o diário, 13 de Abril de
1981
Álvaro Siza Vieira, português, arquitecto, 48 anos de idade [em
1981], é considerado lá fora como «um dos dez arquitectos mundiais da sua
geração capazes de transformar a arquitectura numa forma de expressão autêntica»,
como «um homem acima da moda», cuja obra «não se situa em nenhuma das correntes
contemporâneas».
«Os arquitectos não inventam coisa alguma. Transformam de
acordo com as circunstâncias», diz, à conversa com “o diário”, este homem socialmente
preocupado e politicamente empenhado na transformação da cidade e que considera
a intervenção popular como a base justa e sólida dessa transformação.
Para Siza Vieira, o 25 de Abril teve e tem um significado
social e político e repercussões de enorme importância mesmo no plano da
realização profissional. Tratou-se, por um lado, da oportunidade de «trabalhar
na cidade». Por outro lado, o desenvolvimento impetuoso, na cidade do Porto, da
intervenção das organizações de moradores tornou possível «projectar e realizar
através da discussão colectiva».
Malagueira, Évora |
- o diário – Um hábito ou um método?
- Siza Vieira – Um método. Claro que antes também
discutíamos com o cliente que encomendava uma obra. O que se passou de novo foi
isto ser posto à disposição das populações.
A intervenção dos moradores nas zonas degradadas para a
transformação da cidade do Porto centrou-se em três reivindicações essenciais:
a exigência da abolição dos regulamentos fascistas dos bairros camarários, a
melhoria das condições de vida e, sobretudo, diz Álvaro Siza Vieira, «a exigência
de permanecer no sítio onde viviam».
Mas «o sítio onde viviam», o antigo centro citadino, é a
zona das ilhas, a mais degradada da cidade. As primeiras reivindicações
disseram respeito à realização de obras nas casas e à instalação de equipamentos.
Depois, «as pessoas pronunciaram-se sobre a sua maneira de viver, indo até ao
plano do gosto, isto é, reivindicando qualidade».
É isto, para Álvaro Siza Vieira, o essencial do direito à
habitação: «o direito à cidade, a intervir na transformação da cidade».
Às organizações de moradores e à sua intervenção na cidade
do Porto esteve ligado, desde o seu arranque, o projecto SAAL. Siza, que trabalhou
intensamente nesse projecto de transformação da vida colectiva, apresentou o
SAAL em diversos países da Europa. Em Itália, por exemplo, onde todas «as escolas
de arquitectura organizaram exposições das realizações do SAAL e promoveram
debates com a participação de arquitectos portugueses. «O interesse maior –
diz-nos – estava na experiência de participação das populações nos protectos».
Pavilhão de Portugal, Expo 98, Lisboa |
O SAAL teve no Porto uma vida curta. «Mexeu com o Plano
Director e por isso tornou-se perigoso», esclarece. Em Lisboa, alguns projectos
tiveram seguimento. No sul, há programas que estão a ser desenvolvidos. Álvaro
Siza tem trabalhado nos últimos anos com a Câmara de Évora. Conhece de perto,
por dento, essa «experiência riquíssima de poder local democrático», de procura
pela autarquia de «todas as formas de acesso á casa». Em Évora, onde trabalha no
projecto da Malagueira, de construção de 1.200 fogos na zona Oeste da cidade,
diz haver a oportunidade, apesar de todas as dificuldades, de projectar e
realizar «a habitação social da qual não estejam alheias as preocupações de
qualidade».
A casa portuguesa
Da habitação social ficou uma imagem que o fascismo tentou
impor como modelo para todo o país, propagandeada nas canções ligeiras e associada
às virtudes da modéstia, do recato, da pobreza lavadinha.
- o diário – O que era a casa portuguesa, com certeza?
- Siza Vieira – Era a casa pequenina, modesta, contida,
porta pequenina, telhadinhos, janelinhas, tudo próprio de quem não vai para a
rua fazer manifestações.
Para Siza Vieira há, também na arquitectura, «um código que
serve os regimes e que projecta a sua ideologia». A «casa portuguesa» resultou
de uma tendência regionalista, utilizada num sentido obscurantista. Estava para
o fascismo português, como as grandes praças e alamedas estavam para os
desfiles e paradas militares do nazismo alemão.
À
casa portuguesa, contestando-a, contrapôs Siza Vieira, em 1958, com o projecto
do restaurante e casa de chá Boa Nova, em Leça da Palmeira, uma tentativa de encontrar
uma arquitectura adequada à realidade e aos problemas portugueses.
- o
diário – As casas dos emigrantes no norte são a «casa portuguesa» de hoje?
-
Siza Vieira – Aí o que me impressiona não é tanto a linguagem arquitectónica mas
o uso indevido do espaço, a construção selvagem em terrenos de cultura, fora
de quaisquer cuidados de planeamento.
Edifício da água, Huaian, China |
- o
diário – E a defesa do património? Fala-se muito. Até há cartazes oficiais e e
tudo…
-
Álvaro Siza – A defesa do património, como o regionalismo ou mesmo a participação,
são impulsos criativos que podem no entanto ser recuperados e transformados em
conformismo. A defesa do património não pode ser estática. Não se trata de
conservar o passado, mas de compreender e respeitar a linguagem de outras
épocas, correspondendo às necessidades, às exigências da nossa época.
Isto
porque, por um lado, Álvaro Siza Vieira considera que um monumento se relaciona
com o ambiente que o rodeia e, por outro, «é essencial recuperar as condições
de habitação dos cidadãos», respondendo «com qualidade, à qualidade das zonas históricas».
É de
Álvaro Siza, arquitecto, o projecto para um edifício de escritórios na Avenida
da Ponte, Porto, 1969: grandes paredes de vidro, espelhadas, refletindo e dando
continuidade aos monumentos circundantes.
Um novo Plano Director
A
herança do fascismo manteve-se, em larga medida, na realidade das cidades, como
da cidade do Porto. A realidade municipal volta hoje a ser marcada pelas
práticas da especulação, pela acentuação da divisão social da cidade. O
desprezo, por parte do executivo camarário, em relação à participação activa
dos moradores é a fonte da estagnação e do agravamento das muitas precárias condições
de vida da população.
Siza Vieira, Porto, Abril 1981 |
O
que é, seguramente, o caso.
-
Siza Vieira – Não há qualquer participação na elaboração do novo Plano
Director. A Câmara Municipal dispunha de uma base justa, sólida e criativa para
a transformação da cidade, na força organizada da população. Ignorando essa base
real, viva, fica logo a suspeição em relação aos resultados.
- o
diário – Parece que voltámos ao ponto de partida?
- Álvaro
Siza Vieira – Voltamos sempre.
João
Paulo Guerra, o diário, 13 de Abril de 1981
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