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Por João Paulo Guerra
Fotos Paulo Figueiredo
Fotos Paulo Figueiredo
Diário Económico,
revista Fora de Série, Junho 2006
Numa tarde de sol dos últimos
dias de Maio, no redondel do Monte de Pancas, o matador de toiros Vítor Mendes
treinava-se para o reaparecimento em Lisboa e, para os poucos que o viam, confirmava
uma tese. O toureiro faz o toiro, a menos que lide um manso perdido. A
expressão «fez dele um toiro» é de Ernest Hemingway e o escritor encontrou-a
durante o «Verão Perigoso» de 1959, quando acompanhou em Espanha toda uma
temporada de competição entre António Ordonez e Luís Miguel Dominguin. «Não era
verdadeiramente um toiro bravo, tardava no arranque, não era toiro para uma
‘faena’ espectacular. Mas António [Ordonez] começou a trabalhá-lo e fez dele um
toiro», escreveu o autor de «Fiesta».
No redondel de Pancas, observando
as vacas e novilhos, estudando-os, falando-lhes, ensinando-os, corrigindo-lhes
os defeitos, trazendo-os à lide, fazendo deles toiros, Vítor Mendes confirmava
a teoria e demonstrava como conhece bem o seu «cúmplice» no ‘ruedo’, como
disse, pouco antes do treino, durante a entrevista na sua casa em Vila Franca
de Xira. «Baixa a muleta», «dá um passo à esquerda», «avança o pé direito»,
«mostra-te», dizia Vítor Mendes para dois jovens discípulos com quem alternava.
E os animais respondiam de imediato ao estímulo e investiam. O conhecimento do
toiro é uma das razões pelas quais Vítor Mendes chegou à posição de «figura»
mundial do toureio, único português que desfruta hoje, e ainda, desse estatuto.
As outras razões são a inteligência, o domínio criativo da arte e da técnica de
lidar um toiro e uma valentia racional que ultrapassa o medo.
Retirado profissionalmente desde Setembro
de 2001, Vítor Mendes não se retira da actividade em que encontrou o sentido da
sua vida. E ai está, volta e meia, abrilhantando o cartel de corridas de
beneficência, de festivais e de acontecimentos como foi a estreia do toureio a
pé na «nova» Praça do Campo Pequeno.
Vinte e cinco anos após a tomada
de alternativa, Vítor Mendes tem para contar uma vida intensa, cheia de emoção
mas também de racionalidade, de perigo, de criação estética e de triunfos. O
museu de dois pisos que faz parte da sua casa em Vila Franca é um mundo de
troféus, de testemunhos e recordações, de ‘trajes de luces’ e capotes de
cortesias, de ‘cartelazos’ onde o seu nome ombreou com todos os grandes do seu
tempo, memórias de voltas às praças e de saídas em ombros em todos os países
onde se lidam toiros. O reverso é a malha de cicatrizes que lhe cobre o corpo:
sofreu 19 cornadas, esteve três vezes à beira da morte. «Há muito de trágico na
corrida», «o triunfo e o fracasso, a vida e a morte, a tragédia, estão no
limite de um fio de seda», diz Vítor Mendes: 48 anos, português, matador de
toiros.
O Vítor Mendes é matador de toiros português. Isso não é uma
frustração: matador de toiros português?
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É outro toureio, diferente, o toureio sem a chamada ‘faena’ integral?
É diferente na seriedade do
espectáculo. Para o toureiro, mesmo a nível das quotas de nível artístico ou
estético da lide e da ‘faena’ de um toiro, é muito mais difícil toureá-lo em
Portugal, porque não se estabelece um equilíbrio de forças. A razão pela qual
em Portugal se despontam os toiros, é para minorar de alguma forma o perigo. Em
Espanha, o toiro é muito mais sério, de quatro para cinco anos, em pontas,
íntegro, em que para estudarmos o seu comportamento durante a lide se assume,
na sorte de varas, esse factor de equilíbrio de forças. O toiro, após uma sorte
de varas, dá-se a conhecer na sua personalidade, se é bravo ou se é manso e, a
partir daí, o toureiro tem que desenvolver toda uma lide para chegar ao momento
em que o toiro se entrega. Aqui, o toiro mantém uma mobilidade e uma
agressividade em que é muito difícil estudá-lo e dominá-lo totalmente. É uma
tauromaquia muito mais rápida, não se entra tanto no campo da beleza estética,
porque os toiros e a lide não o permitem tanto. Mas obviamente tem a sua
seriedade porque, estando na cara do toiro, pode sempre surgir um momento de
perigo.
Que espécie de desafio é esse de um homem diante de toiro?
Não se faz isto de uma forma
gratuita, mas uma forma de realização pessoal. Eu não quero comparar, mas nos
desportos radicais tem que se levar a competição ao extremo, de cada um consigo
mesmo. Aqui, o prazer de estar na cara de um toiro é, de uma forma racional,
dominar o irracional, num combate que exige conhecimentos técnicos, presença de
espírito. É um prazer muito íntimo, porque o que se assume é o domínio total do
irracional, o que vai mais às nossas reminiscências.
E como é que o toureiro vê o toiro? Como um inimigo?
O toureiro não é de animal para
animal, porque nesse caso o toiro seria normalmente o vencedor. O que está
dentro da lógica da lide do toiro, criado para responder a determinados
estímulos, é que o toureiro o veja como um cúmplice, não como um inimigo. Ao
fim e ao cabo tem que existir essa cumplicidade para que, por fim, as pessoas
testemunhem o valor e a coragem do toureiro, o domínio absoluto, a beleza
plástica da lide, para afrontar esse perigo e para o dominar.
Mas esse combate não é desigual? O toiro é muito mais forte mas não
sabe o que o espera na arena e o toureiro sabe…
Não. O toureiro não sabe. O
triunfo e o fracasso, a vida e a morte, a tragédia, estão no limite de um fio
de seda. Um toureiro pode estar a viver um momento de triunfo e, de um momento
para o outro, uma reacção imprevista, uma má resposta a um estímulo que se dê
ao toiro, faz com que ele o agarre e o possa ferir gravemente. Há muito de
trágico na corrida. Mas ninguém sabe. E daí a importância daquilo que se
procura realizar na cara do toiro, um momento diferente, um nível de
intensidade diferente, uma emoção diferente, um momento plástico diferente.
O toureiro tem muito pouco tempo para estudar o toiro e para decidir?
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Um toureiro, no espaço tão breve de estudar e de lidar um toiro, tem
medo? O Vítor Mendes tem medo?
Eu tenho medo. Felizmente que
tenho medo. Eu, no toureio, alcancei o estatuto de «figura». Sou como um
‘Vintage’ ou um ‘Armagnac’. Isso tem a ver com a personalidade, com o talento,
com o carisma e tem a ver, obviamente, com a inteligência. A «figura» do
toureiro não é mobilizada só por questões de interesse. E para poder desfrutar
dessa posição, da sua profissão. E para conhecer-se melhor, tem que conhecer os
seus limites. O medo é uma virtude inerente a todo o ser humano. A questão é,
tendo medo, demonstrar perante os outros que esse medo se consegue ultrapassar,
que a capacidade, a racionalidade e a inteligência são capazes de ultrapassar o
medo. E assim criamos momentos de beleza estética, momentos emocionais, que
transcendem a personalidade do indivíduo perante o perigo, perante o medo e
perante os outros. O medo é inerente a qualquer ser humano. Por vezes, o
comportamento intempestivo do toiro pode levar o homem a ter reacções mais
normais, mais humanas, como o pânico, ou do medo. O pior – que já me aconteceu
e vi acontecer a outras «figuras» do toureio – é quando se está perante um
toiro, cujas reacções fogem da lógica da lide, cair no pânico, não dominar a
situação. E isso transparece automaticamente: quer-se é acabar com tudo
rapidamente, defender-se, fugir. É a chamada «bronca», em que o toureiro é
ultrapassado pelas circunstâncias.
Existe muita superstição no mundo do toureio, muita mística e religiosidade?
A mística tem a ver com a razão
da própria existência do espectáculo da corrida de toiros. A organização do
espectáculo taurino tinha a ver com os deuses primitivos. O toiro foi também
ele um deus em determinadas civilizações. E, de alguma forma, a festa, o
espectáculo de toiros, tinha muito de místico. A superstição, isso tem mais a
ver com a educação de cada indivíduo. Eu não acredito muito em superstições. Mas
admito que por formação, por educação, por princípios, outras personalidades da
tauromaquia cultivem a superstição.
Qual foi o seu ídolo mais antigo?
Eu tive o privilégio de conhecer
grandes figuras do toureio, e inclusive de tourear ao lado deles, quer de
gerações anteriores, quer da minha geração, quer posteriores, como é o caso de
El Juli, que é um miúdo de vinte e poucos anos com níveis de genialidade fora
do comum. Na altura em que me aproximei da festa dos toiros, a grande «figura»
era o «maestro» Manuel dos Santos. Mas quando me meti mais a sério no mundo dos
toiros, encontrei uma referência numa grandiosa «figura» do toureio que era o
Luís Miguel Dominguin, pela sua personalidade, pelo seu talento, pelo seu
garbo, pela grandeza de ser toureiro que transmitia aos outros. Conheci-o,
estive em tertúlias com ele, tive a oportunidade de lhe brindar um toiro na
corrida de inauguração da praça de toiros de La Corunha. E
posteriormente, o meu grande maestro foi Francisco Rivera Paquirri, meu mestre,
que infelizmente morreu ferido por um toiro.
Palomo Linares foi o seu padrinho de alternativa. O que significa essa
figura do padrinho de alternativa para um toureiro?
O padrinho da alternativa é uma
referência para toda a vida. O que dá o estatuto de matador de toiros é
precisamente a cerimónia em que se recebe o testemunho das mãos de uma grande «figura»
que ficou para a história do toureio. Palomo Linares é uma grandiosa «figura»
do toureio. Uma «figura» que veio no seguimento de uma tauromaquia nova, de uma
renovação, concebida e projectada por esse grande fenómeno do toureio moderno
que foi El Cordobés, que foi quem abriu as portas, nos anos 60, a uma nova tauromaquia,
heterodoxa, que saía daqueles contornos mais clássicos e ortodoxos tal como se
entendiam na época. E foi isso que abriu as portas a toureiros do nível de um
Palomo Linares para que recebessem a aceitação e o respeito do grande
público.
O toureio é susceptível de evoluir? E tem evoluído?
Sim. Sempre. Na arte de tourear, o
compêndio dos passes, dos ‘muletazos’ é único. Está tudo descoberto no aspecto
técnico. Pode-se ‘desempolvar’, como dizem os castelhanos, tirar o pó de cima
de alguns passes que ficaram no esquecimento para as tauromaquias modernas. Mas
a evolução do toureio tem a ver essencialmente com a selecção do toiro, que é a
matéria-prima, e com o talento dos novos toureiros. Além disso, o toureio tem
que ser evolutivo, ou seja, a minha forma de pensar e de estar na cara de um
toiro, agora, depois de 25 anos de alternativa de matador e de ter estoqueado mais
de 2500 toiros, não é a mesma de quando comecei, quando, por desconhecimento e
por ambição, muitas vezes ultrapassava as quotas mínimas de lógica e de defesa.
Há muitos toureiros que ficam pelo caminho precisamente porque existe esse
crivo.
Há competição entre os toureiros. Como é essa competição para triunfar?
Não há nada de mais positivo e de
mais transcendente em qualquer profissão que a existência dessa competição. Se
não existir, não apaixona, passa ao lado. Portanto, neste caso tem que partir
dos profissionais do toureio o desejo do triunfo, a ambição do triunfo, a
capacidade de ultrapassar os maus momentos, as cornadas, as dificuldades
inerentes à profissão, no sentido de se demonstrar que se tem capacidade. E
isto não é durante um ano ou dois.
O Vítor Mendes tem marcas de muitas colhidas?
Dezanove cornadas. E mais umas
tantas fracturas.
E quando foi colhido pensou na morte?
Não. Nunca penso na morte. Mesmo
quando estive, por três vezes, mais para lá do para cá, pensava que tinha
consciência da gravidade dos ferimentos porque estava vivo.
Mas estava a falar da competição, do triunfo. O que é um triunfador?
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBh7hgsG6ZXLt1lVSXMafSGVuL1lwoYytgYx6YYr-q6ZxeOPqFmxDUJA6wJfPCw8_tR5M_cMm1M5SaM0o044CA1Q67yED5NvuSXs77nbFEQU9fSNtu0L8Dw7a6L5A-dCbOZgbXwzd0ivU/s1600/VITOR+MENDES+2.jpg)
Mas isso não poderá levar a concessões a gostos menos exigentes?
O ser humano, em si, é evolutivo
e volúvel. Mas ninguém tem que assumir uma tauromaquia diferente da sua. Tem é
que assimilar as influências do seu «entorno» e projectá-las na sua
tauromaquia. O grande público necessita de movimento, de ‘glamour’, de
espectáculo. O toureio não pode passar ao lado de ser um espectáculo. Mas, além
do grande público, há aquela ‘aficion’ entendida, porque entende as diferenças.
A técnica é algo de necessário e de inerente a qualquer profissional. Agora, a
forma como esse profissional utiliza essa técnica para projectar o seu talento
é que determina a diferença. Porque um toureiro técnico sem personalidade e sem
talento não é toureiro. O toureiro tem que ser capaz, utilizando a técnica,
utilizando as reacções e comportamentos do toiro, transmitir o seu talento e o
seu carisma. E esse toureiro é o que marca.
O Vítor Mendes actuou, e triunfou, em Portugal, Espanha, França, na
América Latina. Há públicos diferentes?
Há públicos diferentes. E grande
toureiro será aquele que tenha capacidade para ser respeitado, considerado e
querido por públicos tão diferentes como são o de Sevilha ou o de Madrid, o de
Bilbao ou o de Valência, o da Monumental Plaza do México, o de Santa Maria de
Bogotá, na Colômbia, o da Plaza de Toros de Inhaquito, no Equador, ou o da Plaza
de Acho, em Lima, no Peru, uma das mais antigas do mundo. As diferenças têm a
ver com a formação de cada ‘aficion’ e com a sensibilidade de cada povo.
Mas qual é, por exemplo, a diferença entre a ‘aficion’ de Madrid e a de
Sevilha?
A cultura da ‘aficion’ de Madrid
é mais radical. Não é de subtileza, é de profundidade, de raízes. Em Sevilha
vão mais atrás do efémero de um elemento estético em determinado momento de uma
‘faena’. São sensibilidades diferentes.
E há uma ‘aficion’ portuguesa?
A ‘aficion’ portuguesa é mais
popular. Mas sabe o que quer. Por isso há nomes que ficam e outros que passam.
A festa de toiros em Portugal tem perspectivas, tem viabilidade, tem
futuro?
Nós estamos num momento de muita
convulsão, de reformas, de reconversão. Mas não podemos passar ao lado da nossa
personalidade, daquilo que é inerente à nossa identidade. E nós é que temos que
transmitir para o futuro aquilo que recebemos e melhorámos. O espectáculo
taurino está ligado a raízes culturais e tradicionais das nossas gentes e de
determinadas regiões. Não podemos passar ao lado desta evidência. É uma pena e
uma tristeza que autoridades políticas, a própria máquina do Estado, utilizem a
festa de toiros apenas como mais uma peça da sua subsistência. O espectáculo taurino
paga impostos e segurança social, cria postos de trabalho, fomenta ganadarias, mobiliza
transportes. Os espanhóis souberam entender isso e souberam promover o
espectáculo e defendê-lo como fonte de receitas, apoiar a formação, a promoção
de iniciativas, de festas e feiras. Uma aposta para que a festa de toiros se
mantenha no nível de dignidade que deve merecer. E aí é que nós estamos mal por
causa de um certo cinismo. Nós vivemos num país de cinismos. Somos sem ser. Pode
escrever como digo.
Perfil
- Nascido a 14 de Fevereiro de
1958
- Natural de Marinhais,
Salvaterra de Magos
- Estudos primários em Vila
Franca e secundários em Lisboa
- Serviço Cívico Estudantil em
1976, em Benavente
- Inscrição na Faculdade de Direito
de Lisboa em 1977
- Descoberto no concurso «Vila
Franca à procura de um toureiro» em 1973
- Bandarilheiro em 1976
- Novilheiro em 1978
- Abandona os estudos e fixa-se
em Espanha em 1978
- Alternativa como matador de
toiros a 13 de Setembro de 1981, em Barcelona
- Confirmação da alternativa, na
Monumental de Madrid, em 16 de Maio de 1982
- Toureou em mais de 1200
corridas em Portugal, Espanha, França, México, Venezuela, Equador, Colômbia e
Peru
- Estoqueou mais de 2500 touros
- Foi colhido 19 vezes, três das
quais com muita gravidade
- Cortou a ‘coleta’ em Setembro
de 2001
- Reside em Vila Franca de Xira
- É casado e pai de três filhos
In Diário Económico, revista Fora de Série, Junho 2006.
In Diário Económico, revista Fora de Série, Junho 2006.
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