A Reportagem segue 26 anos mais tarde
Por
João Paulo Guerra
Repórter é o
que vai ali, vem já, olhar rápido, palavra célere.
Baptista-Bastos
Em
1964, o meu chefe de redacção no RCP, Luís Filipe Costa, marcou-me em agenda,
com o meu conhecimento e acordo, a reportagem do 1º de Maio. Para aquele dia
anunciava-se uma concentração no Rossio e adivinhava-se o que se seguiria:
carga da polícia, correrias, feridos, prisões e outros acontecimentos
palpitantes. Como repórter, eu ia ser testemunha presencial dos acontecimentos,
embora também fosse de prever que o meu testemunho viesse a ficar reduzido à
expressão mais simples ou fosse mesmo condenado a desaparecer pela Censura.
A
reportagem, o testemunho de um jornalista, significava uma visão particular dos
acontecimentos, tanto quanto possível objectiva e independente. Ora o regime
era incompatível com a objectividade e a independência. Mesmo assim arriscámos,
o Luís Filipe Costa e eu, com o consentimento do director de Programas e de
Informação do RCP, Álvaro Jorge.
O
director era, obviamente, um homem do regime, organicamente e dos pontos de
vista ideológico, político e dos interesses. Mas o RCP, presidido por Júlio
Botelho Moniz, filho do fundador da estação e sobrinho do general da Abrilada, ousava com frequência
colocar-se num patamar de independência - ou seria simples arrogância? - só
tolerado aos senhores do poder e do dinheiro. Eles não eram do regime. Eram O Regime.
A
reportagem do 1º de Maio começaria pela limitação e a desvantagem de não ser em
directo, com o relato simultâneo dos acontecimentos. Seria em diferido, para o
gravador e depois para os noticiários da estação. E eu avancei para o local
acompanhado pelo Óscar Araújo, um angolano grandalhão e de peso que, para além
de técnico de gravação, me poderia servir de guarda-costas. Ao tempo, não pensei nisso.
A
concentração começou a formar-se no Rossio e, pelo meio da tarde, avançou em desfile
para os Restauradores, seguida à vista pelas forças da polícia concentradas nas
traseiras do Teatro Nacional. Os manifestantes ainda passaram pela estação do
Rossio, pelo cinema Éden e pelo Palácio Foz, sede do Secretariado Nacional da
Informação, o SNI. Mas no campo aberto dos Restauradores, a polícia
atacou, dispersou os manifestantes à bastonada e perseguiu-os pelas ruas
vizinhas.
Foi já
com a manifestação dispersa que, em frente ao café Palladium, se juntaram às
forças policiais os ocupantes de dois ou três Volkswagen pretos que tinham chegado e estacionado sem cerimónia em
cima do passeio na placa central da Avenida da Liberdade. Alguns dos ocupantes
dos carochas, vestidos à civil e
armados com pistolas de guerra, abriram fogo sobre manifestantes em fuga,
provocando um número indeterminado de feridos e um morto. A vítima mortal foi
atingida quando subia a correr a Calçada da Glória. Eu vi. O meu relato e o som
dos tiros e das vozes dos atiradores ficaram registados no gravador do Óscar
Araújo.
Tudo
isto se passou à vista dos graduados e agentes policiais. Mas a única
intervenção da Polícia foi identificar-nos, a mim e ao Óscar, para o que fomos
levados à esquadra da Praça da Alegria, e apreender-nos o gravador onde
tínhamos registado o meu relato dos acontecimentos, as palavras de ordem e os
gritos dos manifestantes, as vozes de comando dos polícias e dos atiradores, alguns
testemunhos de populares, o som do tiroteio. Antes de regressarmos ao RCP,
ainda passámos pelo Hospital de S. José onde tomámos nota do número de feridos
que deram entrada no banco. Não havia registo do morto, cujo corpo vi caído nas
pedras da Calçada da Glória.
No
RCP, Júlio Botelho Moniz foi posto a par do que acontecera e nem questionou a
oportunidade da tentativa de reportagem ou a ousadia de querermos reportar uma
manifestação contra o regime. Porque, acima de tudo, ficou irado com o facto de
os “seus funcionários” serem levados à esquadra e identificados e do “seu gravador” ser
apreendido pela Polícia. À nossa frente, da sala de redacção do RCP, falou aos
berros com o Comando da PSP e, no dia seguinte, o gravador foi devolvido. Fiquei
depois a saber que a direcção do RCP, no entanto, permitiu à PSP fazer uma
cópia da fita gravada, que obviamente foi encaminhada para a PIDE. Não houve
reportagem e a simples notícia dos acontecimentos foi substituída por um
comunicado do SNI. Veio nos jornais dois dias depois:
«Do Ministério do
Interior informaram-nos o seguinte:
«Através de emissoras de clara
orientação comunista, situadas no estrangeiro e de outros meios, foi conduzida,
nas últimas semanas, uma intensa manobra de propaganda com a intenção de
provocar alterações da ordem no dia 1 de Maio. Não se verificou, todavia, o
menor distúrbio em qualquer ponto do País a não ser em Lisboa onde, ao fim da
tarde de anteontem, um pequeno grupo de díscolos, logo disperso pela Polícia,
lançou gritos subversivos no Rossio. Aqueles elementos perturbadores
reagruparam-se pouco depois na Praça dos Restauradores onde lançaram pedras
contra o edifício do Secretariado Nacional de Informação no qual partiram
alguns vidros.
«Verificou-se,
logo a seguir, um recontro entre civis que entre si trocaram alguns tiros que
provocaram um morto e alguns feridos.
«A Polícia
interveio imediatamente e procedeu a algumas prisões».
26 anos à frente…
Vinte
e seis anos mais tarde eu pude prosseguir a reportagem do 1º de Maio de 1964.
Colaborava então no semanário O Jornal,
onde me estreei com uma série de trabalhos de pesquisa sobre as possíveis
ramificações em Portugal da rede Gládio.
De
acordo com a minha pesquisa, em Portugal, para além de outras ramificações, a
rede Gládio incorporou estruturas da
Legião Portuguesa. E num relatório da Comissão de Extinção da PIDE e da LP, ao
qual tive então acesso, havia referências ao caso do 1º de Maio de 1964. A vítima mortal era
identificada no relatório com o nome: David de Almeida Reis. E o autor dos
disparos, identificado como José Cerqueira, estava organizado num comando de choque integrado no Batalhão Nº1 da Legião Portuguesa.
Mal
sabia Júlio Botelho Moniz, em 1964, que os acontecimentos daquele 1º de Maio envolviam
a Legião Portuguesa, fundada cerca de 30 anos antes por seu pai, Jorge Botelho
Moniz.
Os
grupos de choque da Legião tiveram designações diversas - Enviados da Morte, Esquadrões
da Justiça - mas foram os Centuriões
os que adquiriram maior notoriedade. Os Centuriões,
grupo no qual estava organizado José Cerqueira, manifestaram-se pela primeira
vez no Verão de 1963, promovendo uma campanha de intimidação e chantagem sobre
homens públicos cujas posições políticas se tinham afastado da ortodoxia do
regime, designadamente o anterior Presidente da República, Marechal Craveiro
Lopes. Alguns dos Centuriões tinham
pertencido a um batalhão voluntário da LP que participara no início da guerra
em Angola em sanguinárias operações de limpeza
no norte daquele território. A sua divisa era uma frase de Salazar alusiva à
guerra colonial: «Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem». A Mensagem de apresentação dos Centuriões rezava o seguinte:
-
«Viemos com a
morte. Somos cem. Poderíamos ser milhares a afirmar a Nação e a defendê-la dos
ABUTRES e dos TRAIDORES: dos abutres de fora, dos traidores de dentro. Para
afirmar a NAÇÃO e defendê-la dos abutres seremos dezenas de milhares. Para
defender a NAÇÃO dos traidores somo cem. Centuriões regressados de Angola,
Moçambique e Guiné – somos cem.
-
(…) Somos cem
espalhados por dezassete cidades do continente. Onde estiver a traição
aparecerá a palavra CEM escrita sobre o cadáver do traidor. Primeiro: um aviso
pelo correio. Depois: um aviso telefónico. Se a traição continuar: o encontro
com um dos CEM, o último encontro com a vida!»
O
manifesto dos Centuriões ostentava
como insígnia uma espada e uma flâmula com a inscrição GLADIUS.
Foi a
partir deste e de outros casos que escrevi, em 1990, na série de reportagens
sobre a rede Gládio para o semanário O Jornal, 26 anos após a fracassada
reportagem do 1º de Maio de 1964.
… e 16 atrás
Mas
depois de avançar 26 anos, de 1964 para 1990, tive de recuar 16, até 1974, para
encontrar na memória o sentido da reportagem.
Um mês
após o 25 de Abril, mais concretamente em 22 de Maio de 1974, oficiais da
Armada portuguesa ocuparam os escritórios de uma suposta agência de imprensa, a
Aginter Press, em Lisboa. Os
escritórios estavam desertos, apenas guardados por um porteiro, cujo interrogatório nada mais revelou que a identidade,
aliás falsa, do responsável pela suposta agência de imprensa. A documentação
apreendida permitiu à Comissão de Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa
definir os primeiros contornos, actividades e ligações da organização.
Eu
trabalhava então na Emissora Nacional, na Rua do Quelhas, e reportei, ali bem
perto, na Rua das Praças, Madragoa, a ocupação da Aginter Press pela Armada.
Fiquei
depois a saber que a Aginter Press
tinha sido fundada em Lisboa, em 1966, por um desertor do Exército francês e
operacional da OAS, Yves Guillou, aliás Guérin
Sérac. A nível internacional, a Aginter
Press estava relacionada com jornais e organizações neofascistas e,
no plano operacional, associada a uma rede italiana denominada Rosa-dos-ventos. De volta a 1990,
recolhi dados fundamentados sobre o envolvimento da Aginter Press em actos de terrorismo em Itália, no âmbito da
chamada Estratégia da Tensão, que
causou centenas de mortos nos anos 70, bem como de operações no continente
africano, designadamente a conspiração que levou ao assassínio do presidente da
FRELIMO, Eduardo Mondlane, em Fevereiro de 1969. A pesquisa jornalística
desenvolveu estes dados e recolheu muitos outros, relacionando mesmo a Aginter Press com a conspiração,
através de um enigmático Agente X, contra
o general Humberto Delgado, assassinado pela PIDE em Fevereiro de 1965.
Em 1990, o juiz Felice Casson, instrutor de um processo instaurado em
Roma sobre a existência e funcionamento da rede Gládio, depois de consultar os ficheiros dos serviços de
informações, concluiu que um exército secreto, fundado por um acordo entre serviços de espionagem italianos e americanos,
estivera ligado aos atentados terroristas dos anos 70 e 80. O objectivo desse
exército secreto, segundo Felice Casson, era «tornar inofensivas as forças
políticas, sociais e sindicais da esquerda, em senso lato, e impedir a
conquista do poder por parte dessas forças, ainda que por via democrática».
Em
1998, o Tribunal Criminal e Civil de Milão, através do juiz Guido Salvini,
acusou formalmente Yves Félix Marie Guillou, aliás Guérin Sérac, e mais 30 indivíduos, entre os quais outros operacionais da Aginter Press, por «associação e participação em acções terroristas» no
âmbito do processo judicial promovido em Itália sobre a Estratégia de Tensão e a rede Gládio.
A
acusação do magistrado de Milão referia expressamente a Aginter Press, com sede inicialmente em Lisboa e a partir de Abril
de 1974 em Madrid, definindo-a como um «bando
armado formado por cidadãos franceses, aderentes da OAS, espanhóis, portugueses, italianos e norte-americanos,
treinados nas técnicas de infiltração, guerra psicológica, sabotagem,
sequestro, treino e uso de armas, confecção, transporte e uso de explosivos».
O «bando
armado» era acusado pelo magistrado italiano de ter desenvolvido esse tipo de
actividades em Itália, França, Alemanha, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal - no território continental e nos Açores -, em Angola e na América Latina. O despacho do juiz Salvini referia expressamente que o «bando armado» desencadeou acções
contra Portugal sob a designação de Exército
de Libertação de Portugal (ELP), entre 1974, 75 e 76. Condenados na primeira instância que julgou o processo, em 1 de
Julho de 2001, Guérin Sérac e os
outros apresentaram sucessivos
recursos que começaram a ser julgados em 23 de Outubro de 2003. O jogo de gato e rato da justiça acabou em sucessivas prescrições.
Segundo
um dos arguidos declarou em tribunal, os operacionais
da Aginter permaneceram em Espanha
com conhecimento e apoio das autoridades franquistas, participando em operações de guerra suja contra suspeitos de ligação
à ETA, no País Basco.
E aqui, volto três anos atrás, de 1990 a 1987, para
outra reportagem.
Três anos antes
Entre
1985 e 1987, poucos anos antes de ser revelada a existência da Rede Gládio na Europa, serviços
secretos de quatro países - de Portugal, EUA, Espanha e França - apareceram envolvidos no recrutamento e acção de um
comando português que executou dois atentados terroristas no País Basco francês
contra supostos activistas da Euskadi ta
Askatazuna / ETA.
Nada
de surpreendente neste episódio da história. Já os terroristas arregimentados
pelo Grupo de Madrid da Aginter Press, pronunciados em Itália
pelo juiz Salvini, tinham sido acusados de ter desenvolvido tal tipo de operações a partir dos anos
70. Preso em Marselha, em Janeiro de 1976, um dos operacionais da Aginter, Jay
Salby, aliás Castor, confessou que ao
longo do ano anterior participara em «diversas operações contra militantes
bascos», em Espanha e em França, sob a direcção de Guérin Serac.
A
novidade em relação à componente
portuguesa da rede que combatia a ETA
por meios ilegais, terroristas, o auto-denominado GAL - Grupo Antiterrorista de Libertação, era o facto de ter sido
constituído em Portugal e formado por portugueses com comprometedoras ligações:
um deles era informador da Divisão de Informações do Estado-Maior
General das Forças Armadas, dois outros prestavam serviço de segurança na
Embaixada dos EUA em Lisboa. Pus-me em campo, convoquei as minhas fontes,
estabeleci novos contactos, designadamente em Espanha e Itália, e publiquei uma sucessão
de notícias e reportagens sobre o assunto: «A pista portuguesa: CIA e Serviço
de Informações dão o nó nas malhas de um grupo terrorista»; «Serviços secretos de quatro países cruzam-se no processo dos GAL». Posteriormente, acompanhei os
processos judiciais julgados em Viana do Castelo e Lisboa contra os membros do
grupo terrorista. A justiça não deu em nada.
Os factos
reais da reportagem que teria começado no 1º de Maio de 1964, morreram nesse
dia às mãos da Polícia e da censura, mas seguiram no desmantelamento da sede da
Aginter-Press, em Maio de 1974, passaram pela denúncia da existência da
rede Gládio em Portugal e voltaram atrás, aos anos 80, aos atentados
contra ativistas bascos por parte de uma associação de quatro serviços secretos,
entre os quais os portugueses, como fios da mesma meada.
Estes acontecimentos, pesquisados e reportados pelo
autor, constituíram a base de “Romance de uma conspiração”, obra de ficção
publicada em 2010. As reportagens contaram substancialmente mais do que a
ficção, que partiu dos factos para o Romance.
Na ilustração deste texto figuram pormenores da capa
de “Romance de uma conspiração”, da autoria de Maria Manuel Lacerda / Oficina
do Livro; desenhos de Pedro Cavalheiro para ilustração da reportagem “Serviços
secretos de quatro países cruzam-se no processo dos GAL”, O Diário, 9 de Maio
de 1987; fotocópias de peças do processo da Operação Outono, o dossiê do
assassínio do general Humberto Delgado, e do processo dos GAL.
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