é um excesso
da natureza (...) Tudo parado e mudo.
Apenas se ouve
e se faz ouvir o coração no peito.»
Miguel Torga
Por João Paulo Guerra
Da janela de
«A Cidade e as Serras» vê-se «A Ilustre Casa de Ramires», avista-se a primeira
paróquia do Padre Amaro e a quinta de Afonso, um dos «Maias». Tormes pertence à
ficção mas também à vida e obra de Eça de Queirós. A quinta e a casa senhorial
de Vila Nova, a Tormes do romance, lá estão ainda hoje «com o seu brasão de
armas, de secular granito», sobre o Douro, «ao alto, numa prega da serra, entre
arvoredo».
«Uma lindeza. E que paz!», comentava o protagonista do romance,
Jacinto, o melancólico Príncipe dos Campos Elísios, morrendo do tédio e da
fartura da civilização.
Do outro lado
do rio, na margem esquerda, segue a geografia da obra de Eça de Queirós: o
Mosteiro de Cárquere, a Torre da Lagariça, S. Cipriano, cenários de «A Ilustre
Casa»; a Quinta do Paço, a que Eça chamou Santa Olávia e onde situou a quinta
do Afonso dos «Maias»; Feirão, a primeira paróquia do Padre Amaro.
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A casa de Tormes: de A Cidade as Serras vê-se A Ilustre casa de Ramires |
Aqui, o rio
Douro separa as águas das regiões e da literatura. Santa Cruz do Douro, no
concelho de Baião, cenário de «A Cidade e as Serras», fica no mapa da Região de
Trás-os-Montes e Alto Douro; o concelho de Resende, lugar da ficção de «A
Ilustre Casa de Ramires», fica no traçado da Região da Beira Litoral. Nesta
margem sul do Douro os lugares são já vizinhos das serras, aldeias e baldios
das «Terras do Demo», de Aquilino Ribeiro. Mas nas costas de Tormes, para lá do
Marão, fica a terra do parceiro de viagem do protagonista de «A Cidade e as
Serras», o Zé Fernandes, de Paradela de Guiães. Aqui é já o chão dos «Contos da
Montanha», de Miguel Torga.
Os «Contos da
Montanha» são histórias do cimo de Portugal, Trás-os-Montes: um cenário que é
«um nunca acabar de terra grossa, bravia, que tanto se levanta a pino num
ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia. Léguas e
léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio
de neve. Serras sobrepostas a serras. Nos intervalos, apertados entre os
lapedos, rios de água cristalina».
Do alto de S.
Leonardo da Galafura, cenário de um dos contos, «não é um panorama que os olhos
contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos, volumes, cores e modulações,
horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão». Dali
avista-se muito do campo da palavra de Miguel Torga. O que se vê da «proa do
navio de penedos» de S. Leonardo da Galafura é «um poema geológico», «vagas e
vagas sideradas». «Tudo parado e mudo. Apenas se ouve e se faz ouvir o coração
no peito».
A região
demarcada dos contos de Miguel Torga grava memórias de mundo de fragas mas
também de gente, de «rios com barcos e barqueiros, serras com rebanhos e
zagais, lameiros com charruas e lavradores».
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S. Leonardo da Galafura |
Mais atrás no
tempo, e mais a leste no espaço, mas ainda na Região transmontana, vamos
encontrar Trindade Coelho e a literatura rústica e saudosista do livro sem
enredo «Os Meus Amores». «Como era diferente lá na aldeia, cada um na sua
terra. Aí, sentiam-se iguais uns aos outros... Cada qual, na sua aldeia e no
seu ofício - uns no amanho das terras, outros na profissão que tinham
escolhido, eram úteis...»
José Saramago, na sua «Viagem a Portugal», chegou também a Mogadouro, cenário dos textos e da atividade cívica de Trindade Coelho. E «do alto do castelo se podem deitar contas ao trabalho dos homens e das mulheres deste lugar. Todas as encostas em redor estão cultivadas, é um jogo de canteiros e talhões, uns enormes, outros mais pequenos...». A «viagem» de Saramago é de 1981. Mas como diz o autor: «Nenhuma viagem é definitiva».
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João Paulo Guerra,
Diário Económico, 12 Outubro 1998
Versão para papel de jornal da série de reportagens Viagens com Livros
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