorrendo actos subversivos graves em
qualquer ponto do território nacional, poderá o Governo adoptar as providências
necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a
restrição de liberdades e garantias individuais». Os mesmos deputados que
aprovaram a Lei de Imprensa aprovaram uma resolução considerando que, de facto,
ocorriam «actos subversivos graves em algumas parcelas do território nacional».
E foi assim que a excepção passou a valer mais que a regra. A Censura foi
abolida mas, em nome da defesa do Ultramar, foi no mesmo dia instaurado o
regime de Exame Prévio, perpetuando assim as medidas excepcionais decretadas em
1926.
Tem a data de 22 de Junho de 1926,
menos de um mês depois do 28 de Maio, a «ordem superior» que estabeleceu a
Censura à imprensa. O Ofício, que terminava com votos de «Saúde e
Fraternidade», mandava que cada jornal, antes de sair a público, enviasse
quatro exemplares para exame ao Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana. A
partir de 24 de Junho desse ano, os jornais portugueses passaram a ostentar uma
tarja negra na primeira página: «Visado pela Comissão de Censura». Em 1933, em
nome da «nova ordem das cousas», Salazar passou a definitivo o regime
provisório de Censura.
A guerra dos coronéis tinha outros
campos de batalha. O pretexto das guerras coloniais servia para manter a
Censura em geral, não apenas a censura a notícias de natureza militar. Vamos a
exemplos, citados por César Príncipe em «Os segredos da Censura», recolhidos
pelo jornalista nos telegramas diários dos coronéis que reescreviam as
notícias, e queriam escrever a História, com o traço grosso do lápis azul.
«O senhor coronel Páscoa foi
nomeado delegado do governo junto da Sociedade Estoril. Não dizer que se trata
do antigo director da Censura, mas sim do Exâme Prévio. Coronel Saraiva.»
«Notícia de que a distribuição de
panfletos favoráveis a Portugal em Londres foi feita por pessoas pagas. Cortar.
Cortar também o desmentido da Embaixada. Tenente Teixeira».
- «Livre de perigo a filha do Dr
Mário Soares. Não aproveitar a doença da filha para fazer a propaganda política
do pai. Coronel Saraiva».
- «Mantém-se a ordem sobre a não
publicação de qualquer programa em que se anuncie a presença de Marcelo
Caetano. Só depois de ter estado. Capitão Barros».
- «Foi proibida uma peça do Teatro
Experimental do Porto. Não dizer que foi proibida. Pode, no entanto, dizer-se
que já não vai à cena. Capitão Barros».
- «Missa na Sé concelebrada pelo
bispo do Porto e 200 padres em atitude de solidariedade. Cortar os 200 padres e
a solidariedade. Coronel Ornelas».
Com tanto corte e recorte, a
realidade era virtual, talhada pelos grandes interesses do regime e pelos
pequenos interesses dos seus servidores. Mas escondido pela Censura, como ficou
provado faz agora 25 anos, havia um país real à margem do país do nevoeiro dos
discursos e das verdades únicas e oficiais. Havia um país cansado da guerra que
saiu à rua, apesar de todos os avisos em contrário, para reclamar a liberdade e
o fim da guerra colonial. Foram essas as primeiras e espontâneas palavras de
ordem gritadas na rua no dia 25 de Abril de 1974 pelo caudal imenso de homens e
mulheres que seguiram a coluna do capitão Salgueiro Maia, do Terreiro do Paço
para o quartel do Carmo. Foram essas as
primeiras palavras sem o visto da Censura.
A caixa que mudou a TV em Portugal
Em 1957, quando Portugal importou a
caixa que lá fora ia mudando o mundo, estava tudo por mudar em Portugal. Tanto
que, certamente, não seria por uma questão de mudanças que o Governo do
prudente professor de Santa Comba introduziu no país essa maravilha da técnica
e da comunicação.
Em 57, o acontecimento do ano foi a
visita de Isabel II a Portugal. Mas isso foi em Fevereiro e a TV só nasceu em
Março. De resto, a RTP foi passando à margem dos casos do ano: o julgamento de
50 activistas do MUD/Juvenil (Junho), o V Congresso do PCP (Setembro) e o I
Congresso Republicano (Outubro). Em Novembro houve uma espécie de eleições para
a Assembleia Nacional, mas a oposição ficou pelo caminho por falta de garantias
de seriedade do acto eleitoral. E assim, o primeiro grande acontecimento
televisivo acabou por ser, em Outubro, uma palestra de um ilustre catedrático
do regime a demonstrar a impossibilidade científica e técnica dos soviéticos
terem posto em órbita, como constava no resto do mundo, o Sputnik, primeiro
satélite artificial.
Crise académica 1969 |
No seu «Depoimento» editado no
Brasil em 74, Marcelo Caetano conta que a necessidade das «conversas» surgiu
por lhe faltarem «quadros políticos activos e bem doutrinados» que
desanuviassem o ambiente toldado, não pelos opositores, mas por «aqueles que,
por fidelidade sentimental ao Dr. Salazar, não admitiam que depois dele
houvesse quem fosse capaz de conduzir serenamente a nau do Estado». E foi assim
que o novo timoneiro do regime se sentou de frente para as câmaras da RTP à
«conversa» com os portugueses.
Dados citados pelo autor do
«Depoimento», sem especificarem as fontes, garantem que a «Conversa em família»
era vista «por cerca de três milhões de pessoas», que «parava tudo», que «quem
não tinha aparelho de TV procurava o café mais próximo», que «na província
havia famílias que percorriam quilómetros para poderem-na assistir»!
Entretanto, a TV única inaugurara,
em Dezembro de 68, o 2º canal. Mas a alternativa à RTP da «Conversa em família»
continuava a ser a RTP de outras conversas para outras famílias: Vitorino
Nemésio puxando pela memória; o padre Raúl Machado batalhando contra as
impurezas e traições da língua portuguesa; João Vilaret batendo-se pela
divulgação da poesia; o engenheiro Sousa Veloso
lutando contra o míldio e o escaravelho da batata:
– «Despeço-me, com amizade, até ao próximo TV
rural».
Foi preciso chegar-se a 1969, com o
«Zip-Zip», para a TV entrar em diálogo e dar a palavra a gente simples e
pessoas comuns.
Revolução
pela rádio
«Aqui Posto de Comando do Movimento
das Forças Armadas».
Joaquim Furtado: "Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas" |
E a RTP fez tudo quanto lhe foi possível para
evitar que os capitães mudassem o mundo. Um engenheiro dos serviços técnicos
foi enviado para os emissores de Monsanto com a missão específica de sabotar as
comunicações do MFA. E quando a RTP aderiu, lá para o fim da tarde, já a
revolução se proclamava triunfante e o chefe do Governo seguia, a bordo da
chaimite «Bula», para o quartel-general dos revoltosos.
Ao longo de 1974 e 75, a RTP foi um
dos campos da batalha política que se travava no país: nomeações e
contra-nomeações, saneamentos e contra-saneamentos. Sinais dos tempos: em 1975,
José Mário Branco concorreu ao Festival da Canção cantando «Alerta, alerta»
pela «Democracia popular e ditadura proletária. Pois claro», mas os júris das
capitais de distrito optaram pela canção «País de Abril», muito bem cantada por
Duarte Mendes, capitão de Artilharia da Escola Prática de Vendas Novas.
Em 25 de Novembro, com o país à
beira da guerra civil, o pequeno ecrã foi ainda o palco do grande confronto.
Mas quando, no «prime-time» da revolução, Duran Clemente pregava às massas, a
emissão foi mudada para os estúdios do Porto e o capitão da 5ª Divisão foi
substituído na pantalha por Danny Kaye, «O homem do Dinner's club». Nos dias
imediatos a RTP arrumou a casa, saneando de novo, a torto e a direito, e
preparando-se, desse modo, para a «normalização»...
... O que significou, como veio a
verificar-se, a instituição da TV única como TV do poder, de cada governo que se
seguia na voragem dos tempos: nomeações e contra-nomeações, saneamentos e
contra-saneamentos, agora «legitimados» pelos resultados do voto popular. O
Governo nomeia o presidente, que designa os directores, que escolhe as chefias,
que fazem as agendas, marcam os serviços e arrumam as prateleiras.
1º de Maio de 1974 na Emissora Nacional |
Novidades, novidades, porque
mexeram com os hábitos dos portugueses, foram a instituição das telenovelas
brasileiras – «Gabriela», a primeira, foi para o ar a partir de 16 de Maio de
1977 – e da televisão a cores, em 7 de Março de 1980. E com o advento das TV's
privadas, a RTP perdeu a taxa de televisão que os portugueses pagavam, a bem ou
a mal, desde a fundação da televisão.
Em Fevereiro de 1992, o Governo
atribuiu licenças de televisão privada a duas empresas: a SIC iniciou as
emissões a 6 de Outubro desse ano, a TVI começou em Fevereiro do ano seguinte.
E a TV privada foi a caixa que mudou o mundo da televisão em Portugal. Pela
primeira vez, em 35 anos de vida, a TV do Estado enfrentou concorrência a
partir de 1992: menos de três anos após o arranque das emissões, em 31 de Maio
de 1995, a SIC ultrapassou as audiências da RTP. A concorrência revelara
aspectos e histórias de um país real até então ausente da televisão: um país
com manifestantes espancados em directo da Ponte 25 de Abril.
João Paulo Guerra, Diário Económico, Abril 1999
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