Café para os soldados |
A guerra acabou; a liberdade foi conquistada.
Por João Paulo Guerra,
Diário Económico, Abril 1999
Diário Económico, Abril 1999
«O prestígio do Exército Português
está muito por baixo». Quem o escrevia, em Outubro de 1973, em plena campanha
eleitoral para a Assembleia Nacional, não era o «Reviralho». Quem o assinava,
«A bem do Exército e da Nação», eram capitães do Quadro Permanente cansados de
13 anos de guerra.
Por essa altura estava no auge a
contestação a dois decretos do Governo sobre as carreiras militares e, no
terreno, a guerra estava militarmente perdida na Guiné. Spínola, que à chegada
a Bissau em 1968 pedira aos militares que aguentassem a situação no terreno o
tempo necessário para que se encontrasse uma solução política, regressara nesse
ano a Lisboa com uma grande frustração em relação aos seus planos. Os «falcões»
de Lisboa haviam recusado liminarmente a possibilidade de dialogar com a
guerrilha guineense e de encontrar, por essa via, a solução para um conflito
sem solução militar.
Cravos para as espingardas |
A movimentação dos capitães
começara na Guiné sob a capa de Spínola. O general era tolerante, mas a verdade
é que ele próprio conspirava e alimentava sonhos de poder. Os primeiros
documentos de contestação aos decretos governamentais foram redigidos em Bissau
por capitães do Quadro e por milicianos, ao mesmo tempo que uma equipa da
confiança de Spínola redigia e compilava os capítulos do que viria a ser o
«Portugal e o Futuro».
As reivindicações dos capitães não
passavam, nessa fase, do foro corporativo e as propostas de Spínola tinham em
vista o fim da guerra e a construção de uma federação de estados de língua
portuguesa fundada em relativa autonomia. Nem nos documentos iniciais dos
capitães, nem nos textos atribuídos a Spínola, se punha por essa altura a
questão do derrube do regime. A palavra revolução só entrou no léxico dos
militares já nos primeiros meses de 1974, depois de se extremarem as posições.
Em Dezembro de 73 Kaúlza de Arriaga
e outros generais tinham procurado arregimentar o descontentamento dos capitães
e usá-los como tropa de choque para um golpe militar com vista ao endurecimento
do regime e da política de guerra. Em Fevereiro de 74 a publicação de «Portugal
e o Futuro» abalou a confiança do regime num dos seus mais sólidos esteios, a
instituição militar. A prisão de alguns dos capitães contestatários, a
destituição de Spínola e Costa Gomes e o humilhante «beija-mão» da «brigada do
reumático» como sinal de desagravo ao chefe do Governo agudizaram os
sentimentos e a sensibilidade dos militares. Afinal, a solução dos problemas
tinha a ver com a implantação e prestígio dos militares na sociedade
portuguesa. E o problema do prestígio dos militares na sociedade portuguesa não
se resolvia enquanto os militares fossem olhados como o suporte armado de um
regime político que a sociedade portuguesa não escolhera. Tudo visto e
considerado, derrube-se o regime. O movimento corporativo dos capitães passou
por essa altura a designar-se por Movimento das Forças Armadas - MFA.
Em 25 de Abril de 1974 os capitães
derrubaram o regime e nesse mesmo dia entregaram o poder a um general, António
de Spínola. O tempo viria a revelar e a fazer detonar as contradições entre uns
e o outro. O confronto militar começou por um abaixo-assinado a circular nos
quartéis, o «Documento Engrácia Antunes», passou pelas barricadas do 28 de Setembro,
pela substituição de Spínola por Costa Gomes, e pelo tiroteio do 11 de Março.
Em 1975, ao longo do Processo Revolucionário em Curso - PREC, os militares
transformaram-se nos braços armados de diferentes projectos políticos. O
juramento de bandeira no RALIS, com os soldados de punho cerrado a jurarem a
sua fidelidade à classe operária, as violentas manifestações e
contra-manifestações, em Lisboa e no Porto, em torno das nomeações dos
comandantes das regiões militares, as conferências de imprensa de soldados
encapuçados, os SUV - Soldados Unidos Vencerão, a publicação do «Documento dos
Nove», encabeçado por Melo Antunes, e do «Documento do COPCON», liderado por
Otelo, foram batalhas de uma guerra que esteve para deflagrar a 25 de Novembro
de 1975. Mas Ramalho Eanes e os «Comandos» de Jaime Neves ganharam a guerra
antes mesmo que ela fosse declarada. Costa Gomes negociou os compromissos
possíveis e a tropa regressou à normalidade. Afinal, quem tinha razão era
Pinheiro de Azevedo: «O povo é sereno» e a força dos revolucionários, civis e
militares, era «só fumaça».
A Constituição da República ainda
foi redigida e aprovada, em 1976, sob a tutela dos militares, com a consagração
constitucional do Conselho da Revolução como garante supremo das «conquistas da
revolução». Mas o vencedor do 25 de Novembro, Presidente da República eleito e
do CR, foi o alvo da batalha seguinte. Tratava-se agora de fazer regressar os
militares aos quartéis. Nada que a primeira revisão da Constituição, em 1982,
não resolvesse.
A instituição militar regressou à
normalidade: subordinação ao poder civil, cadeias de comando, disciplina, ordem
unida. E é assim que, 25 anos após o 25 de Abril, os militares que fizeram a
revolução passaram à reforma ou à reserva e as Forças Armadas têm como ministro
um homem apeado do poder há 25 anos.
De acordo com dados oficiais do
Estado-Maior General das Forças Armadas, morreram nas guerras coloniais de
Angola, Guiné e Moçambique 8.831 militares portugueses – 3.455 em Angola, 3.136
em Moçambique e 2.240 na Guiné. Segundo a mesma fonte, 4.280 militares (48,5%)
morreram em consequência directa de acções de combate e 4.551 (51,5%) em
acidentes diversos nos teatros de operações. Em 1974, já depois do 25 de Abril
e até às assinaturas dos diversos acordos de cessar-fogo, ainda morreram 530
militares portugueses nas colónias, 159 dos quais em acções de combate.
De acordo com a Resenha
Histórico-Militar, publicada pelo Estado-Maior do Exército, as Forças Armadas
sofreram nos três teatros de guerra 27.919 feridos, 15.452 dos quais em acções
de combate (55,3%). A Associação dos
Deficientes das Forças Armadas e o Departamento de Psicoterapia Comportamental
do Hospital Júlio de Matos calculam que entre 30 mil e 100 mil combatentes
ficaram a sofrer de distúrbios pós-traumáticos do stress de guerra.
Entre 1961 e 74 foram recenseados
pelas Forças Armadas 1.140.000 mancebos para prestarem serviço militar, dos
quais foram incorporados e mobilizados para a guerra 820 mil (72%). Portugal
manteve, em média, durante os anos de guerra 55.029 militares em Angola, 31.910
em Moçambique e 20.876 na Guiné.
Segundo dados oficiais, os faltosos
e refractários atingiram em cada ano 18% do contingente, em média, constituindo
a emigração o principal destino de tais jovens. As estatísticas oficiais
referem que o número de desertores dos três teatros de guerra foi de 181 – 101
de Angola, 59 da Guiné e 21 de Moçambique.
No final das três guerras, 3.209 militares portugueses
tinham sido distinguidos com condecorações militares por feitos em campanha: 31
com a Torre e Espada, Valor, Lealdade e Mérito, 139 com medalhas de Valor
Militar e 3.039 com a Cruz de Guerra.
No dia seguinte ao do triunfo da
revolta dos capitães, o «New York Times» comentava: «Se a Junta conseguir
realizar o seu Programa, isso será um grande alívio para a NATO». O «Pravda»,
órgão do Partido Comunista Soviético, opinava: «O Exército português desta vez
fez causa comum com os progressistas». E o «Izvestia», órgão do governo
soviético, comentava: «Portugal só conseguirá libertar-se totalmente do seu
passado fascista se garantir a independência das colónias». A rádio
sul-africana adiantava que a África Austral «está numa fase crítica, para o
melhor ou para o pior», consoante Spínola conseguisse ou não os seus projectos.
«The Star», de Joanesburgo, previa que os acontecimentos em Portugal deixariam
os regimes rodesiano e sul-africano «mais sós do que nunca».
Estava feito o reconhecimento do
terreno. A revolução em Portugal iria mexer com o mapa dos interesses na África
Austral. Desencadeada para pôr fim à guerra na Guiné, Angola e Moçambique e
para instaurar a democracia em Portugal, a revolução dos capitães iria
descolonizar com vários anos de atraso sobre o calendário histórico da
descolonização, no rescaldo de conflitos armados sangrentos e traumatizantes e
sem força militar no terreno para negociar em posição de força, pois nenhum
militar queria morrer com o último tiro da guerra.
A descolonização travou de razões
Spínola e o MFA. O general sonhava ainda com o seu projecto federal exposto no
«Portugal e o Futuro». Os capitães queriam o cessar-fogo e não viam forma de lá
chegar sem ser através de negociações com os inimigos da véspera. E
negociações, já. Depois do 25 de Abril de 1974 ainda morreram nos três teatros
de guerra 530 militares portugueses, 159 dos quais em resultado directo de
acções de combate. Não fora para isso que os capitães tinham feito o 25 de
Abril.
Melo Antunes |
Foi nesse ambiente interno que
Portugal descolonizou, se é que pode chamar-se descolonização à mera
transferência de poderes para as vanguardas revolucionárias que tinham feito a
guerra à colonização portuguesa. Entretanto, na cena internacional dominada
pelo conflito Leste-Oeste, o apetite pelas ex-colónias portuguesas levou à
internacionalização de todos os conflitos. Em Angola, na fase de transição antes
da proclamação da independência, chegaram a combater zairenses, sul-africanos,
portugueses, norte-americanos, russos e cubanos, mercenários sem pátria e
até... angolanos.
Otelo Saraiva de Carvalho |
De acordo com o Recenseamento de
1981, a descolonização trouxe de volta ao território do país 505.078 cidadãos
nacionais, dos quais 309.058 vindos de Angola e 164.065 de Moçambique.
Chamaram-lhes «retornados». O retorno, em 1975, constituiu um impacto brutal
sobre uma economia frágil e vulnerável e uma situação política e social explosiva.
Com vista à reintegração dos «retornados», o Estado criou, por decreto de 31 de
Março de 1975, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais - IARN.
Oficialmente, o IARN recebeu e distribuiu 9 milhões de contos, entre Março e
Dezembro de 1975, e posteriormente concedeu créditos de 18,4 milhões de contos,
financiando 8.350 projectos e criando 65.000 postos de trabalho.
Bandeira do 25 de Abril, a
descolonização ficou a meia haste. Deixou cicatrizes em África e uma ferida
ainda hoje aberta em Timor.
João Paulo Guerra, Diário Económico, Abril 1999
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