(segunda, por
ordem cronológica, bem entendido!)»
Ramalho
Ortigão
Por João Paulo Guerra
«No fundo das
suas convicções políticas e sociais o portuense era verdadeiramente patuleia.
Detestava instintivamente a Corte, a nobreza, a capital do reino (...) O
Governo uma corja! E os pedintes dos deputados, tão bons uns como os outros!
(...) Hoje, transformação completa! (...) O Porto enfim cessou de ser
província. É segunda capital (segunda, por ordem cronológica, bem entendido!)».
A «farpa» é de
Ramalho Ortigão, com data de Julho de 1883, e a «Ramalhal figura» acrescentava
que o Porto «perdeu esse bom e saudável cheiro provincial que tão especialmente
embebe como de um aroma antigo a prosa dos seus grandes escritores - O Arco de
Sant'Ana, de Garrett, e alguns dos romances burgueses de Camilo Castelo Branco
e de Júlio Dinis».
No traçado
atual da cidade do Porto, Júlio Dinis é nome de uma Avenida, de uma
maternidade, de um cinema. Mas o autor vive, acima de tudo, nos percursos do
romance «Uma Família Inglesa - Cenas da Vida no Porto»: a antiga Rua dos Ingleses,
onde a vida comercial ocupava os passeios, o centro da rua e os portais das
casas; a Boavista onde, passado o Carnaval, Carlos Whitestone passeava,
bucólico, por entre pinhais; a Quinta da China, o Palácio do Freixo, Campanhã,
o Jardim de S. Lázaro, o itinerário do passeio de Manuel Quintino; a Foz, à
beira-mar, onde passeavam Jenny Whitestone e Cecília Quintino.
Do tempo do
autor e do romance ficaram na cidade a Ponte D. Maria, o Palácio de Cristal, o
comboio para Lisboa e o vinho do Porto, sempre generoso. Quanto às figuras do
romance, é possível reconhecer ainda os sucessores de Manuel Quintino, nesses
«homens que o Porto julga indispensáveis e cujos nomes figuram em quantos
cargos, sociedades e comissões se organizam nesta empreendedora cidade». E os
sucessores de Mr. Richard, esses continuaram no Porto e nas quintas do Douro os
seus hábitos de vida inglesa. Mas a tradição, um século depois da Rainha
Vitória, é que já não é o que era.
O Porto, a
cidade «toda ela uma forma, uma alma de muralha», na prosa de Agustina Bessa
Luís, é o centro e o leitmotiv do projeto da regionalização e da Região Entre
Douro e Minho. Entre o Minho, onde «o verde come o resto do arco-íris...», e o
«Doiro», um «corpo-a-corpo» de «pedra e água» (Torga).
Do Minho são
as «Novelas» de Camilo Castelo Branco, vividas em S. Tiago d'Antas, Requião, S.
Paio de Ceide, Santa Maria de Abade, Avidos, Landim, Delães, Vermoim, Ruivães,
Esmeriz, Santa Eulália de Arnoso e, ao centro deste universo, Vila Nova de
Famalicão ou, mais precisamente, São Miguel de Ceide. E no entanto, como
assinalava Alexandre Cabral, o maior dos camilianos, «a vida rural desagradava
ao escritor, saudoso porventura dos tempos turbulentos passados no Porto: 'Aqui
estou, numa terra onde não há estradas, nem gente... Moscas há mais que as
pragas... Os relvedos são lamaceiros... Que aborrecimento'»
Não é este o
tradicional postal do Minho. Mas os postais dos escritores viajantes não
correspondem, necessariamente, a objetivos de promoção turística. Miguel Torga
queixava-se da monotonia da cor: «O vinho é verde, o caldo é verde...»,
viajando entre Guimarães, «a célula da nacionalidade», «a cama da pátria», e
Braga, «a Idoláctrica» (Luíz Pacheco). Já Camilo escrevia que «a cidade santa
dos cónegos despeitorou-se, desnalgou-se, sofraldou as saias e mostrou a liga
sobre o joelho desde que um jornal da nossa terra lhe chamou segunda Paris».
Quando a viagem das letras chegou à pena de Luíz Pacheco, quando «o Libertino»
passeou por Braga «o seu Esplendor», os santos tremeram nos altares da cidade
dos arcebispos: «Decido ficar e fazer uma tarde de luxúria mental em Braga,
para esconjurar o cheiro a incenso e mofo de padre que empestam estas
ruas».
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À ambição e à conveniência dos políticos poderá contrapor-se a paixão pela cidade e pela região que, na literatura, viaja de Fernão Lopes a Garrett, de Camilo a Raúl Brandão, de José Gomes Ferreira a Sophia de Mello Breyner, de Agustina a Mário Cláudio, com passagem obrigatória por Eugénio de Andrade:
«No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo (...) Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim: Para a minha alma eu queria uma torre como esta, assim alta, assim de névoa acompanhando o rio».
João Paulo Guerra, Diário Económico, Outubro 1998
Versão para papel de jornal da série de reportagens Viagens com Livros
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