Crónicas
à margem de uma reportagem na guerra em Angola
Por
João Paulo Guerra, suplemento de O Diário, Junho de 1985
Kuilo-Kuango 1985 |
Na
última semana de Abril [1985], saímos
da cidade do Lubango a caminho da fronteira no Cunene, iniciando a viagem a bordo de um helicóptero Mig 15 que transportava, para além de dois jornalistas, um bidão
atestado com 500 litros de gasolina. Indesejável companhia. Voávamos para sul da Cahama, Môngua e
Xangongo, tínhamos passado os cenários de terríveis batalhas entre as tropas
cubano-angolanas e as sul-africanas, seguíamos com destino ao que restava de
Onjiva, onde talvez apanhássemos um camião para Namacunde e depois seria a pé,
dali até à fronteira, em Ochikango, seguindo o trilho por entre campos de
minas.
Éramos dois jornalistas, um angolano e um português.
Quem me acompanhava era o David Mestre, jornalista da Angop e poeta. David
Mestre era o pseudónimo de um homem de uma coerência à prova da maior coragem e
despojamento, que trocara um sonante apelido português, e consequentes benesses, pela condição de cidadão
de Angola. Para além disso era poeta e eu levava na bagagem o livro do David publicado no ano anterior pela Ulmeiro e intitulado "Nas barbas do bando". Ainda mais além de tudo isto o David era um grande companheiro de viagem.
Tínhamos
desenrascado boleia a bordo de um transporte militar para chegar à fronteira
com a Namíbia, onde queríamos verificar se os sul-africanos, como diziam e tinha sido anunciado ao mundo, se
teriam retirado do território de Angola. E a verdade é que não
tinham, ao contrário do que os jornais publicavam. O grosso das tropas
sul-africanas estava, à vista, do outro lado da fronteira de Angola com a
Namíbia, ocupada ilegalmente pelos sul-africanos. Mas havia destacamentos de
tropas sul-africanas em território de Angola, nas barragens de Ruacaná e Calueque, 12 km para o interior
da linha de fronteira. E essa era uma notícia mundial em primeira mão, um scoop, como dizem os ingleses.
Desta vez percorri Angola, verdadeiramente
de Cabinda ao Cunene, como reza a palavra de
ordem do Governo do MPLA, sempre a "desenrascar" boleias aéreas. Não sei se o
momento mais dramático de toda esta digressão aérea foi o risco do voo de
helicóptero com 500 litros de gasolina a bordo sobre cenários reais de um
país em guerra; se foi a tempestade que apanhou o voo
nocturno do Lubango para Luanda, com o avião aos tombos, carga a rolar pela
cabina, adultos aos gritos, crianças a chorar; se foi o voo numa serena manhã
de Abril de Luanda para Kuilo Kuango, um lugar que não vem nos mapas, localizado no Nordeste da província do Uíge,
na linha de fronteira com o Zaire, e nos tempos da guerra colonial uma base
inexpugnável da FNLA. Admito que o momento mais perigoso tenha sido este.
Viajámos então à boleia do ministro da Segurança, Dino Matross, a bordo de um helicóptero com tripulação soviética, e a viagem, que nos
disseram que duraria menos de uma hora, já ia em hora e meia quando,
subitamente, a inquietação se instalou a bordo. Era apenas isto: os pilotos
soviéticos tinham-se perdido e pelo tempo e a direcção do voo estaríamos nesse
momento violando em profundidade o espaço aéreo do Zaire. Ora
um helicóptero tripulado por soviéticos,
transportando um ministro angolano, em violação flagrante do espaço aéreo do
Zaire, seria um belo pretexto para represálias do regime de Mobutu Sese Seko, sempre à procura de motivos
para manter-se em guerra com Angola. Em pleno conflito bipolar, éramos
passageiros de um transporte aéreo do Leste,
aliado de Luanda, a violar o espaço aéreo de um protegido pelo Oeste, armado com mísseis terrar-ar Stinger capazes de abater o helicóptero…
Foi uma crise dos mísseis à minha pequeniníssima dimensão…
Ochikango, a última fronteira |
Beber no Lubango
Ao contrário de Luanda, onde neste ano de 1985 não é possível sair de casa e comprar uma garrafa ou
beber um copo de água em nenhum estabelecimento, no Lubango há cervejarias abertas e até uma fábrica de
cervejas que, como quase
tudo no Sul de Angola, pertence a Venâncio Guimarães Sobrinho, o sogro do empresário
português Cardoso e Cunha.
Propus-me fazer uma reportagem na Fábrica da
Cerveja Ngola e lá fui, ao
volante de um jipe que tínhamos desenrascado, até à Fábrica, nos
subúrbios do Lubango. Falei com os directores e com trabalhadores da Fábrica,
observei o processo de produção, provei a cerveja gelada que pinga no termo da
linha da filtragem e preparava-me para me vir embora quando o director me perguntou:
«Como veio até cá?»
Respondi-lhe que tinha um jipe à porta e ele retorquiu:
«Ponha-o cá dentro».
Assim fiz e o director deu ordem para
carregarem 300 garrafas de cerveja no jipe. Não sei se isto pode ser considerado um
suborno, mas garanto que a gentileza, que é um uso da terra de Angola, nestes
tempos, em nada se intrometeu com a reportagem.
Voltei ao Hotel mas sabia que não podia deixar
o jipe nem um minuto, sob pena de
ficar sem uma única garrafa. Buzinei, veio o porteiro e pedi-lhe para mandar
chamar o David Mestre que estava a dormir a sesta no quarto número tal. Chegou
ensonado mas despertou num ápice quando lhe falei de 300 garrafas de
cerveja a bordo.
«Vamos beber para casa do Zé Pequeno»,
alvitrou.
E lá iniciámos a marcha. Acontece que o David
conhecia mesmo toda a gente no Lubango, onde tinha sido correspondente
da Angop, e pelo caminho
cumprimentava os amigos com um convite:
«Temos 300 cervejas e vamos para casa do Zé
Pequeno».
Cada um que se juntava á caravana chamava, por
sua vez, outros amigos.
«Temos 300 cervejas e vamos para casa do Zé
Pequeno».
Chegámos a casa do Zé Pequeno com uma multidão
a seguir o jipe em passo de corrida.
Não cabíamos todos em casa do Zé Pequeno e as 300 cervejas não davam grande
coisa a dividir por tanta gente.
Dias
depois, fui com o David Mestre a outra unidade de
produção a laborar na cidade, neste caso uma fábrica de destilados. Nunca mais vamos esquecer a declinação da linha de produção da fábrica,
que vai dos fermentados caseiros filtrados em capim, aos destilados
industriais: Rum, Blunga, Macau, Gorgorinho, Bicoacho e Aguardante Tempestade.
Passámos a usar entre nós, como senha e
contra-senha, esta ordem crescente na sucessão das bebidas explosivas do
Lubango. Dizia-se que à Aguardente
Tempestade bastava tirar a rolha para cair para o lado.
Mas foi o que nos valeu, foi a garrafa de
aguardente que trouxemos como recordação na fábrica de destilados do
Lubango, quando no regresso muito turbulento para Luanda, num voo nocturno, o avião foi apanhado por uma tremenda e
verdadeira tempestade. Sinceramente, toda a gente a bordo estava a admitir que não chegaria a Luanda. Era pois a
derradeira ocasião para abrir a garrafa. Abrimos, bebemos, e os tripulantes não
entendiam por que razão se ria tanto um par de jornalistas brancos mesmo quando o avião estava em vias de se despenhar.
Avião? Mas qual avião? Naquela noite, do Lubango
para Luanda, nós viajámos transportados nas asas da Tempestade.
Noites
do Lubango
Numa
das noites no Lubango, durante o périplo por Angola, na companhia do jornalista
angolano David Mestre, fomos despejados do Hotel, pois tínhamos excedido o
prazo da nossa marcação e havia outros hóspedes a chegar. Mudámo-nos então para
uma pensão.
Não
havia de ser nada. Na primeira noite no Lubango, ainda sem marcação no Hotel,
ficáramos numa casa da juventude, onde costumam hospedar-se equipas desportivas
que visitam a cidade. As casas de banho não têm luz e o chão apresenta uma
consistência viscosa, dormimos em tarimbas, cobertos por mantas encardidas, e
de manhã eu acordei sentindo qualquer coisa a passear por cima da minha manta.
Pareceu-me ser uma galinha mas não me atrevi a olhar e decidi pedir o parecer
do David. Chamei-o e quando consegui que ele respondesse perguntei:
«David:
anda alguma galinha a passear por cima de mim na minha manta?».
Ele
abriu um olho, olhou e respondeu:
«Anda».
Quanto
à primeira dormida na pensão recolhemos tarde, depois de muito
trabalho e de muita conversa em casa de amigos do David. Acordei estremunhado,
manhã cedo, com alguém a bater insistentemente à porta do quarto. E como estava
num país estrangeiro achei melhor que fosse o angolano a ver quem era. Chamei
por ele, insisti, até que o David acordou e foi abrir. Eram sete da manhã e quem
batia à porta do quarto eram umas miúdas. Na pensão estava
hospedado um cantor angolano de intervenção muito em voga, que cantava grandes arrazoados
políticos e usava o sugestivo nome artístico de Proletário.
E
perguntaram as miúdas que batiam à porta do quarto:
«É
aqui que está o Proletário?».
E o
David Mestre, impassível, sonolento mas de resposta imediata:
«Não.
Aqui só está a pequena burguesia».
Por João Paulo Guerra, suplemento de O Diário, Junho de 1985
Sem comentários:
Enviar um comentário