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segunda-feira, 23 de abril de 2018

24 / 25 de Abril: O princípio era o fim da história

«E a partir de certa altura deixámos de ter dúvidas
sobre qual seria o fim da história»
Salgueiro Maia

Em 1961, esmagadas as incertezas e hesitações dos chefes militares, Salazar mandou avançar para Angola, assumindo ele próprio a pasta da Defesa Nacional. E foi com Salazar à Defesa que o Império perdeu a jóia da coroa, a Índia.

Por João Paulo Guerra, III episódio de O Regresso das Caravelas, TSF, Abril 1994




A descolonização do chamado Estado Português da Índia demorou 36 horas [18 a 19 de Dezembro de 1961], ao cabo de cinco séculos de presença portuguesa e de onze anos de um diálogo de surdos entre Lisboa e Nova Delhi. Um dia e meio foi quanto resistiram cerca de três mil militares portugueses colocados em Goa, Damão e Diu à invasão dos territórios por cerca de 50 mil soldados indianos. Mas, apesar desta desproporção, Salazar enviara de Lisboa para o governador da Índia, general Vassalo e Silva, ordem para vencer ou morrer: Morreram na Índia 67 militares da guarnição portuguesa; cerca de 3.500 foram feitos prisioneiros.

Império ou morte, determinou Salazar aos soldados portugueses da Índia. Uma ordem tanto mais cínica e perversa quanto se sabia que as tropas portuguesas não estavam em condições de se baterem. E Kaúlza de Arriaga, então secretário de Estado da Aeronáutica, sabia disso:
«Houve culpas nossas na forma como as coisas se passaram. Porque era evidente que se a União Indiana resolvesse fazer a invasão, como acabou por fazer, não havia possibilidades de resistir. O que havia era que dar a essas forças a possibilidade de se poderem bater. Eu disse em Conselho de Ministros que as forças não estavam em condições de se bater, não estavam equipadas com material que funcionasse. Nada funcionava na Índia.
«Há até um célebre caso, com sabor anedótico, que mostra como as forças portuguesas na Índia estavam a ser tratadas. Eu era secretário de Estado da Aeronáutica e pedem-me que transporte rapidamente para a Índia munições para as 'bazucas'. Preparei os aviões, tudo aquilo foi preparado. Vieram uns caixotes do Exército, enormes, pensava eu, e pensava toda a gente, que eram as munições de 'bazuca'. E foram para a Índia. Quando chegaram a Goa, os militares de lá precipitaram-se para os aviões, para tirar de lá as munições das 'bazucas'. Qual não foi o seu espanto quando abriram os caixotes e, em vez das munições das 'bazucas', estavam lá... chouriços. Chouriços!»

A derrota militar na Índia, em Dezembro de 1961, veio dar razão aos militares que, em Abril desse ano, tinham preconizado uma solução política para a questão colonial. No entanto, complexados pela derrota, os militares não exploraram o sucesso da sua razão. Pelo contrário, a partir daí remeteram-se ao silêncio por largos anos. Um silêncio quebrado por vozes isoladas, como foi, em 1962, a do comandante da Base Aérea de Luanda, coronel Carlos Galvão de Melo:

«Em 1962 - recordava anos mais tarde o general Galvão de Melo -, já conhecedor localmente do fenómeno africano e do que se passava em África, permiti-me escrever vários relatórios, um deles para o Presidente do Conselho, que começava desta maneira: “Não tenhamos ilusões. As Forças Armadas só aguentam aqui o tempo que permita ao governo, aí em Lisboa, descobrir, adoptar e pôr em prática uma política de evolução que deverá levar até à independência. E esta é a única maneira de aqui continuarmos cultural e economicamente com vantagens para portugueses e angolanos.” A única consequência deste relatório foi eu ser demitido do comando da Base Aérea e enviado para a Metrópole.»

De 1962 a 1973, os militares assumiram a guerra colonial. Mas a guerra, na opinião do general Vasco Gonçalves, abriu-lhes os olhos para a vida:
«Foi a escola da vida e a escola da guerra – dizia Vasco Gonçalves -. A guerra teve uma influência enorme na consciencialização dos meus camaradas. Porque tantos que partiam daqui, eivados daquele ideal do “Portugal desde o Minho a Timor”, depois foram ver o que aquilo era na realidade.»

Foi nas matas de Angola, da Guiné e de Moçambique que os militares portugueses aprenderam tudo aquilo que ficava por aprender nos manuais da Academia Militar. E a geração que fez a guerra acabou por fazer também a revolução. Foi a geração do capitão Fernando José Salgueiro Maia:
«Tudo aquilo que a propaganda apregoava, o tal Portugal uno, indivisível, inalienável e multirracial, mais não sei quantos, era uma fraude. Porque nós chegámos lá e vimos que existia quase escravatura, com os negros a serem obrigados a trabalhar à coronhada de Mauzer, existiam castigos corporais perfeitamente abjectos, existia todo um mundo de arbitrariedade, e no fim eram as Forças Armadas que teriam que estabelecer o equilíbrio.
«Ora num contexto destes, e quando já tinham sido publicados bastantes livros sobre a guerra da Indochina, em especial os livros do Jean Larteguy, nós começámos a pensar, a fazer paralelismos. E a partir de certa altura deixámos de ter dúvidas sobre qual seria o fim da história. Depois estive na Guiné, já como capitão, e o contexto militar era bem pior. Só encontro paralelo com o cenário do filme Platoon.

E foi assim, nas cidades e nas matas de Moçambique, e mais tarde na Guiné, que se formou o capitão que virou a página da história, no Largo do Carmo, em Lisboa.
Ao longo de treze anos, as Forças Armadas incorporaram e mobilizaram para a guerra 820 mil jovens portugueses: registaram 8.831 mortos, cerca de 30 mil feridos, perto de 15.000 deficientes e mutilados de guerra. E 3.209 heróis, 31 condecorados com a Torre e Espada, 139 com medalhas de Valor Militar, 3.039 com a Cruz de Guerra. Cerca de 200 militares desertaram dos teatros de operações. A percentagem de faltosos e refractários rondava, em cada ano, 18 por cento do contingente. A guerra esteve na origem da emigração de milhares de jovens e das respectivas famílias. Entre 1960 e 1974 emigraram, só para França, o destino mais próximo, 1.524.000 portugueses, cerca de 80 por cento dos quais «a salto». Ao longo de treze anos, as despesas com a guerra constituíram, em média, 43 por cento das despesas públicas, chegando a atingir cerca de 55 por cento em 1969.

Mas o regime não admitia outra saída. Negociar era um sacrilégio. Apesar de tudo, no entanto, a regra admitiu excepções e variantes. Em Angola, 1971-72, o comandante militar, general Costa Gomes, negociou com a UNITA, levando os homens de Jonas Savimbi a combaterem ao lado das tropas
portuguesas contra o MPLA:
«Não só pondo-os à bulha - recordava o Marechal Costa Gomes -, mas fazendo um arranjo de forma a que a UNITA, não só combatesse o MPLA, como nos desse informações sobre os movimentos do MPLA na Zona Leste. Como ainda prometendo não molestar as forças portuguesas nem o Caminho-de-Ferro de Benguela, que era muito importante para escoar os produtos da Zâmbia.
- «Esse entendimento com Jonas Savimbi, em 1972, foi fácil? Ou a UNITA exigiu muito?
«Não, não exigiu muito. A UNITA exigiu mesmo muito pouco. O pai do Jonas Savimbi estava preso; não só se soltou o pai de Jonas Savimbi como se lhe deu o antigo lugar que tinha, como funcionário público, na Câmara de Silva Porto. Chegámos a um acordo absolutamente de amigos, não de adversários.»

Acordo de amigos, em Angola, 1971-72, firmado entre as tropas coloniais e a UNITA, sob os auspícios do general Costa Gomes. Mas na contra-costa, o general Kaúlza de Arriaga jamais admitiu negociar com a FRELIMO:
«O que ia suceder em Moçambique era isto: haveria um período ainda de complicações, até Cabora Bassa estar pronta. Faltavam dois anos. Nessa altura, a albufeira de Cabora Bassa serviria de fronteira a toda aquela gente que estava a desenvolver acções em Tete. As acções em Tete acabariam. Em Cabo Delgado, praticamente já tinham acabado. No Niassa, tinham acabado. De maneira que deixava de haver infiltrações. Claro que haveria sempre uma ou outra infiltração. Mas repare que em Espanha há constantemente bombas, actos terroristas. E em Inglaterra?! Olhe as bombas que rebentam em Inglaterra!
- «Está a dizer que a guerra em Moçambique passaria a ser apenas um caso de polícia?
«Um caso de polícia. Como é hoje em Londres e em toda a Europa.
- Quanto a negociações, nada?
«Era impossível.»

À revelia dos generais da guerra, houve no entanto quem negociasse com a FRELIMO. Em Setembro de 1973, o engenheiro Jorge Jardim firmou um acordo, em Lusaka, com o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, e com a Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO. Almeida Santos acompanhou e estimulou a negociação:
«Eu tive a felicidade de ir tendo notícias desse acordo - conta Almeida Santos - e até de o estimular, como calcula.
- «Mas o Acordo de Lusaka foi negociado com o presidente Kaunda ou com a FRELIMO?
«Negociado com a FRELIMO. O presidente Kaunda serviu apenas de hospedeiro e de intermediário.
- «Com a direcção da FRELIMO? Com Samora Machel?
«Com Samora Machel, claro que sim. Era impossível fazer-se o que quer que fosse, nessa altura, sem o beneplácito de Samora Machel que, nessa altura, tinha uma posição muitíssimo mais razoável, porque a deterioração da situação no terreno e nas Forças Armadas, a seguir ao 25 de Abril, é que lhe deu um reforço de exigências e de agressividade, mesmo militar. Teria sido bom que Marcelo Caetano tivesse aceitado esse acordo.»

O regime não aceitou dar a volta à história da guerra e iniciar modalidades de descolonização, tanto em Moçambique, com Jorge Jardim, como na Guiné, com o general Spínola. Em 26 de Maio de 1972, Marcelo Caetano convocou o general para lhe comunicar que o regime preferia a derrota militar na Guiné a «negociar com os terroristas». Na altura, Spínola ainda estava na fase de se espantar e indignar: «Pois Vossa Excelência prefere uma derrota militar?!». No regresso a Bissau, o general confidenciou ao seu ajudante de campo, capitão António Ramos, que negociações na Guiné estariam comprometidas porque Caetano tinha medo:
«O professor Marcelo Caetano - recordava anos depois o tenente-coronel António Ramos - teve medo da reacção da ultra-direita se embarcasse naquela aventura. E portanto não quis avalizá-la. O medo de Marcelo Caetano era que o exemplo da Guiné alastrasse a Angola e Moçambique. Mas esse era o propósito da equipa do general Spínola: começar pela Guiné, onde era mais fácil, para seguir em Angola e Moçambique.»

Quando recusou a Spínola o visto para negociar com o PAIGC, por intermédio de Leopold Senghor, presidente do Senegal, Marcelo Caetano terá ditado a sorte do regime. E ditou certamente a sorte da guerra na Guiné. Não havia solução militar para a guerra e o regime recusava-se a negociar a paz. Era esse o labirinto do general Spínola. O coronel Carlos Fabião, oficial do Estado-Maior de Spínola na Guiné, testemunhou a entrada do general para o seu labirinto:
«Ele chegou à Guiné, estudou o que se passava, visitou a Guiné toda, falou com todos os comandantes, correu com alguns deles, correu com alguns chefes civis também, instalou-se e fez uma reunião para a qual convocou os comandantes militares mais importantes da Guiné. E apresentou este conceito, para mim revolucionário: Uma guerra subversiva nunca está ganha nem nunca se ganha militarmente. Só é possível ganhar politicamente. Portanto, eu não vou pedir que ganhem a guerra, porque vocês não têm capacidade para ganhar esta guerra. Quem tem que ganhar a guerra sou eu. A vocês só vos peço que não me percam a guerra e que me dêem tempo para eu conseguir ganhar politicamente a guerra.»

Derrotada a estratégia para negociar a paz, o general Spínola intensificou o esforço de guerra, procurando reconquistar pela força as posições perdidas no Sul da Guiné. Foi então que o PAIGC começou a usar mísseis terra-ar, acabando com a supremacia aérea das tropas portuguesas. A partir desse momento, já nem era possível ao general pedir aos seus oficiais que se limitassem a não lhe perder a guerra.
E quando os «Heróis do Mar» perderam a supremacia aérea que ficou traçado o destino da guerra na Guiné. Os primeiros aviões foram abatidos em Março de 1973; em Agosto, o general Spínola regressou a Lisboa, antecipando o fim do mandato. De visita à Guiné, por essa altura, o então chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes, voltou com a sentença sobre a situação militar no território:
«Estávamos à beira da derrota militar. A situação na Guiné, na altura, era muito grave. O PAIGC atacava no Norte e no Sul, com grande fúria, causando-nos muitas baixas.»

E foi com uma derrota militar no horizonte, reavivando os traumas da derrota na Índia, 12 anos antes, que os militares deixaram de acertar o passo pela ordem unida do regime. 
Em 1973, o núcleo duro do regime ainda não esquecera as veleidades federativas de Marcelo Caetano, em 1962, e desconfiava dos projectos de autonomia que o sucessor de Salazar fizera inscrever na Constituição, em 1971. Os duros tocaram então a reunir para o chamado Congresso dos Combatentes, tendo em vista a criação, por oposição à Ala Liberal, de uma Ala Combatente.
     Mas os combatentes das matas de Angola, da Guiné e de Moçambique, não só não responderam à chamada do Congresso, como se organizaram para contestar a iniciativa dos combatentes da retaguarda. Da comissão que promoveu a contestação ao Congresso faziam parte, entre outros, Firmino Miguel, Ramalho Eanes, Carlos Fabião:
«Como pode imaginar, quando nós, oficiais do Quadro Permanente, nós combatentes, aparecemos a dizer que não aderíamos ao Congresso e que não reconhecíamos idoneidade aos organizadores, aquilo foi um nado-morto. O general Kaúlza ainda mandou um telegrama de felicitações e de incitamento ao Congresso, mas nenhum dos outros generais das frentes de combate tomou posição. E aquilo acabou por ser presidido por um general na reserva e não teve representatividade nenhuma.
- «O facto de essa contestação ter nascido na Guiné foi acidental?
«Os oficiais que estavam na Guiné tinham capacidade de conspirar à vontade, sabendo que não havia perseguições contra eles, porque tinham a grande capa do governador a tapá-los. Para além da disposição, havia possibilidades de se poder conspirar com relativa segurança e até com determinado apoio para estas questões.
- «E isso porque o general Spínola era tolerante ou porque também ele conspirava?
«O general era tolerante e conspirava.»

A contestação ao Congresso dos Combatentes, em Maio e Junho de 1973, deu aos oficiais a base de organização para novas contestações. Quando o governo decretou sobre as carreiras militares, em Julho desse ano, os capitães ainda estavam organizados, alerta e em pé-de-guerra:
«Depois do Congresso - acrescentava Carlos Fabião - o Vasco Lourenço pressionou o Eanes, o Eanes falou comigo, para que mantivéssemos unido aquele bloco de oficiais. Mas nós estávamos espalhados pelo Império português e era muito difícil uma organização de tipo conspirativo com indivíduos que hoje estão na Guiné, amanhã em Macau, depois em Angola, Moçambique ou em Cabo Verde. Mas quando isto estava ainda em ebulição, apareceram os decretos sobre as promoções.»

A contestação ao Congresso dos Combatentes e aos decretos sobre promoções foram as causas próximas da formação do Movimento dos Capitães. O general António Ramalho Eanes considera, no entanto, que havia outras razões, de fundo, para o descontentamento e a movimentação dos militares:
«Uma das causas remotas - considera o general Ramalho Eanes - é a Índia. Quando o poder político deixou cair o Estado da Índia por incapacidade política, e depois fez dos militares bodes expiatórios, a partir daí estabeleceu-se uma ruptura entre a instituição militar e o poder político, que nunca mais foi colmatada. E quando as coisas se começaram a complicar na Guiné, ouvia-se com muita frequência dizer, entre os militares, que se chegássemos a uma situação de colapso o poder político faria outra vez a mesma coisa: lavava as mãos, à Pôncio Pilatos, e crucificava os militares.»

A revolta dos oficiais manifestou-se através da contestação aos decretos que abriam o Quadro Permanente aos milicianos. A partir de 21 de Agosto, capitães do Exército começaram a promover reuniões para discutir os decretos do governo. A 25 de Agosto, uma reunião de capitães, em Bissau, aprovou um documento contestando os decretos governamentais.
Enquanto a questão foi meramente corporativa, até o general Kaúlza de Arriaga dava razão aos capitães:
«Eles tinham toda a razão. Os capitães tinham razão. Não sei se tiveram razão nas formas de actuar. Mas tinham razão.»

Logo nas primeiras reuniões do Movimento, os capitães começaram a discutir se era possível resolver a questão corporativa sem resolver a questão da guerra e se era possível resolver a questão da guerra sem resolver a questão do regime. Numa das primeiras reuniões do Movimento em Angola, o então major Pedro Pezarat Correia pôs o dedo nas feridas da guerra e do regime:
«Participei numa reunião de capitães - recorda o general Pezarat Correia - e disse-lhes que o que eles estavam a discutir não me atingia directamente, uma vez que já era oficial superior. Mas que gostava de os alertar para o seguinte: a solução do problema tinha a ver com a implantação e prestígio dos militares na sociedade portuguesa. E o problema do prestígio dos militares na sociedade portuguesa não se resolvia enquanto os militares fossem olhados como o suporte armado de um regime político que a sociedade portuguesa abominava, que não escolhera e que a oprimia.»

No final desse ano de 1973, com uma derrota militar no horizonte na Guiné, também alguns generais conspiravam contra o regime. Procurando apanhar o comboio do Movimento dos Capitães, o general Kaúlza de Arriaga, cabeça de lista da conspiração dos generais, mandou-lhes um recado:
«Entrei em contacto com os capitães, através de um dos meus chefes de gabinete, e disse-lhes: Os generais assumirão as suas responsabilidades, desde que nas Forças Armadas se mantenha a disciplina e o respeito pela hierarquia. E a resposta dos capitães foi positiva: Sim senhor, nós aceitamos isso, os generais façam o que puderem fazer. Mas os generais não fizeram aquilo que deviam, porque houve uma cisão. O Spínola, que estava connosco, desapareceu.
- «Quando diz “os generais assumirão as suas responsabilidades”, isso era um pronunciamento militar, um golpe de Estado?
«Claro que para salvar o país eu não tinha escrúpulos nenhuns em promover um golpe de Estado.»

Kaúlza de Arriaga ainda chegou a recolher votos numa reunião de capitães para liderar o Movimento, embora a grande distância dos votos obtidos por Spínola ou Costa Gomes. E nas paredes de Lisboa, por essa altura, apareceu pintada, em profusão, a letra K. Mas a maioria dos oficiais contestatários não se guiava pelas estrelas do general K. Em Dezembro de 1973, durante uma aula no Instituto de Altos Estudos Militares, o tenente-coronel Carlos Fabião alertou os futuros majores para a conspiração dos generais:
«Disse simplesmente - recordava Carlos Fabião - que os generais Kaúlza, Silvério Marques, Troni e Luz Cunha estavam a preparar um golpe de Estado que passava pela neutralização dos generais Costa Gomes e António de Spínola. E disse também que estava a dar a informação, mas para não se especular com ela. Claro que, logo no primeiro intervalo, eles saíram da sala e foram contar a toda a gente.»

A denúncia do golpe dos generais chegou assim às páginas de The Guardian, na edição de 31 de Dezembro de 1973. Dizia o jornal que os generais conspiravam para substituir Marcelo Caetano por Adriano Moreira.
O general Kaúlza de Arriaga terminara nesse ano a comissão como comandante militar de Moçambique, logo após a denúncia internacional sobre os massacres de Wiriyamu, e o mandato não tinha sido renovado pelo governo.
A denúncia dos massacres de Wiriyamu pelo padre Adrian Hastings, nas páginas de The Times, em 10 de Julho de 1973, agudizara ao extremo as relações entre o Estado português e a Igreja. Entre a hierarquia eclesiástica, a voz que mais alto se fez ouvir foi a D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula:
«Era uma exigência fundamental do próprio anúncio do Evangelho - dizia D. Manuel Vieira Pinto -. Por outras palavras: o Evangelho que devia anunciar não podia deixar de contemplar esta vertente da liberdade de cada homem, da liberdade a que cada homem tem direito. E cada povo. E por isso não podia calar a situação. Não estava contra pessoas, mas estava contra sistemas. Mas o sistema colonial, como todos nós sabemos, é um sistema que assenta numa base de desigualdade, seja jurídica, seja política, seja económica, seja social.
- «Vozes da Igreja, como a do arcebispo de Lourenço Marques, disseram que os massacres foram uma invenção do padre Hastings...
«Não foram uma invenção do padre Hastings. Infelizmente foram uma realidade e muitas foram as vítimas. Naturalmente que podemos dizer que são guerras. Mas as guerras não são irresponsáveis. Alguém deve responder por elas. E esses massacres, alguém deve responder por eles. Na altura, examinámos e denunciámos. Não foi o padre Hastings que denunciou. Antes do padre Hastings, já nós tínhamos denunciado.»

Nos dias seguintes ao dos massacres, nas páginas da imprensa portuguesa visada pela Censura, não havia vestígios de sangue. Mas quando as marcas do massacre chegaram à opinião pública o próprio Vaticano condenou os excessos da guerra. 
Não foi essa a primeira vez que Paulo VI afrontou o regime de Lisboa. Em Julho de 1970, o Papa recebera em audiência Agostinho Neto, Amilcar Cabral e Marcelino dos Santos. «Eu rezo por vós», dissera o representante de Cristo aos líderes da guerrilha. Lisboa perdeu a paciência e a cabeça. «O sucessor de S. Pedro conversou com terroristas», escreveu em editorial o Diário de Notícias. E um dos chefes de fila dos «ultras» do regime, o general Santos Costa, chegou a sugerir a Marcelo Caetano que a «Nação portuguesa» desse ao Papa «o pontapé no traseiro que bem diligenciou merecer». A diplomacia do Vaticano deitou água na fervura. Mas quando a guerra passou das marcas, em Wiriyamu, a Igreja católica voltou a condenar o regime colonial. Da denúncia dos massacres de guerra à denúncia do sistema colonial, também pela falta de fé se ia perdendo o Império.
Contestado pelos militares e pela Igreja, o ciclo do Império tinha o fim à vista. As divergências e contradições no próprio seio do regime e dos sectores que sempre o apoiaram se acentuaram face ao fim iminente do Império. Por essa altura, o regime estava paralisado, na opinião do então ministro Veiga Simão:
«Durante os anos em que fui ministro de Marcelo Caetano - recorda Veiga Simão - o problema da guerra no Ultramar condicionava a maioria dos actos governativos. Marcelo Caetano, antes de ser presidente do Conselho, havia apontado, como base de uma solução para o Ultramar, uma tese evolutiva, a tese federativa. Todos devemos reconhecer que a última década antes do 25 de Abril foi de intenso desenvolvimento social e económico, traduzido em índices reveladores de políticas de forte aposta na agricultura, na indústria e na melhoria da administração. Marcelo Caetano, porém, hesitou com medo natural de um futuro a ser traçado em plena guerra. A revisão constitucional [1971] é um exemplo dessa hesitação. As vicissitudes da Ala Liberal do regime constituem outro exemplo. Resolver o problema do Ultramar e abrir em seguida para a democracia? Abrir para a democracia e resolver de seguida o problema do Ultramar? Não era fácil o caminho. Mas a estagnação, com aberturas limitadas, paralisou o regime.»

Era um tempo de procura. Nas hostes do poder, procurava-se o futuro do regime, num jogo de palavras cruzadas que a Censura, com esse ou outro nome, reprimia: paz e liberdade. Alguns grupos económicos procuravam outro futuro, com novos horizontes, para Portugal. Ao mesmo tempo, os capitães procuravam uma bandeira e as estrelas de um general. A bandeira foi um livro, Portugal e o Futuro, publicado em Fevereiro de 1974. O general foi António de Spínola:
«O livro Portugal e o Futuro – declarava o general Spínola - representa uma evolução da política ultramarina que, acima de tudo, proclamava que a guerra do Ultramar não tinha uma solução militar global, mas antes e só uma solução política. Os militares tinham conseguido criar uma situação de equilíbrio de forças de grande oportunidade para o governo central desencadear acções a nível externo que possibilitassem uma evolução de acordo com as melhores tradições políticas portuguesas. O Portugal e o Futuro deu essa oportunidade a Marcelo Caetano, a qual lhe foi oferecida pelos próprios militares que, naturalmente, a apoiariam se enveredasse por uma abertura que associasse a democracia à consagração de uma Comunidade Lusíada.

– «Marcelo Caetano também tinha apoiado teses próximas da sua…
«E precisamente porque Marcelo Caetano também havia apoiado teses federativas, o livro Portugal e o Futuro reforçaria a sua posição perante as forças mais conservadoras. Infelizmente, o primeiro-ministro deixou-se dominar pelas forças conservadoras que, no fundo, lhe eram hostis, e as conversas que tive com ele, graças aos esforços do professor Veiga Simão, acabaram por não ter consequências na procura de uma solução positiva.
«Os acontecimentos sucederam-se, tendo sido exonerado de vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas [14 de Março de 1974] por não ter comparecido a uma reunião de comandos militares com o governo que tinha, no meu entendimento, um significado vexatório. O primeiro-ministro, em vez de aproveitar uma oportunidade a seu favor, acabou por fomentar um sentimento de revolta nas Forças Armadas. O 16 de Março não tardou e foi reprimido. Mas o 25 de Abril surgiu vitorioso.»



O labirinto do general Spínola era uma frase do historiador Arnold Toynbee: «Portugal foi o primeiro império colonial. Na segunda metade do século XX era o último». Um labirinto a que o general havia sido conduzido pela guerra na Guiné: não havia solução militar e o regime recusava-se a adoptar uma solução política.
Com a ajuda de oficiais do seu estado-maior, o general redigiu a sua crónica dos efeitos da Guiné e negociou a publicação com várias editoras, entre as quais a Arcádia. O editor, Waldemar Paradela de Abreu, viajou para Bissau. Falou com Spínola e voltou a Lisboa com a decisão de publicar um livro cujo conteúdo desconheciam em absoluto.
«O general nunca disse de que género de livro se tratava. Era um livro. E eu devo dizer-lhe que imaginei tudo, menos que fosse aquele livro.
«Voltou a Lisboa com uma decisão mas sem o original?
«Voltei a Lisboa com a indicação de que seria contactado por um irmão do general. E assim foi. Percebi então que ele estava a negociar com várias editoras, haveria já umas seis ou sete interessadas. E sem conhecer o livro, ofereci 20 por cento sobre o preço de capa, quando o normal em Portugal seriam uns 8 a 10 por cento, e com uma garantia bancária. Só depois de assinar o contrato recebi o original. Li-o nessa noite e no dia seguinte entreguei o original do livro, para uma revisão literária, ao António Valdemar. E disse-lhe: “António Valdemar, este livro é a revolução”».

Era o «livro esperado», como era apresentado na campanha publicitária. Proibidos os ‘spots’ na televisão, a campanha da agência Ciesa baseou-se em pequenos cartazes a preto e branco, centrados no perfil do general, de monóculo. O livro saiu a 22 de Fevereiro de 1974. Chamaram-lhe «a bomba de papel». Fez cinco edições, em meia dúzia de meses, num total de 230 mil exemplares vendidos. Mas, acima de tudo, o livro emprestou uma doutrina e ergueu uma bandeira para a revolta dos capitães.
            Cansados da guerra os militares apearam o poder ao qual tinham dado 13 anos de oportunidade para negociar a paz. Menos de dois anos após ter condenado os militares à derrota na Guiné, o poder depôs as armas aos pés de um capitão, Fernando José Salgueiro Maia, 29 anos, capitão de Cavalaria:
«Marcelo Caetano estava sozinho no gabinete, pálido, a gravata a três quartos, barba por fazer mas, pelo menos, com dignidade – relatava Salgueiro Maia. - Fiz-lhe a continência militar e disse-lhe: “Sou o comandante das forças sitiantes, venho exigir a sua rendição incondicional. Se ela não for obtida, o senhor é o responsável pelas mortes que possam ocorrer”. Ele disse-me que já não governava e que esperava ser tratado com a dignidade com que sempre vivera. E que desejava um general a quem entregasse o poder, para que o poder não caísse na rua. Eu disse-lhe que ia contactar o meu PC [posto de comando]. E ele: “Quem é o PC?”. Respondi-lhe que era um conjunto de oficiais generais. E ele disse-me que já falara pelo telefone com o general Spínola e que este lhe respondera que não tinha nada a ver com o Movimento.
«Acabou por ser Marcelo Caetano a participar na escolha, ou a escolha de Spínola foi do Movimento?
«Nós tínhamos, por uma votação, designado o general Costa Gomes. Só que, no próprio dia 25 de Abril, ele não estava em casa. Posteriormente soubemos que se encontrava no Hospital Militar. Mas como o Posto de Comando não encontrava o general Costa Gomes entrou em contacto com o general Spínola a dizer-lhe o que se passava. Que o homem, para se render, queria um general. Então que avançasse o general Spínola. Foi isso que aconteceu.
«Foi uma revolução um pouco bizarra…
«Para nós era importante que Marcelo Caetano se rendesse, para tirar todo o argumento a quem nos pretendesse acusar de termos usurpado o poder. Por isso, a minha preocupação foi que ele abdicasse do poder e o transmitisse formalmente. Porque o poder, de facto, tínhamo-lo nós nas mãos. Há um pormenor desse momento que nunca mais esqueço e que tem algum significado. Na altura da conversa com Marcelo Caetano, eu ouvia ao mesmo tempo o barulho das águas a correrem pelo vão dos elevadores do Quartel…

Águas a correr?
«Quando disparámos para o telhado para os levar a renderem-se tínhamos rebentado com os depósitos de água… E então ouvia barulho das águas a correrem e a multidão, cá fora, a cantar o Hino Nacional. E por acaso até nem desafinava.»

«Heróis do mar, nobre povo…», Portugal virou a página da História em 25 de Abril de 1974. Nem tudo foram rosas na revolução dos cravos. Dos três Dês do Programa da revolução dos militares, o Dê da Descolonização «foi o possível», o Dê de Desenvolvimento nem com os milhões de Bruxelas lá se chegou, o Dê da Democracia é simplesmente formal. Seja como for, nada é como antes. E a flor da democracia continua a ser regada por milhares de portugueses, para que um dia a festa volte a ser bonita. 

Por João Paulo Guerra,  III episódio de O Regresso das Caravelas, 
TSF, Abril 1994

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