Miguel Torga
Por João Paulo Guerra
Torga, que
desta «nesga de terra debruada de mar» apreciava acima de tudo «o ímpeto, a
convulsão» de Trás-os-Montes e «o fôlego, a extensão do alento» do Alentejo, no
Algarve não se considerava «obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação
telúrica nem humana», apetecia-lhe «tudo menos ser responsável e ético».
Passado o Caldeirão era como se lhe tirassem «uma carga dos ombros».
«Hospedado
numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente (...)
Os guias e os prospetos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver
isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar
banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcário onde
o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem
que relembre no Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo (...) Vou,
mas fico na minha. Em toda a parte a mesma volúpia me invade...»
Outra foi a
viagem de Raúl Brandão, ao fim da rota de «Os Pescadores» iniciada em Caminha.
Em Olhão, o autor seguiu «por um novelo de ruas pelos dois bairros típicos, o
da Barreta e o da banda do Levante» e escreveu sobre marítimos generosos - «é
que no mar os homens correm os mesmos perigos» - e sobre mulheres «trigueiras,
de olhos negros e um lindo sorriso reservado» e um «lume no olhar».
«É no cais, ao
pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os homens que
andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para
embarque, que eu assisto todos os dias ao espetáculo da chegada dos barcos e
que vejo os peixes, as redes e o leilão (...) Tudo vem ter ao cais - peixes
esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária -, do rio o
linguado, o pregado, o peixe-rei, o xarroco, os capitães, os alcabrozes, os
robalos, etc.; e do mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de
galhudos, de monstruosas raias (...) Mas a abundância e a riqueza, a fartura, é
a sardinha».
E o autor
despede-se da «brancura imaculada dos terraços» e deixa já com saudade «esta
luz e esta terra embruxada». Se ficasse, teria ali uma casa «no pátio caiado»,
«duas escravas» para lhe servirem «frutos translúcidos acabados de apanhar», um
«barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos» e, de noite,
«este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e
brancos de mulher» e dormiria «na soteia sob as estrelas». Mas a viagem segue,
para a pesca do atum, em Tavira, para o «deslumbramento da baía», em Lagos,
para o «cabo do mundo», em Sagres.
Manuel da
Fonseca também viajou de Sotavento para Barlavento nas suas «Crónicas
algarvias», em reportagem para o jornal «A Capital», anos 60.
Manuel
Teixeira Gomes, que foi Presidente na I República e escritor, também percorreu,
a título particular e oficial, a região natural do Algarve, terra de mouras
encantadas, de lendas e de amendoeiras. Mudou o tempo e inquietava-se o autor
de «Agosto Azul»: «Penso no mal que este tempo deverá fazer às amendoeiras do
Algarve, ainda em flor. Mas no Algarve nunca chove deveras e, mesmo sem flor,
as amendoeiras são lindas. É vê-las no Verão, com o sol oblíquo a dar-lhes na
ramagem, levantando uma poeira doirada que enche o fundo às ondulações da
paisagem».
«Antes o arreeiro trazia outro peixe. E o arreeiro disse. Antes toda a gente só falava da frescura dele. E dava gosto vendê-lo. Antes bebia-se mais Lagoa, porque nesta venda falava-se de coisas simples».
João Paulo Guerra,
Diário Económico, 1 Outubro 1998
Versão para papel de jornal da série de reportagens Viagens com Livros
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